crise humanitária

Nova política de fronteiras dos EUA impede entrada de crianças refugiadas

Impedir as crianças de alcançarem o solo americano libera os EUA da responsabilidade em relação à sua segurança e bem-estar. Pequenos fogem da violência, buscam pedir asilo e encontrar familiares

Flickr/CC/BBC World Service

Fronteira México/EUA: aumentam ocorrências de crianças e adolescentes que migram sem adultos, fugindo da violência

Opera Mundi – Apesar de fugirem da pobreza e violência da América Central há anos, em 2014 o número de crianças refugiadas desacompanhadas presas na fronteira dos Estados Unidos com o México atingiu um pico assombroso. Ao fim do ano fiscal de 2014, os Estados Unidos tinham capturado mais de 68 mil crianças na fronteira, resultando num turbilhão midiático e político.

Com a recente divulgação da polícia americana da fronteira de que o número de crianças migrantes desacompanhadas e capturadas na divisa dos Estados Unidos com o México diminuiu dramaticamente, pode parecer que a crise acabou. A queda de 51% desde o ano passado é significante, certamente, e algumas fontes da imprensa elogiaram os esforços colaborativos do governo americano em resolver o que o presidente Barack Obama chamou de “situação humanitária urgente”. Porém, depois de conversar com alguns jovens migrantes desacompanhados nos centros de detenção de imigrantes no México neste verão, não estamos convencidos.

Na verdade, a “situação humanitária urgente” não está perto de ser resolvida, mas está meramente deslocando-se para o lado sul da divisa, onde crianças continuam a ser presas e deportadas em um ritmo alarmante. Em vez de resolver a “crise na fronteira”, os Estados Unidos decidiram terceirizar o policiamento da imigração para o México.

Encontramos Oswaldo, um hondurenho de 16 anos, num centro de detenção para jovens do México a menos de um quilômetro da fronteira com os Estados Unidos. A juventude de Oswaldo foi moldada pela morte, violência e, agora, pela migração; ainda assim a sua linha do tempo não é divergente da de seus companheiros. Muitas de suas linhas também destacam migração, morte e violência como os temas dominantes de suas vidas jovens.

Evelin, por exemplo, deixou Honduras porque está grávida de sete meses e o pai de sua filha ameaçou matá-las. Ela tem 15 anos de idade. Daniela é uma radiante garota de 13 anos que fugiu de El Salvador porque a gangue MS-13, um dos grupos organizados mais notoriamente violentos das região, está agressivamente recrutando-a. Além disso, sua mãe, seu pai e sua irmã de seis anos vivem em Baltimore. Quando perguntamos sobre sua família, ela disse: “Eu só os conheço por fotos”. Ela gostaria de conhecê-los pessoalmente.

César, 9 anos, deixou El Salvador depois que seus pais foram mortos e sua avó foi diagnosticada com câncer terminal. Ele estava viajando para a fronteira dos Estados Unidos com seu primo de 11 anos quando foi pego. César acreditou estar em detenção porque “não há ninguém que me ame”.

Ainda que a crise na América Central não esteja perto de terminar, a situação mudou para estas crianças. Ao longo do último ano, tornou-se cada vez mais difícil chegar ao solo americano. Não importa que estas crianças tenham casos convincentes para asilo ou para reencontrarem suas famílias, tem sido negada a elas até mesmo a chance de chegar à fronteira para apresentarem seus casos aos policiais americanos. Isso ocorre porque, em junho do ano passado, o presidente Obama encontrou-se com o presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, para desenvolver um plano de segurança imigratória colaborativo, fortalecendo o policiamento imigratório mexicano.

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Em outro trecho da fronteira México/EUA, nomes de migrantes que morreram pelo caminho

Em julho de 2014, o México implantou o programa Frontera Sur, uma estratégia abrangente para aumentar a segurança fronteiriça, especialmente nos estados do sul do México. Para apoiar o policiamento imigratório mexicano intensificado, os Estados Unidos doaram milhões de dólares em equipamentos móveis de segurança e vigilância, assim como equipamento de comunicação, treinamento e apoio.

