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Sem acordo, apoiadores e opositores do chavismo seguirão marchando em Caracas

De um lado, classes média e alta querem derrubar o governo antes que este 'anexe' a Venezuela a Cuba. De outro, classes baixas temem golpe patrocinado pelos EUA e prometem resistência

Santi Donaire/EFE

Governo pediu às mulheres venezuelas que lutem contra a violência e pela paz no país

Caracas – Saiu de casa vestido para marchar: boné laranja e camisa branca, ambas da Ralph Lauren, calça jeans levemente desbotada, tênis laranja da Adidas, harmonizando com o boné, e mochila da mesma marca trançada atrás das costas. Do lado dele, ela veste uma blusa com plumas brancas e uma bermuda apropriada para caminhada. Leva no rosto maquiagem leve, tons pastéis, nada carregado para um dia de sol como este.

Logo os dois deixarão os minutos de estrelato no metrô para se perder na multidão do mais novo ato contra o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, mas nem de longe serão apenas mais um nessa caminhada: cada um que chega agrega valor. Se no quesito enfrentamento o chavismo parece levar vantagem, não há dúvidas de que lhe faltam apuro estético e sentido fashion. Camiseta branca de marca? Agrega. Camiseta vermelha do governo? Não.

Doris Tarazola mora ao lado de La Califórnia, zona leste de Caracas, mas sente saudade mesmo é de Miami. As restrições impostas pelo governo ao dólar têm lhe custado a paciência. É algo difícil de explicar: desde janeiro entrou em vigor um novo sistema no qual existe uma cotação oficial e oficial, uma cotação oficial e paralela e uma cotação paralela e paralela. A primeira serve para 80% das transações e está voltada à chamada economia produtiva, ou seja, quase tudo que diga respeito ao Estado. A segunda, que já chegou a um patamar que é o dobro da primeira, vale para a população em geral, que tem de se virar com o montante que é liberado todos os meses pelo órgão regulador. Daí saem os recursos para turismo, motivo da insônia de Doris.

Economista, 56 anos, é moradora da vizinhança de classe média alta em que ontem (22) se reuniram as pessoas que não gostam do modelo criado em 1999 pelo presidente Hugo Chávez, encabeçado desde dezembro de 2012 por Nicolás Maduro, devido ao afastamento do líder por conta de um câncer que em março do ano passado o matou. “As passagens de avião quadruplicaram”, queixa-se. Agora, além disso, ela só pode comprar bilhetes aéreos para o mês que se abre, o que dificulta o planejamento das férias no exterior – se tudo der certo, em agosto Doris conhecerá a França (ou a França conhecerá Doris).

“A maioria deste país tem muita insegurança, escassez de alimentos, inflação, desapropriações”, continua, praticamente resumindo aquilo que parecia ser o sentimento que animava 15 mil pessoas a sair numa manhã de sábado para protestar. Para ela – para eles –, vive-se um Estado autoritário no qual a liberdade de expressão foi tolhida e os principais meios de comunicação de oposição foram desaparecendo do mapa, embora cálculos do governo digam o contrário: o setor privado controla 80% dos canais de televisão. “Maduro não aceita a existência da oposição. Não consegue conviver. Está entregando o país aos cubanos. Não queremos isso.” Para ela – para eles –, o presidente consegue ser mais insuportável que Chávez porque não tem simpatia e, pior, não tem “referências”: não estudou tantos anos quanto eles.

A marcha de opositores do governo saiu da zona leste, rica, e acabou um quilômetro depois, na zona leste, rica. A marcha de apoiadores saiu do fim da zona leste, classe média, e acabou três quilômetros depois, dentro do Palácio Miraflores, a residência presidencial, depois de passar por áreas populares nas quais eram exibidas bandeiras de Chávez. Há um claro recorte de classes nas duas manifestações, uma diferença que salta aos olhos, ainda que possa haver gente pobre no ato do leste e gente rica no encontro do oeste. Um é de gente branca trajando roupa de marca, e outro reúne gente de menor estatura, mais morena e com camisetas de coletivos pró-governo ou do próprio governo. Em uma se toma chá gelado em copos estilizados. Em outra se alivia o calor com uma raspadinha ou com a água que vez ou outra são fornecidas pelas organizações chavistas, estatais ou amigas do Estado.

Que dois protestos, um pró e outro contra, ocorram em Caracas num sábado pela manhã, nada de novidade: o capital não dorme, a chamada Revolução Bolivariana nunca soube o que é pregar os olhos. Mas estes eram eventos cercados de tensão. Já há pelo menos nove mortes relacionadas a manifestações ao longo de fevereiro em todo o país. Uma escalada de acirramento também difícil de explicar. Os setores contrários a Maduro dizem que tudo começou com a detenção arbitrária de um rapaz durante um ato estudantil, nos melhores moldes da Primavera Árabe, em que uma faísca coloca fogo no paiol. O governo diz que a explicação central é um plano para desestabilizá-lo com a ideia de provocar uma guerra ou criar a brecha para uma intervenção estrangeira, armada ou não, nos melhores padrões de operações do serviço de inteligência dos Estados Unidos.

