Entrevista

Antes tema da ‘direita’, violência vira pedra no sapato do chavismo

Ao incorporar pauta tradicionalmente conservadora, Maduro muda discurso e passa a apontar crime como fruto do imperialismo, dividindo pobres entre os que são incluídos e os que serão castigados

EFE/MIGUEL GUTIÉRREZ

Jovem enfrenta Guarda Nacional durante confrontos em Caracas, capital venezuelana. Reação de Maduro a protestos pode ser equívoco

Caracas – Tema central para os setores conservadores na América do Sul, a violência entrou no rol de questões fundamentais para o chavismo. Especialmente a partir da candidatura de Nicolás Maduro, fruto da morte de Hugo Chávez, em março de 2013, e nas últimas semanas, quando foi indicada em marchas de opositores como um dos grandes problemas do governo iniciado em 1999, se não o principal. Um dos subprotestos mais aplaudidos em uma das recentes manifestações organizadas em bairros de classe alta de Caracas trazia fotos de vítimas de assassinato, tendo abaixo o nome, a data e o local em que ocorreram os crimes.

No discurso de Maduro, a violência apareceu nas últimas semanas como um desqualificador destes mesmos protestos. Barricadas montadas nas ruas, armadilhas usando arames farpados e bombas feitas com pregos são algumas das estratégias que têm sido usadas abertamente por opositores do governo na longa estratégia para derrubá-lo. A promoção de uma primeira etapa da Conferência Nacional de Paz, na última semana, foi a um só tempo uma tentativa de responder a atitudes violentas, tentando se diferenciar desse tipo de proposta, e de acenar para os setores da população efetivamente preocupados com a criminalidade.

Em um âmbito mais geral, o presidente entende a violência como mais uma agressão do imperialismo norte-americano, ao trazer para a Venezuela tentações que corrompem os valores e provocam o aumento da criminalidade. Para Andrés Antillano, professor titular da Faculdade de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Central da Venezuela, um erro tão grande quanto todos os outros cometidos nesta seara pelo chavismo. Se Maduro quebrou uma linha de pensamento ao trazer a temática ao primeiro plano, deixando de lado a ideia de se tratar de um subtema, equivocou-se ao tratar a criminalidade como uma responsabilidade exclusiva dos jovens que a praticam.

Formado em psicologia e com especialização na questão da violência, Antillano pesquisa há duas décadas essa questão, dentro e fora de seu país. Para ele, este conceito alimentado por Maduro tem a ver com uma série de fatores, entre os quais a dificuldade para explicar por que, apesar do inédito avanço em termos de igualdade social, os índices de criminalidade não baixam.

Segundo a organização não governamental Observatório Venezuelano de Violência, em 2013 foram quase 25 mil homicídios, 79 para cada 100 mil habitantes, contra uma proporção de 19 para 100 mil em 1998, antes do início do governo Chávez. Os cálculos do governo são diferentes e indicam uma taxa de 39 para 100 mil, o que não deixa de indicar o dobro do que se via 15 anos antes.

A ideia de transformar o criminoso em um inimigo nacional cobra seu preço, ao incentivar políticas punitivas que dão à polícia carta branca para agir contra pequenos vendedores de drogas, por exemplo, aumentando o encarceramento – de 35 mil presos no começo do governo Chávez para 12 mil nos primeiros anos, subindo a um recorde de 45 mil.

Para Antillano, uma hipótese mais plausível para explicar a manutenção das taxas indicativas de violência reside na abertura de novas brechas entre pobres e pobres, justamente efeito das políticas chavistas. Uma parte da população de mais baixa renda consegue acesso aos benefícios sociais e se insere formalmente na sociedade, enquanto uma outra segue excluída, e passa a resignificar a prática da violência como uma ação intraclasse, e não mais entre classes.

Na última semana, o professor conversou com a RBA em um café de Caracas. Ao abordar os atos violentos promovidos pela oposição, Antillano afirmou não ter dúvida de que se trata de atitudes criminosas, mas advertiu que considerar esse tipo de atitude como terrorismo, embora tenha fundamento legal, pode ser custoso politicamente para o governo.

Leia outros texto de João Peres, enviado especial a Caracas, e da Redação

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Nas marchas dos opositores, a questão da violência é central. Nas marchas chavistas, não. Há efetivamente um aumento da violência?