Os trens também aceleraram. Num esforço para deter os migrantes, as companhias ferroviárias comprometeram-se a triplicar a velocidade dos trens. Não precisamos soletrar o que isso significa para as crianças dispostas a encarar riscos enormes para alcançar os Estados Unidos. Como um impedimento além, agora há fileiras de pilares de concreto ao longo das áreas populares para o embarque, prevenindo os migrantes de correr ao lado dos trens para tentarem pegar carona.

Ainda mais ameaçador, guardas armados ficam em cima dos vagões para procurar possíveis migrantes. A Polícia Federal, junto com agentes de imigração mexicanos, também patrulham os trens, prendendo ou, em alguns casos, extorquindo qualquer um que não tiver os documentos legais.

Para evitar a captura, alguns migrantes estão escolhendo rotas cada vez mais remotas e possivelmente mais arriscadas. Assim como aconteceu com a operação Gatekeeper (guardião do portão, em tradução livre) nos Estados Unidos, quando o aumento da fortificação na fronteira empurrou as pessoas mais e mais para os desertos e as montanhas onde encaram riscos maiores de morte e exposição, o programa Frontera Sur está empurrando os centro-americanos mais e mais para as regiões mais complicadas do México.

Algumas das crianças com as quais conversamos disseram que andaram por horas para evitar os cada vez mais numerosos postos de segurança. Elas disseram que caminharam por montanhas e atravessaram desertos, geralmente andando sem água ou sem comida. Quando perguntamos a Oswaldo se ele teve qualquer ajuda em sua viagem, ele respondeu enfaticamente que não, ele não recebeu ajuda de ninguém.

Mas, apesar da maior fortificação da fronteira e do aumento do policiamento imigratório através do programa Frontera Sur, algumas crianças conseguem atravessar a fronteira norte do México. A maior parte desses jovens vem de famílias que podem pegar dinheiro emprestado para pagar um guia, ou um coiote, para levar suas crianças através da fronteira. Quanto maior o preço, mais rápida e mais confortável é a viagem. De fato, alguns chegam a pagar 10 mil dólares por criança, um preço que geralmente inclui diversas tentativas de atravessar a divisa. Viagem de ônibus, van e carro são as mais populares, apesar de algumas crianças, como Scarlet e Ysis, ainda serem colocadas em caminhões de carga.

Scarlet e Ysis, hondurenhas de 15 e 16 anos de idade, descreveram sua viagem para a fronteira dos Estados Unidos com o México em detalhes. Apesar de não ter sido difícil cruzar a borda entre México e Guatemala, elas disseram que o número de postos imigratórios aumentava ao longo de sua viagem para o norte em direção ao estado de Chiapas. Ter dinheiro definitivamente ajudou em seu deslocamento.

Apesar de terem subornado a Polícia Federal nas duas primeiras paradas, o coiote disse para escaparem dando uma volta ao redor do terceiro posto a pé. Quando elas foram encontradas por agentes imigratórios, tiveram sorte: apesar dos agentes exigirem suborno, Scarlet e Ysis disseram-lhes que estavam com pouco dinheiro. Por algum motivo, os agentes deixaram-nas passar só com as palavras “Vayan com Dios” – vão com Deus. Mas, infelizmente, elas não andaram muito antes de cruzar outro posto da Polícia Federal, logo depois. Houve mais suborno. O próximo posto foi na Cidade do México. Mais dinheiro para outras mãos. Na próxima perna da jornada, elas viajaram nos fundos de um caminhão com um grande grupo de migrantes por todo um dia (sem comida e nem água).

Quando chegaram perto de Reynosa, andaram por entre arbustos de cactus para fugir do que seria o último posto antes de cruzarem a fronteira do México com os Estados Unidos. No fim, quase que do lado da divisa, Scarlet e Ysis foram pegas pela polícia estadual, federal e imigratória em uma grande ofensiva antimigratória. A extensão total da viagem de Scarlet e Ysis foi de quase 3 mil quilômetros.

Assim como Scarlet e Ysis, a maioria dos jovens com os quais falamos reportaram o pagamento de suborno atrás de suborno à Polícia Federal e, em alguns casos, aos agentes de imigração para passarem pelos postos de segurança ao longo de suas viagens ao norte. Ainda assim, seus subornos pararam de funcionar assim que chegaram a quilômetros da fronteira do México com os Estados Unidos. Com a exceção de alguns casos, a maioria foi capturada em ônibus noturnos.