Na Venezuela, quem aprecia tons de cinza está fora. É tudo vermelho ou branco, Fla ou Flu, Pátria Grande ou Big Stick. Numa marcha, os meios de comunicação estrangeiros são acusados de mentir e difamar. Na outra, são vistos como os únicos que conseguem contar a verdade da fronteira para dentro e levar os absurdos da fronteira para fora. Numa marcha diz-se que opositores mataram os manifestantes para culpar a Maduro. Na outra, que grupos paramilitares do chavismo provocaram os assassinatos. Numa marcha, a palavra mais repetida é paz. Na outra, violência é a consigna preferida. Uma marcha está salpicada de caminhões competindo entre si para ver quem toca melhor e mais forte temas revolucionários. A outra é marcada por apitos e cornetas. Numa marcha, as barraquinhas vendem camisetas com os rostos de Chávez, Simón Bolívar e Ernesto Che Guevara. Na outra, produtos que remetam ao ‘basta’: de violência e de autoritarismo. Em uma marcha, o crachá do repórter não tem qualquer importância. Na outra, é mais importante que o rosto e as perguntas do repórter – questão de status e sobrenome, talvez.

“Não, não, não me dá gana, outra ditadura igualzinha à cubana”, cantam os opositores. “Não há comida, não há segurança. Mas o pior de tudo é que não há independência: entregaram o país a Cuba. A Cuba! Ditadores que estão aí há mais de 50 anos.” A amizade de Chávez com Fidel Castro jamais foi digerida por Josefina Li Causi, uma aposentada que mora por aqueles quarteirões. A troca de petróleo venezuelano por médicos, tecnologia na área de saúde e educação desperta uma fúria que o leitor brasileiro, conhecedor do Mais Médicos de Dilma Rousseff, não terá dificuldades em imaginar. “Precisamos viver como queremos. Ver a televisão que queremos, viajar para onde quisermos. Para nós é importante a liberdade, no sentido mais amplo, individual…e coletivo.”

Para ela, se o governo eleito para ficar no Palácio Miraflores até fevereiro de 2019 não estiver com muita vontade de cair, pelo menos precisa corrigir defeitos. “Estamos fartos. O venezuelano que entende as coisas sabe que precisa resistir. Os pobres vivem de esmola e não sabem que a maior parte está indo para Cuba. Não estão informados…”

– São ignorantes, imbecis – diz uma mulher ao lado de Josefina

– “Eu estava usando um eufemismo, tratando de encontrar uma maneira elegante” – diz, entredentes, claramente embaraçada, e continua: “Temos o direito de lutar por nossa liberdade e para que o país caminhe no sentido correto”.

Uma parte das críticas encabeçadas pela oposição tem ganho cada vez mais adeptos. Há décadas que se sabe que economia e humor político têm estreita relação. E os tempos de vaca gorda na Venezuela, em particular, e na América do Sul, em geral, passaram. Os preços mais baixos das commodities, que durante a década dourada garantiram a ampliação dos investimentos do Estado e a criação de amparos sociais, e a crise internacional prolongada trataram de cortar o fôlego e fazer cair índices de popularidade.

O caso venezuelano é agravado, e muito, pela eterna dependência de importações. Produtor de petróleo, o país desistiu há muitas décadas de ter uma indústria própria, o que o obriga a comprar no exterior os insumos mais básicos que se possa imaginar. Isso significa que ciclos virtuosos rapidamente se transformam em ciclos negativos. A arrecadação com o petróleo cai, as importações pesam mais na balança comercial, há menos dólar circulando no país, a taxa de câmbio fica desfavorável, os produtos para o consumidor final se encarecem. Esse é um resumo dos últimos dois ou três anos para o governo chavista, com o agravante de que a situação está ficando pior e parece difícil retornar a um ciclo virtuoso.

As medidas adotadas até aqui por Maduro fizeram criar um mercado paralelo do dólar que acaba ditando a cotação oficial e os preços dos produtos, provocando uma inflação que chegou a 56% no ano passado, recorde, e uma sequência de desvalorização da moeda nacional. Juntos, esses dois fatores comem os rendimentos dos trabalhadores. De quebra, ampliam as possibilidades de evasão de impostos e de divisas. Num cenário em que se perde a noção dos valores das coisas, especuladores agem, ainda mais se se trata de criar problemas para um governo inimigo. Tudo isso acaba resultando em um quadro de mau-humor social e degradação do padrão de vida.