A violência na Venezuela dispara em 1989. Em 1989 se duplica a série histórica de homicídios. Isso coincide com duas coisas. Primeiro com a aplicação de um pacote de medidas neoliberais que provoca uma situação de exclusão social, empobrecimento, desigualdade, desemprego muito acelerada, que desmantela o Estado. O segundo fator é o 27 de fevereiro de 1989, o Caracaço, como resultado justamente dessas medidas econômicas, que levam a uma insurreição popular duramente reprimida pelo Estado, com um número impreciso de mortes. O Estado neste momento inaugura a violência em escala como método legítimo de resolver um conflito.

A partir deste ano se dispara, e com uma macabra regularidade se duplica a taxa de homicídios a cada dez anos. Então, durante estes quinze anos aumentou muito a violência. E violência é uma palavra mais precisa que insegurança, que pode significar qualquer coisa. Entre a década de 1990 e o começo deste século a violência explode em todos os países da região, à exceção de Brasil e Colômbia, por fatores que são difíceis de explicar.

Na Venezuela, curiosamente os setores médios e a oposição política, fundamentalmente concentrada nos setores médios, colocam como bandeira central a questão da insegurança. Isso é constante nestes 15 anos. E permitiu rearticular forças em momentos de refluxo, culpando o governo por indolente, inonperante, inclusive na questão criminal. Essa é a principal bandeira da oposição em campanhas e em seus programas políticos, que dão muito peso à questão da segurança. É um tema da direita na América do Sul.

E eu digo curiosamente porque realmente os que padecem da violência em geral são os pobres, e não a classe média. A classe média mostra maior insegurança, ansiedade, medo do que classificam como sensação de insegurança, mas são os pobres que morrem por armas de fogo, que são roubados.

De todas formas existe uma lógica determinada de questionar a capacidade do Estado. A demanda da segurança dos setores médios é legítima, apesar dessa questão de se concentrar nos setores mais pobres. Mas está instrumentalizado. Não pelos que protestam, mas por aqueles que se mobilizam para provocar um sentimento nas pessoas.

O envolvimento maior da sociedade, uma maior organização social dos bairros durante o chavismo conseguiu melhorar a situação?

O chavismo teve quatro discursos centrais para codificar a problemática da segurança. Mas não é um tema central. Chávez apenas falou por alto sobre isso. À diferença de Maduro. A ele, sim, se mostra como uma questão central de seu governo, de sua campanha eleitoral. O tema da paz tem muito a ver com essa ideia de pacificar a sociedade. Maduro assume com muito mais força o tema da segurança do que Chávez, que subordinava a violência a outras questões.

O primeiro discurso é de subordinação do crime à injustiça social. É um problema fundamentalmente social e na medida em que corrijamos isso a insegurança estará resolvida, dizem no começo. Me lembro de um ministro que aparecia na televisão dizendo que a política de segurança era abrir não sei quantas escolas, não sei quantos hospitais, telecentros.

É um funcionalismo de esquerda: uma ideia ingênua que relaciona condições estruturais e criminalidade. É muito comum. E isso é muito forte nos primeiros anos de governo. Há uma frase que Chávez usava muito, que nunca consegui identificar a origem, em que ele dizia que se fosse um homem pobre, que tivesse de alimentar seus filhos, o próprio roubaria. Era a utilização da miséria como explicação para o crime. É uma conexão mecânica dos fatores.

O segundo discurso foi o dos direitos humanos. Há um repúdio à violência policial, que havia crescido nos anos prévios a Chávez justamente como mecanismo de resposta às contradições sociais crescentes provocadas pelas políticas neoliberais. Há um debate muito grande no chavismo sobre garantir uma polícia respeitadora dos direitos humanos, sobretudo durante a discussão sobre a nova Constituição, de diminuir as violações, de garantir um Estado cumpridor dos direitos humanos.

O que resulta daí? O primeiro discurso não apenas é mecânico como funciona ao contrário. O que termina ocorrendo é que todos os esforços de inclusão social dos mais pobres encalham frente ao problema da violência. Sobretudo entre os setores mais populares, em que há exclusão. A violência é vista como um processo que reverte a eficácia da promoção da igualdade social.

E a questão dos direitos humanos?

O tema dos direitos humanos também acaba se mostrando pouco eficaz porque é meramente negativo. Colocam-se uma série de leis que restringem a atuação da polícia sem que sejam acompanhadas de mecanismos democráticos de segurança, provocando então práticas informais invisíveis de violação dos direitos humanos. Nos primeiros anos do chavismo houve muita violação cometida pela polícia por atuações que extrapolavam seu mandato legal: repressão a manifestações, prisões ilegais, torturas em interrogatórios.

