Crises

Irlanda do Norte inicia rodada de negociações de paz mais importante desde 2010

Serão discutidos uso de bandeiras, a realização de paradas e como se lidar com o passado de conflito civil

Carlos Latuff/OperaMundi

No ano passado, a visita da rainha Elizabeth II teve campanha de boicote em meio ao acirramento

Belfast – Em meio a uma crise política, a protestos nas ruas e nas redes sociais, os líderes da Irlanda do Norte iniciam nesta semana a mais importante rodada de negociações do processo de paz desde a transferência dos poderes de polícia e justiça para Belfast em 2010. As conversas entre os políticos unionistas (que defendem que a Irlanda do Norte continue como parte do Reino Unido) e republicanos/nacionalistas (que buscam uma Irlanda unida), previstas para começar hoje (17), serão sobre bandeiras, paradas e como lidar com o passado de conflito civil, encerrado com o acordo de paz de 1998.

A rodada de negociações, oficialmente chamada de “Painel dos Partidos do Executivo da Irlanda do Norte”, terá como mediador o norte-americano Richard Haass, ex-enviado dos Estados Unidos para o processo de paz na região. Os próprios políticos de Belfast, após as tentativas fracassadas para um acordo sobre os temas em pauta, convidaram Haass para a tarefa. As reuniões do “painel” ocorrerão entre setembro e dezembro.

Desde o fim do ano passado, a Irlanda do Norte vive uma fase de violência e protestos motivada, principalmente, por decisões legais que restringiram o uso da bandeira britânica no prédio do Legislativo de Belfast e alteraram o roteiro de um desfile de bandas protestantes também na capital. Ocorreram depredações e confrontos entre manifestantes unionistas e policiais.

Richard Haass foi escolhido como mediador entre as duas correntes políticas
A realização de uma parada no interior da Irlanda do Norte em homenagem a militantes mortos do IRA, o Exército Republicano Irlandês, também irritou os protestantes e unionistas.

A instabilidade e o impasse político são uns dos mais graves desde 2007, quando o governo compartilhado entre unionistas e republicanos foi restaurado. A pressão dos protestantes tem alimentado as especulações sobre a continuidade no cargo do primeiro-ministro da Irlanda do Norte, o líder do DUP (sigla em inglês para partido unionista democrático), Peter Robinson.

“Se as novas negociações fracassarem, seria um duro golpe no governo. As pessoas novamente vão questionar a sua habilidade para resolver os problemas. O Parlamento local atual tem uma taxa de aprovação de apenas 9%”, diz David McCann, pesquisador da University of Ulster, na Irlanda do Norte.

Para McCann, as chances de um fracasso das negociações são maiores do que as de sucesso. Ele frisa, por exemplo, que os manifestantes lealistas (unionistas de atuação comunitária e/ou de classes mais baixas) e os que protestam nas ruas e nas redes sociais dificilmente aceitarão algum acordo, o que tornaria a missão de Haass ainda mais difícil.
“A atual representação parlamentar unionista tem muito pouca credibilidade junto aos lealistas. Os lealistas acham que já cederam demais. Qualquer concessão em paradas, por exemplo, vai ser vista como se vender ao Sinn Féin (principal partido republicano). Assim é difícil que um político unionista assine um acordo substantivo”, afirma.

Desde a decisão da Assembleia local de Belfast de não mais içar a bandeira britânica todos os dias do ano, os lealistas se tornaram em geral mais ativos na manifestação e na participação política. Por exemplo, o número de bandeiras britânicas em postes na Irlanda do Norte, demarcando as áreas de predominância protestante, aumentou de um ano pra cá.

Lealistas mantêm um acampamento em prol dos seus “direitos civis” no norte de Belfast. O protesto é porque em julho passado, na região, um desfile de bandas protestantes não foi autorizado a atravessar um quarteirão de moradores católicos. Em redes sociais como o Facebook, são vários os perfis lealistas. Alguns se dizem contra o acordo de paz e expressam opiniões sectárias. É possível que neste sábado haja uma grande passeata lealista no centro de Belfast.