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Alguns expressaram profundo pesar ao dizerem que simplesmente não tinham dinheiro suficiente para subornar os agentes imigratórios. O comentário de Oswaldo foi, talvez, o mais esclarecedor. Ele disse que os agentes imigratórios riram do suborno oferecido por ele, respondendo-lhe: “Os gringos pagam-nos para capturar você”.

Depois de pegos, os jovens da América Central são presos em centros de detenção do governo para menores de idade migrantes, enquanto as autoridades imigratórias mexicanas iniciam os procedimentos de deportação. Agora, o México detém mais migrantes da América Central do que os Estados Unidos.

Os números recentes revelam que, enquanto os Estados Unidos detiveram 70.226 migrantes “não-mexicanos” (a maioria da Guatemala, Honduras e El Salvador), o México aprisionou 92.889 centro-americanos entre outubro de 2014 e abril de 2015. Esta é uma inversão dramática em relação aos anos anteriores, graças à pressão dos Estados Unidos sobre o México.

As condições em alguns centros são melhores do que em outros. Originalmente estabelecidos pelas agências de serviço social mexicano para atender às necessidades da juventude vivendo na área da fronteira, os centros de detenção para crianças migrantes descompanhadas são desenhados para serem administrados como albergues. Alguns possuem programas direcionados à juventude e serviços, como arte e conselho psicológico. Outros não oferecem muita coisa.

Num dos abrigos que visitamos, as crianças nunca tinham permissão para ir à área externa e eram confinadas em apenas dois cômodos por meses. De acordo com os funcionários do abrigo, as razões para essa forma extrema de detenção é a segurança. De fato, observamos evidências de atividade criminal organizada do lado de fora das instalações em mais de um dos locais.

Para aqueles que estão em locais sem programas voltados à juventude, o tempo na detenção pode ser bem dormente. E a detenção sem nenhum tipo de serviço social ou psicológico pode ser extremamente danosa para crianças que acabaram de sofrer traumas antes ou durante a migração.

Alguns dos menores entrevistados estavam na detenção há semanas e enfrentavam, mental, emocional e psicologicamente, poucas opções para ocupar seu tempo além da televisão. Também precisavam lidar com o fato que, no fim das contas, retornariam para as situações que tentaram muito deixar para trás. Ao final, todas as crianças perfiladas nesta reportagem foram deportadas do México.

Num dos centros de detenção, conduzimos uma oficina com jovens entre 13 e 17 anos na qual lhes pedimos para listarem os riscos que encararão depois de serem deportados de volta para casa. Trabalhamos com seis garotas e cinco meninos de Honduras e El Salvador.

Um grupo de três meninos também escreveu que podem ser mortos por seus inimigos ao voltarem para casa ou, ao voltarem, podem descobrir que um de seus parentes foi morto. O grupo de quatro meninas – o único grupo só de mulheres – incluiu estupro em sua lista. Estes são graves riscos para os quais retornar e, infelizmente, seus medos não são infundados.

Na verdade, no fim de julho, um hondurenho de 14 anos foi morto três dias depois de sua deportação do México. O centro de repatriação El Eden, em Tegucigalpa, deixou-o na casa da sua mãe mais cedo no mesmo dia; às 11h45 da noite, dois homens encapuzados arrombaram a porta para atirar diversas vezes em Gredys Alexander.

Também perguntamos ao jovens o que planejavam fazer depois da deportação. Enquanto muitos disseram que ficariam felizes em ver alguns de seus amigos e familiares outra vez, 78% contaram que pretendem fazer as malas para voltar aos Estados Unidos/México quase que imediatamente. Na verdade, alguns dos que conhecemos já estavam na segunda ou terceira tentativa de cruzar a fronteira.

Em entrevistas e nas oficinas, muitos jovens insistiram que vão continuar tentando chegar ao solo americano para pedir asilo ou obter status de imigrante legal, não importam os riscos no caminho. Para essas crianças, os perigos em casa são muito maiores. Oswaldo explicou o impulso para continuar seguindo para o norte: “Olha, você passa vários dias sofrendo com fome, congelando, morrendo de sede. Mas você está tão animado em ir para o norte. Não importa que você esteja sofrendo com o frio, fome, nada importa. Você está animado, você está indo para os Estados Unidos!”