Logo são tomadas uma série de medidas e esses indicadores praticamente desaparecem, mas surgem outros mais preocupantes, como execuções. Diminuem os padrões de desvio relacionados a excessos e aumentam os padrões de desvio relacionados a algo que não tem a ver com o trabalho policial. A ênfase nos direitos humanos termina criando toda esta situação.

O terceiro grande discurso do chavismo sobre isso é o discurso da participação. Há a ideia, sobretudo na metade da década passada, de crescimento da noção de poder popular. Uma série de questões que têm a ver com transferir poder, competência e recursos para as comunidades. Isso vira uma certa panaceia. Como a comunidade pode resolver melhor o tema da educação, da moradia, da água que o Estado, dessa mesma maneira pode se encarregar da segurança. Isso é muito perigoso no momento em que transfere o papel de polícia às comunidades. A noção de polícia comunitária aparece num primeiro momento dessa forma. Dão um uniforme, uma arma.

O serviço de segurança não é como qualquer outro. Precisa ser monopólio do Estado. Há uma relação paradoxal nesta questão da participação. Aposta-se que a participação será o mecanismo virtuoso, mas é o contrário: sociedades com sérios problemas de violência no geral são sociedades muito desorganizadas, e ao mesmo tempo a violência impede a participação social. Disso resulta que as sociedades que se organizam nessa questão da segurança acabam sendo aquelas que já tinham taxas mais baixas de violência. Apostar ingenuamente na questão da participação como forma de resolver a violência não traz o resultado esperado.

Como é o quarto discurso?

O quarto discurso, que é o prevalecente nos últimos anos, que este governo de Maduro transformou em algo central, é a reedição de uma velha noção de esquerda que tem a ver com a ideia do lúmpen. Ou seja, o criminoso deixa de ser uma vítima do sistema para ser alguém que reproduz os valores do sistema, um capitalista, portanto, um inimigo. É um discurso moral do delito normalmente associado a políticas punitivistas, de mão dura. Recordo que no discurso de lançamento como candidato Maduro já falava sobre isso, que a droga e a violência eram braços do imperialismo.

Esse é um discurso que acompanha um crescimento das políticas repressivas dos setores mais pobres. Não sei se houve excesso ou não no controle das manifestações dos últimos dias. Mas muitos setores da oposição aplaudem a violência indiscriminada contra setores populares por acreditar que são puramente delinquentes. Ou seja, em alguns casos a violência policial é tolerada e elogiada, em outros ela é desprezada e criticada.

O governo hoje teria duas grandes políticas voltadas aos pobres, que têm como fronteira incluir e castigar. Por um lado, políticas de inclusão social importantes, que melhoraram as condições de vida de uma população altamente excluída. Por outro, para alguns setores que não foram incluídos por essas políticas se prevê um aumento do castigo.

Por que melhoraram as condições de vida na Venezuela e aumentou a violência? Isso aparentemente contradiz o senso comum e a maioria das teses científicas. É algo que contradiz o primeiro discurso do chavismo, de que melhorou a qualidade de vida e tem de cair a criminalidade. Aí se valem do discurso do lúmpen. Esse fenômeno se deu também no Brasil, onde houve aumento da violência em áreas mais beneficiadas pelo crescimento e pela redistribuição dos últimos anos.

Uma das explicações que encontramos em nossos trabalhos de campo é um efeito insperado das políticas de inclusão social. Se por um lado melhoram a condição de vida das populações mais pobres em geral, surgem novas brechas naqueles setores de mais baixa renda. Surgem entre aqueles que estão em melhores condições de acessar os benefícios sociais, o mercado formal, e aqueles que não podem ter acesso a isso, que ficam relegados disso. E aumenta uma violência intraclasse, de pobres contra pobres. Isso pode explicar por que a violência na Venezuela segue aumentando.

Este último discurso, com um caráter de moralidade, fecha o horizonte para discutir a despenalização das drogas.

Sim. Temos a política mais conservadora do continente. Nos damos ao luxo de que um gorila como o presidente da Guatemala esteja à esquerda do governo socialista da Venezuela na posição antidrogas. Este é um tema particularmente sensível. Temos uma política de endurecimento.

É um paradoxo. Rompemos com os Estados Unidos, expulsamos os agentes do departamento antinartóticos, mas seguimos mantendo e inclusive aprofundamos o modelo norte-americano de guerra contra as drogas, levando a extremos irracionais. O delito de drogas pode ser muito mais severo que um homicídio porque é considerado de lesa-humanidade. Portanto não tem progressividade de pena, não se responde ao crime em liberdade, não se concede induto. Consideram que vender droga numa esquina é equivalente a explodir uma bomba na esquina e matar 15 pessoas: lesa-humanidade. As políticas policiais acabam concentradas no microtráfico. Os vendedores pequenos são o alimento da polícia.