O cientista político Michael Anderson, que demonstra confiança nas novas negociações – “Haass não iria se engajar no processo se não estivesse confiante de que um bom resultado é possível” – diz que o mediador precisa convencer os partidos unionistas a enfrentarem de fato os protestos e a resistência lealista a decisões legais.

“Os obstáculos mais graves estão do lado unionista. Os líderes unionistas não têm conseguido convencer os lealistas das vantagens do processo de paz. O IRA debandou, o Sinn Féin está no governo, que é parte do Reino Unido, e aceitou que uma Irlanda unida só será possível com um plebiscito. Republicanos e nacionalistas podem se perguntar o que eles precisam fazer mais para convencer os unionistas de que a guerra acabou”, afirma Anderson, da University College Dublin.

Gareth Mulvenna, pesquisador da Queen’s University Belfast, mostra perspectiva distinta. “A classe trabalhadora protestante sempre se viu como perdedora, tanto no sentido econômico, quanto pela necessidade de estar sempre vigilante por causa da ameaça que a agitação republicana representa para o seu estilo de vida”, diz. “Muitos lealistas estão sentindo que a sua cultura está sendo bloqueada toda hora e chegaram ao limite disso.”

Para Mulvenna, os protestos lealistas, vistos por muitos como um atraso, têm despertado uma consciência política entre protestantes. “Tenho ouvido pessoas em áreas da classe trabalhadora protestante falando sobre ‘primavera lealista’. Essa primavera se faz visível na ajuda intracomunidade, no ativismo e em manifestações artísticas nesses lugares”.

Ele afirma que as negociações mediadas por Haass têm que ir além dos representantes dos partidos e buscar a participação de ativistas e grupos locais. “O cidadão comum está ou completamente desligado dessas negociações ou as vê apenas como uma forma de o governo mostrar que está trabalhando”, afirma.

O terceiro tema do painel de negociações, o passado de conflito civil, é bem mais complexo que bandeiras e paradas. Na semana passada, a Anistia Internacional divulgou um relatório em que critica o fracasso e a falta de vontade política do governo britânico e dos partidos da Irlanda do Norte em lidar com o passado de conflito.

Segundo a Anistia, vítimas e familiares de vítimas do conflito, tanto do lado católico quanto do protestante, sofrem com os insucessos para reparar os abusos, o que contribui com as divisões na Irlanda do Norte. Para o pesquisador David McCann, há enormes dificuldades para um acordo sobre esse tópico. “Quem são as vítimas do conflito? Vai ser difícil para o Sinn Féin aceitar um acordo que não inclua alguma forma de reconhecimento aos voluntários do IRA, e vai ser ainda mais difícil os unionistas concordarem com isso”, diz. Vítimas e familiares de vítimas, organizados em grupos ou não, principalmente do lado protestante, têm visibilidade e peso político na Irlanda do Norte.

Recentemente, o lado unionista do governo compartilhado voltou atrás e suspendeu a construção de um centro de resolução de conflitos na área de uma antiga prisão perto de Belfast, depois do lobby das vítimas contra o projeto. O centro seria financiado pela União Europeia e desenhado pelo arquiteto Daniel Libeskind.

Nessa prisão morreram presos republicanos no início da década de 1980 por conta de uma greve de fome. Eles, que são considerados heróis para muitos republicanos e terroristas para os unionistas, exigiam com a greve o status de prisioneiros políticos, mas o governo britânico recusou.

A mudança de posição do principal partido unionista sobre o centro de paz é mais uma dificuldade para as negociações que começam nesta semana. “Esse fato azedou as relações dos unionistas com o Sinn Féin e mina a confiança necessária entre os dois partidos para um acordo”, afirma McCann.

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