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Morte de Mandela lembra que, apesar do fim do apartheid, racismo está longe de acabar

Representantes do movimento negro lembram exemplo de líder sul-africano, reafirmam preconceito existente no país, enumeram conquistas e atestam: racismo prejudica a todos

EFE/STR

Mandela engrossou a luta armada antes de optar pelo pacifismo para acabar com segregação racial

São Paulo – Para além das homenagens unânimes à sua firmeza ideológica, sua resistência à prisão e sua disposição ao diálogo, a morte de Nelson Mandela lembra que o maior objetivo de sua trajetória política ainda não foi alcançado. Faz quase 20 anos que o apartheid desapareceu do ordenamento jurídico sul-africano, mas as desigualdades raciais perduram dentro e fora do país. No Brasil, inclusive. Aqui, lideranças do movimento negro honram Mandela como exemplo a ser seguido, em tempos de conciliação ou enfrentamento. E frisam que sua luta está longe de acabar.

“Mandela nos inspira a lutar, e a lutar por todos os meios”, explica Samoury Barbosa, membro da Articulação Política de Juventudes Negras de São Paulo. Aos 34 anos, o militante lembra que, apesar de ter entrado para a história como um grande pacifista, propulsor do diálogo com os opressores brancos, Mandela acreditou por muito tempo na luta armada como única maneira de acabar com o apartheid. “Outro ensinamento é que apenas conseguiremos nossos objetivos se agirmos coletivamente: se o coletivo não está bem, tampouco estaremos como indivíduos.”

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Oficialmente, o regime de segregação racial na África do Sul teve início em 1948. Os sucessivos episódios de violência contra os negros do país motivaram membros do Congresso Nacional Africano (CNA), entre eles Mandela, a fundar o Umkhonto we Sizwe, que, em zulu, uma das línguas originárias dos povos sul-africanos, significa Lança da Nação. A milícia começou a agir em 1961. Um ano antes, a polícia havia assassinado 69 pessoas, incluindo mulheres e crianças, após um protesto de negros na cidade de Sharpville. Um ano depois, Mandela seria preso.

“No Brasil, lutamos pacificamente, mas os jovens negros estão morrendo aos montes nas periferias das grandes cidades por causa do racismo institucionalizado que vivemos”, continua Samoury, citando o exemplo recente de Douglas Rodrigues, 17 anos, assassinado pela polícia na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo, aparentemente sem qualquer motivo. Após receber um tiro no peito, o adolescente perguntou ao seu executor: “Por que o senhor atirou em mim?”

As estatísticas da violência urbana sustentam a tese de que está em curso um “genocídio” da população negra brasileira. Os homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos, e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino, moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros. Dados do Ministério da Saúde mostram que mais da metade – ou 53,3% – dos 49.932 pessoas assassinadas em 2010 eram jovens, dos quais 76,6% negros (pretos e pardos) e 91,3% do sexo masculino.

De acordo com o Mapa da Violência 2013: Homicídio e Juventude no Brasil, em 2012 ocorreram 45.997 homicídios no Brasil, sendo que 18.867 vítimas (41%) eram brancas e 26.952, ou 58,6%, eram negras. Em 2011, os assassinatos contra a população em geral, que nove anos antes já atingiam prioritariamente os negros, se intensificaram contra esse grupo racial: das 49.307 pessoas vítimas de homicídio no país, 13.895 (28,2%) eram brancas e 35.207 (71,4%), negras. Isso significa que, enquanto o homicídio contra os brasileiros brancos foi reduzido em quase um terço (31,3%) na última década, o número de vítimas negras cresceu 21,9%.

Os índices de violência são utilizados pelo movimento negro como maior exemplo da discriminação existente no país. Mas não é o único. “Vivemos um racismo escancarado”, pontua Elena Lucas Rodrigues, coordenadora de Políticas para a População Negra e Indígena do Estado de São Paulo, subordinada à Secretaria estadual de Justiça e Cidadania. “Basta ver as taxas de desemprego, que atingem prioritariamente os negros. E também nossa reduzida presença nas posições de poder, tanto na esfera pública como na privada.”