Essas são crianças, muitas das quais não veem suas mães e seus pais há anos, muitas das quais sofreram tragédias terríveis, e muitas das quais estão, talvez, fatalmente otimistas de que suas vidas melhorarão exponencialmente quando chegarem em solo norte-americano.

Outras, cansadas e desencorajadas, resignaram-se aos riscos de ficar em casa e encarar a violência da qual fugiram. O salvadorenho Yoshua, de 17 anos, explicou que, depois de ficar na detenção, “eu não tenho vontade de tentar de novo. E se eles [as gangues] me matarem lá, pelo menos morrerei em meu país”.

Em junho de 2014, quando o presidente Obama falou sobre esta “situação humanitária urgente”, ele disse que os Estados Unidos estavam comprometidos a “cumprir nossas obrigações legais e morais para garantir que cuidemos de forma apropriada das crianças desacompanhadas que capturamos”.

Mas no último ano, os Estados Unidos conseguiram terceirizar o policiamento da imigração ao México para manter crianças migrantes fora do solo americano. A grande maioria das crianças da América Central detidas com as quais conversamos em Tamaulipas descreveram temores fundados de perseguição que poderiam torná-las elegíveis ao status de refugiadas sob a Convenção de Refugiados dos Estados Unidos.

Mas, por causa do elevada fiscalização imigratória no México, apoiada pelos Estados Unidos, muitas dessas crianças não conseguem chegar ao país para pedir asilo ou requerer status de imigrante legal. Impedir as crianças migrantes de alcançarem o solo americano libera os Estados Unidos da responsabilidade em relação a sua segurança e bem estar, mesmo que sua situação continue precária. Eles estão fora da jurisdição dos Estados Unidos, então não são mais sua preocupação.

As crianças migrantes poderiam tentar pedir asilo político ao México, mas, na prática, fazer isso é complicado. Para começar, os casos de asilo levam tempo para serem processados, e os jovens devem esperar em detenção até que seus casos sejam resolvidos, o que é uma dificuldade significativa. Também são poucas as aprovações. De acordo com dados recentemente divulgados pela Comissão Mexicana de Ajuda aos Refugiados (Comar), apenas 21% dos requerentes receberam asilo em 2014.

Os jovens nos contaram sobre crianças que ficaram na detenção por meses esperando as audiências para a concessão de asilo, para simplesmente serem negadas e, então, deportadas. Scarlet deixou Honduras porque seu ex-namorado, membro de uma gangue, tentou sequestrá-la.

Ela explicou: “Tenho medo de voltar para casa, mas não queria dizer nada (aos agentes imigratórios)… Eu não gosto daqui. Prefiro estar com a minha família”. Em vez de arriscar uma longa detenção, com uma pequena chance de realmente ganhar asilo, muitos jovens escolhem deportação imediata para que possam viajar rapidamente de volta à fronteira americana.

Ao terceirizar o policiamento da imigração ao México, os Estados Unidos podem ter “resolvido” a crise urgente da administração pública na fronteira, mas a “situação humanitária urgente” continua. Os Estados Unidos não podem ignorar a sua cumplicidade na crise migratória da América Central.

Através de décadas de intervenção econômica e política na região, os Estados Unidos contribuíram para uma vasta desigualdade que moldou todos os aspectos das vidas das crianças da América Central. Ao mesmo tempo, o consumo de drogas nos Estados Unidos estimula e financia grande parte do crime organizado e da violência na região.

A detenção das crianças não é uma solução efetiva para os jovens que fogem de situações desesperadoras, ao contrário, apenas serve para traumatizar ainda mais a juventude. Além disso, deportar menores de idade para situações inseguras não pode ser considerado um sucesso. Fazer isso apenas os leva à ciclos de migrações repetitivas ou, ainda pior, às mãos de seus tormentadores.

Recentemente, ao delegar a fiscalização para o México, os Estados Unidos estão fechando os olhos para as milhares de crianças que buscam asilo e continuam a fugir da violência em Honduras, El Salvador e Guatemala. Isso não faz nada para abordar as raízes dos problemas de migração, e levanta sérias preocupações sobre os direitos e o bem-estar das crianças refugiadas.

*Kate Swanson, Rebecca Torres, Amy Thompson, Sarah Blue, Óscar Misael Hernández Hernández,  com o título original: A Year After Obama Declared a “Humanitarian Situation” at the Border, Child Migration Continues

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