Diário de Cuba

Um plano diretor para a recuperação de Havana Velha

Com alta densidade demográfica e mais de 500 edifícios de alto valor histórico, 'Habana Vieja' reúne o principal polo turístico da cidade, além de casas, escolas, mercados e ampla atividade social

Eduardo Seidl/RBA

Os 214 hectares do centro histórico de Havana guardam uma rica história urbanística, que deu à cidade o título de Patrimônio Cultural da Humanidade

Havana – Havana possui uma rica história urbanística. O que se delimita como centro histórico é um território de 214 hectares, que inclui a antiga cidade intramuros e a zona de ampliação urbana do século XIX. Cuba foi cenário das primeiras Ordenanzas de Construcción, lá por 1574, quando diretrizes básicas já guiavam o processo de crescimento urbanístico da cidade. Hoje em dia, as Regulações do Centro Histórico carregam a herança dos antigos códigos e incorporam novos elementos que ditam as regras de como construir e como preservar o valioso acervo de uma cidade declarada Patrimônio Cultural da Humanidade.

São mais de 500 edifícios de alto valor arquitetônico e histórico, segundo a Lista de Patrimônio Cultural da Unesco. “A área é intensamente habitada, calcula-se que possui hoje 66 mil habitantes e conta com cerca de 22 mil edificações residenciais”, explica Maidolys Iglesias Pérez, socióloga do Gabinete do Historiador responsável por projetos desenvolvidos através do Plan Maestro, ou Plano Diretor. É essa densidade demográfica que dá à Havana Velha, como é conhecido o centro histórico da capital da ilha, uma movida distinta de outros centros urbanos. Ali não está apenas o principal polo turístico e cultural da cidade, mas também as casas, escolas, os pequenos mercados e uma ampla atividade social e econômica da população local.

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Ao todo, 40 profissionais trabalham na preservação e restauração do centro histórico de Havana

A Oficina del Historiador e o Plan Maestro são bons exemplos de como Cuba se reinventa e merecem uma rápida explicação. A Oficina, fundada em 1938 e parte da Prefeitura de Havana, tem como função manejar o processo integral de restauro e revitalização cultural e social do centro histórico. Chamado de Plan Maestro, esse alicerce guia todos os trabalhos que partem da Oficina e atua de forma autogestionada, manejando um orçamento próprio que sai de cada restaurante, bar ou hotel situado na Habana Vieja. Além do capital que o governo destina diretamente para a Oficina – e que passa a ser gerido por urbanistas, sociólogos e outros especialistas em cada uma das áreas que envolvem o trabalho com o centro histórico – é o turismo a principal atividade econômica da Cuba atual, que auxilia na possibilidade de conservação histórica.

O Plan Maestro existe desde 1994, quando se intensificou a preocupação com as áreas mais degradadas do centro. Hoje são cerca de 40 profissionais trabalhando sob a coordenação da arquiteta Patrícia Rodríguez. Segundo Maidolys, o processo começou em 1981, quando o Estado cubano financiou diretamente o restauro de 60 edifícios de alto valor histórico entre a Praça das Armas e a Praça da Catedral: “Em menos de quinze anos centenas de outras edificações foram restauradas, inclusive um número grande de residências e prédios destinados a atividades sociais e econômicas”.

“No entanto, os primeiros restauros começaram esbarraram na falta de mão de obra especializada. Daí surgiram as Escolas Oficina de Restauro. A formação é tão boa que estamos perdendo trabalhadores para o exterior. De toda forma já temos duas cooperativas grandes de alunos oriundos destas turmas. Uma delas é composta apenas por mulheres e especializada em vitrais – o trabalho delas é interessantíssimo”, garante Maidolys. Segundo ela, fazer com que a recuperação do centro histórico impulsione projetos sociais inovadores é crucial para o Plan Maestro.

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Oficina del Historiador, mantida pela Prefeitura de Havana, é responsável pelo restauro e revitalização cultural da cidade

Hoje 66 mil pessoas vivem nas 22 mil edificações residenciais do centro histórico de Havana

Na Rua Aguiar, entre Peña Pobre e o Malecón, uma dessas experiências chama atenção. A rua, historicamente conhecida por abrigar barbearias e salões de beleza, estava degradada já há algumas décadas. O conhecimento tradicional em torno do trabalho com peluquería, esquecido, e os comércios relacionados fechavam um após o outro. Foi no final da década de 90 que Gilberto Walladares, o Papito como é conhecido por todos, mudou o destino da rua e de muitos vizinhos. Na própria casa, Gilberto construiu o que chama de Capela Sistina dos cabeleireiros. Depois de três lances de escada, todos desenhados com cortes de cabelo dos mais variados, chega-se ao apartamento/salão de beleza ArteCorte. Ali, entre um museu da peluquería cubana, fotografias antigas e quadros de dezenas de artistas, Gilberto trabalha com mais dois ajudantes.

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‘Em 15 anos centenas de edificações foram restauradas, entre residências e prédios para sociais e econômicas’

“Até que o ArteCorte virou projeto”, explica Gilberto: “Trabalhei no setor estatal por muitos anos até conseguir abrir um negócio privado e ter a peluquería. Sou morador de Santo Ángel (bairro costeado pelo Malecón na Havana Velha) por toda a vida, tenho um sentido de pertencimento muito grande com o bairro e sabia das questões que a vizinhança vivia por aqui. Foi uma consequência natural transformar o salão em uma escola e logo em algo maior. Na verdade, o que era um projeto cultural passou a ser um importante projeto de desenvolvimento social e econômico para as crianças, os jovens e os velhos do bairro”. A escola funciona a poucas quadras do salão, sem custos para os alunos.

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A Calle Aguiar, conhecida por abrigar barbearias e salões de beleza, estava degradada até que Gilberto Walladares transformou um apartamento em um salão-escola

Hoje, o Gabinete do Historiador se dedica a identificar projetos como este e investir em áreas que já manejam de forma autônoma boas ideias. A Rua Aguiar, do ArteCorte, está inteiramente restaurada, foi fechada para o trânsito de veículos e conta com galerias de arte, cafés e restaurantes com mesas nas calçadas – além de ter criado uma movida peluqueira na região. A duas quadras dali, a comunidade decidiu pela implementação de um parque infantil, que é mantido pelo ArteCorte e onde um dos ex-alunos de Gilberto atende crianças moradoras da região entre balanços, escorregas e outros brinquedos em formato de tesoura, bobes para cabelos e navalha de barba.

Centro histórico de Havana tem pelo menos 500 edifícios de alto valor arquitetônico e histórico

“São projetos comunais como este que nos ensinam também a manejar diferentes modelos de gestão participativa – ponto fundamental para o trabalho na Oficina”, resume Maidolys. Em reuniões que acontecem na última quarta feira de cada mês, os moradores podem eleger prioridades ou discutir dificuldades que enfrentam por morarem em bairros em constante transformação. Em algumas partes, a Habana Vieja é um canteiro de obras. Nas ruas estreitas é impossível caminhar porque toda cobertura está sendo substituída e as redes de telefonia, gás e água estão sendo modernizadas de rua em rua. Além disso, a Oficina acaba de encerrar um primeiro grande processo de decisão coletiva de orçamento, chamado Por tu Barrio, que definiu o restauro de uma escola. A iniciativa surgiu a partir de estudos em democracia participativa que incluíram o Orçamento Participativo brasileiro, experiência vivida intensamente na cidade de Porto Alegre entre os anos 1989 e começo de 2000.

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