“Você encontra poucos negros no Congresso e nos poderes executivos”, lamenta o deputado federal maranhense Domingos Dutra. “No governo federal, por exemplo, em 37 ministérios, temos apenas uma ministra negra. No Supremo Tribunal Federal (STF), apenas um negro. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), de 33 magistrados, há apenas três negros. Apesar de haver um esforço da elite para dizer que vivemos uma democracia racial, isso não é verdade. As comunidades remanescentes de quilombos lutam há 25 anos para ter seus territórios e não se consegue avançar na titulação.”

Nesse sentido, um dos coordenadores nacionais do Movimento Negro Unificado, Milton Barbosa, compara a realidade de algumas regiões do país com a ordem social combatida por Nelson Mandela durante seus anos de atividade política na África do Sul. “Na Bahia, por exemplo, a grande maioria da população é negra, mas as posições de comando estão nas mãos dos brancos.”

Barbosa lembra que todo país forjado na escravidão e no colonialismo possui o racismo encrustado em suas estruturas políticas, sociais e econômicas. Por mais que muitos elogiem nossa suposta democracia racial, diz, o Brasil obviamente não escapa à essa regra. “Fomos construídos com base na exploração racial”, lembra, defendendo que já passou da hora de o país promover uma ampla reparação histórica à população negra. “É o único caminho para a paz.”

Embora lentamente, essa trilha vem sendo percorrida pelo poder público. “O Estado tem reconhecido a existência das profundas desigualdades raciais com a criação de ministérios, como a Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial, e da Fundação Palmares”, enumera Domingos Dutra. “Outros exemplos são a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial pelo Congresso, em 2010, e as cotas para negros nas universidades federais e no funcionalismo público.”

Representantes do movimento negro se queixam, porém, que algumas legislações comemoradas como avanço na luta contra o racismo não tenham saído do papel. Uma delas é a Lei federal 10.639, de 2003. Aprovado há dez anos, o texto obriga as escolas a incluírem conteúdo sobre História da África em suas grades curriculares. “Mas ela nunca foi implementada”, lamenta Elena Lucas. “Se não pressionarmos, essa lei jamais entrará em vigor.”

A coordenadora estadual de Políticas para a População Negra e Indígena comenta que a educação é um dos principais caminhos para se acabar com o racismo no país – e seu discurso encontra eco nas declarações de outros representantes do movimento negro. Primeiro, diz, porque possibilitaria a todos os estudantes aprender que os negros não se limitam apenas a “descendentes de escravos”. “Não somos apenas samba, futebol e carnaval”, argumenta. “Nossa cultura é riquíssima, mas também queremos ocupar outros espaços. Temos história e conteúdo.”

Em segundo lugar, Elena Lucas cita que a inclusão educacional dos negros, sobretudo nas universidades, é imprescindível. “Com as ações afirmativas em curso, teremos em muito pouco tempo um maior percentual de negros mais preparados e capacitados.” Domingos Dutra arremata: “Com mais formação, os negros vão ocupando mais espaços de poder.”

Samoury Barbosa, da Articulação Política de Juventudes Negras, lembra, porém, que um dos maiores obstáculos para o fim do racismo no Brasil é a cumplicidade das elites com o status quo. O jovem recorda que, apesar de terem sido protagonizadas pelos negros, tanto a luta contra o apartheid na África do Sul como a batalha pelos direitos civis nos Estados Unidos contaram com apoio de setores estabelecidos da sociedade. “Havia brancos empenhados na causa.”

Por isso, Samoury defende que o racismo não é um problema apenas dos negros, mas sim de toda a sociedade brasileira. “Mandela já dizia: o maior problema não é o grito dos racistas, mas o silêncio dos bons”, cita. “Nesse momento, enquanto todos prestam homenagens à memória de Mandela, muitos continuam compactuando com o racismo, porque se calam diante das injustiças. É vergonhoso.”

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