Isso vira o motivo preferido do governo para a criminalidade. Não há nenhuma relação firme entre droga e violência. Normalmente os consumidores são pessoas muito marginalizadas e com poucas condições de promover violência real. Um craqueiro pode chegar e falar “me passa isso”, mas no geral não é capaz de promover violência.

Geralmente nos bairros que têm um grupo importante de venda de drogas não há homicídios. É como ocorre com o PCC, em São Paulo: é um comércio, o local precisa estar em paz para os compradores. São empresários interessados em que o cliente venha, compre e volte. É uma relação entre droga e crime que não se sustenta.
E por que esse discurso tão intolerante frente às drogas? Tenho algumas hipóteses. O chavismo tem a característica de uma esquerda muito conservadora. É a mesma questão que teve com o casamento homossexual, com o aborto. Não passou pela contracultura de uma esquerda muito refratária a esses temas.

As políticas de drogas que são levadas adiante pelo governo venezuelano colocam em risco inclusive a soberania do país. Os Estados Unidos não vêm dominar por homens armados que entrarão por nossas praias, mas por um controle político que se dá em boa medida por este tipo de estratégia hemisférica que tem entre seus temas as drogas. Isso cria dependência da Venezuela em relação aos Estados Unidos, afetando algumas questões fundamentais para o chavismo. Porque fundamentalmente cria mais exclusão, ao criminalizar os mais pobres, que são os que vão presos, e porque pressupõe um poder institucional repressivo crescente que enfraquece a participação popular, afeta os direitos humanos e abala a ideia de uma democracia para os mais pobres.

Além desta questão cultural, o governo mantém isso porque é uma explicação eficaz para a manutenção dos índices de violência são as drogas. E também porque é um nicho muito valorizado pelos militares, que têm muito peso político na definição das linhas de governo. A repressão das drogas é quase um último reduto para os militares. Por fim, porque há uma ameaça dos Estados Unidos, que indicam a Venezuela como país cúmplice do tráfico de drogas. É o temor de ser acusado por um país deste tamanho.

Sobre esta violência dos últimos dias, em episódios políticos, o governo a classifica como terrorismo. São terrorismo, efetivamente?

Em termos legais, sim. Há noções que tendem a crescer num mundo globalizado. E, de novo, é a grande ironia de um país que projeta a autodeterminação como ideia central. Essa ideia de terrorismo ganhou contornos globais, sobretudo depois do 11 de setembro de 2001, e os conceitos de crime organizado e terrorismo acabam incluindo qualquer coisa. O tema das drogas acaba subordinado a essa noção de narcotráfico, terrorismo.

A legislação venezuelana tem coisas muito curiosas. Por exemplo, todo crime cometido por mais de duas pessoas é crime organizado. Se nós dois decidirmos brigar com alguém aqui neste restaurante e formos presos, estamos presos por crime organizado, como se estivéssemos contrabandeando plutônio.

Sobre os protestos, que isso seja terrorismo é uma questão de definições. Acho excessivo. Para além da materialidade, há uma questão de eficácia: é eficaz criminalizar um movimento político? Não o vejo assim. Isso ocorre no Chile, mas lá há um modelo político de direita. Isso ocorre na Colômbia. É uma licença excessiva que pode ser perigosa por colocar fora da legalidade todo protesto político.

Acredito, e já não falo como especialista, mas como ator político, é improdutivo politicamente. Essa onda de protestos tem a ver com um grupo da oposição radicalizado que propõe a derrubada do governo – e não é um teoria conspiratória, isso surgiu em uma assembleia pública a duas quadras daqui quando decidiram tirar o governo. É profundamente antidemocrático. Não é um pecado querer que caia um governo de que você não goste, mas usar de métodos violentos contra ele é pelo menos uma violação à democracia.

Mas, quando você classifica como terrorismo este ato, que de fato é ilegal, coloca em evidência uma questão política. É muito complicado porque tudo é confuso. O mesmo setor da oposição se faz confundir, o governo se coloca na ofensiva frente a ameaças. Porém, acredito que é melhor distinguir entre aqueles que têm intenções abertas e declaradas de derrubar um governo eleito e democrártico, e aqueles que têm reivindicações reais.

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