“A única intenção da oposição é violência, guerra”, diz Martha Jiménez, uma artista plástica que se retirou da profissão para criar os filhos e “o Processo”, um dos nomes do chavismo. “São fascistas. Querem mais dólares, querem se banhar no petróleo. Querem que os Estados Unidos nos voltem a escravizar.”

Os Estados Unidos são uma velha referência. De um lado, a classe alta sempre teve em Miami um eldorado onde era possível comprar e conhecer o capitalismo versão 2.0, algo sempre inalcançável. De outro, as classes baixas receiam que a Casa Branca torne a patrocinar processos de instabilidade, como já fez em 2002, quando Chávez foi deposto, ficou 48 horas fora do poder e conseguiu retornar.

A marcha chavista é um aglomerado de bairros, organizações, cidades. Gente vinda de todo o país para apoiar o governo. Há claramente um apoio financeiro estatal, seja diretamente, por carros e comida trazidos por ministérios e autarquias, seja indiretamente, por transporte e alimento bancados por entidades da sociedade civil copartícipes do chavismo.

Yaritza Fernández, Maria Valbueno, Esther Recuero e Johana Pineda são quatro das aparentemente infinitas representantes da delegação de indígenas Guayu vindas de Maracaibo, 700 quilômetros ao sul da capital. Moradoras do projeto habitacional Hugo Chávez Frías, contam que vêm várias vezes ao ano a Caracas prestar apoio ao governo – a próxima, já se sabe, será 5 de março, primeiro ano do “desaparecimento físico” do presidente. “Em Maracaibo ameaçam as pessoas, queimam carros. As crianças estão há duas semanas sem aulas”, relata uma delas. “A direita é minoria. O que eles estão fazendo é segurar os produtos e vender caríssimo”, diz outra. “Maduro está indo bem. O problema é que não o deixam trabalhar”, avalia uma terceira.

Mantra

No Palácio Miraflores, os portões são abertos para a chegada dos manifestantes, que ficam a dois ou três metros das portas presidenciais – mas ninguém faz menção a mexer no edifício. Logo surge Nicolás Maduro, que agora tem o respaldo deles para seguir tocando o barco. “Vamos cantar o hino nacional como se fosse um mantra, para espantar os demônios para bem longe, onde devem estar: no inferno”, diz o presidente. “Não temos medo do império. Somos o povo que expulsou o império da América Latina. E o povo que está tirando o imperialismo deste país.”

Ele se vale da palavra durante duas horas. Para várias vezes para mostrar vídeos, acusar os opositores e exibir artefatos de guerra que estariam sendo usados pelos opositores para provocar mortes. Não é preciso ser um astuto observador para se dar conta de que Maduro não goza da habilidade hipnótica do antecessor. Muita gente conversa durante sua fala, muitos vão embora, alguns fazem alguma breve crítica. O presidente não parece, ao menos publicamente, se ressentir disso: tem plena certeza de que é meramente o sucessor de alguém que não está mais no comando porque é fisicamente impossível, ainda que muitos possam jurar que Chávez segue governando.

As menções ao líder da Revolução Bolivariana estão por toda a cidade, das mais variadas maneiras, com uma forte carga imagética e discursiva. Quando Maduro chama a cantar o hino, ao fundo está “o Comandante” com um “mais forte, mais forte”. Entre as muitas músicas que animam a marcha, uma traz o discurso de Chávez antes de se afastar do poder afirmando que havia tomado a decisão “irrevogável, total, absoluta” de outorgar o comando a Maduro. E um grito de guerra dá aos dois os respectivos lugares na história: Chávez para sempre, Maduro presidente. Um fica, o outro passa.

Ao final de muita fala, Maduro veste luvas vermelhas. Sinal de que vai empunhar a espada que Bolívar utilizou nas campanhas de independência de nações latino-americanas. Ele a ergue, e pede às mulheres presentes que façam um juramento: vão trabalhar pelo governo e pela paz do país, garantindo que se desarme a “violência fascista”.

Há uma certeza entre os integrantes da manifestação chavista de que eles estão imbuídos do espírito da paz, e que do outro lado está a truculência. “Estão buscando um governo paralelo. Mas estamos seguros de que nosso governo é Maduro”, diz Leida Cabrera, 57 anos, moradora do leste rico que representa uma exceção no protesto. “A dificuldade agora é a comida. É o que temos de superar.” A escassez de alimentos, dizem os chavistas, é provocada por empresários interessados em jogar o povo contra o presidente. A escassez de alimentos, dizem os não chavistas, é fruto da incompetência de uma gestão que em 15 anos não conseguiu resolver os problemas mais básicos da indústria. E é provável que, descontados os excessos, os dois lados tenham uma parcela de razão, embora dizê-lo seja condenar-se à agressão. Na Venezuela, não há espaço para Fla e Flu.

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