Diplomacia

Ovacionado no ABC, Amorim diz que Brasil precisa se preparar para ‘guerra do futuro’

Ministro da Defesa teve noite de popstar em São Bernardo do Campo, onde deu autógrafos, contou bastidores de sua época como chanceler e reafirmou desproteção do país contra ataques cibernéticos

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“Devemos estar capacitados para defender ao menos nossas estruturas críticas e nossos recursos naturais”, afirmou Celso Amorim

São Paulo – “Brasil e América do Sul não podem ter ilusões: devem se preparar para a guerra do futuro – não para fazê-la, mas para evitá-la. É como diz o ditado: se você quer a paz, prepare-se para a guerra.” Foi assim que o ministro da Defesa, Celso Amorim, resumiu o despreparo dos países da região para enfrentar as ameaças de ataques cibernéticos que há tempos vêm sendo alertadas por especialistas em informática, mas que se tornaram prioridade após as revelações do ex-agente de inteligência norte-americano Edward Snowden. “Não podemos nos defender de tudo, nem os Estados Unidos podem, mas devemos estar capacitados para defender ao menos nossas estruturas críticas e nossos recursos naturais. E isso exige investimentos massivos em ciência e tecnologia.”

Celso Amorim foi a principal atração de ontem (16) na Conferência “2003-2013: Uma Nova Política Externa”, promovida em São Bernardo do Campo (SP) pela Universidade Federal do ABC e pelo Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais, que integra sindicatos da CUT e organizações políticas interessadas no tema. Foi o segundo dia de debates. Na segunda-feira (15), o chanceler Antonio Patriota havia comparecido ao seminário, que na próxima quinta-feira (18) será encerrado com uma palestra do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o papel do Brasil no mundo.

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Apontado como um dos principais responsáveis pelas prioridades estabelecidas pelo país em política internacional a partir de 2003, quando assumiu como ministro das Relações Exteriores, cargo que deixou apenas em 2010, Celso Amorim foi ovacionado repetidas vezes pela plateia. Teve dificuldades para chegar até o palco, de onde proferiria sua conferência, e também para sair de lá: uma multidão de estudantes o cercou na entrada e na saída, tirando fotos e pedindo autógrafos, enquanto sua escolta esperava apreensiva do lado de fora. A tietagem impediu inclusive que o ministro concedesse entrevistas à imprensa antes de deixar o auditório.

Novas armas

“Vivemos num mundo formado por Estados-nação, e nesse mundo ataques de variados tipos continuarão a ocorrer”, disse, durante a palestra, referindo-se às denúncias de espionagem eletrônica por parte dos Estados Unidos de que o Brasil e outros países, de acordo com Snowden, estariam sendo objeto. “Podemos reagir a alguns deles de forma diplomática, e devemos, mas devemos estar preparados para reagir, não necessariamente com ataques agressivos, mas com uma defesa robusta.”

Assim como fez durante sabatina no Congresso, na semana passada, logo após as revelações do jornal O Globo, Celso Amorim reafirmou que o Brasil está engatinhando em defesa cibernética. “Mal despertamos para o assunto”, reconheceu. “O tema foi incluído na estratégia nacional de defesa há apenas quatro ou cinco anos. Não é que não fizemos nada: começou agora, estamos fazendo e temos que fazer mais.”

De acordo com o ministro, o território digital é apenas mais um flanco em que o país – e os vizinhos sul-americanos – devem estar preparados para resistir. “Temos recursos altamente cobiçados e cada vez mais escassos, como a capacidade de produção de alimentos, energia e água”, enumerou. “Temos que defendê-los, não só com as armas do século 19 e 20, mas também com as armas e os escudos do século 21 – e isso inclui a cibernética.”

Giro diplomático

Antes de abordar o tema que está atraindo a atenção dos órgãos de segurança do país, Celso Amorim se dedicou a contar sua experiência como condutor do “giro diplomático” experimentado pelo Brasil a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República. Para defini-lo, o ministro relembrou as palavras com que, ainda em 2003, classificou as transformações que queria implementar nas relações exteriores brasileiras: o país passaria a adotar uma política “altiva e ativa”, disse na ocasião.

“Eu ainda não havia conversado em detalhes com o presidente Lula, mas tinha que definir em poucas palavras as diferenças que teríamos em relação a governos anteriores no que se refere, por exemplo, à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ou ao Mercosul”, recorda. “Ser altivos quer dizer que não deveríamos mais nos submeter às potências: tínhamos condições de expor e defender nossos interesses e pontos de vista. E, sendo ativos, quebraríamos com a concepção anterior de que o Brasil não devia ter papel protagônico no cenário internacional, não deveria se arriscar.”

Em resumo, continua o ministro, essa política externa “altiva e ativa” se contrapunha à ideia “domesticada e autodomesticável” das relações internacionais que até então, avalia, definia o Itamaraty. Imbuído desse novo princípio, o ministério, sob comando de Amorim, passou a atuar de duas maneiras: reagindo à agenda internacional imposta pelas grandes potências, pautado pela defesa dos interesses do país e não pela subserviência às nações mais poderosas; e, ao mesmo tempo, influenciando na definição da agenda global e regional. “Queríamos construir – ou ao menos contribuir para a construção – de uma nova ordem política e econômica”, revela. “E foi o que nos fizemos, claro que com limitações.”

Respeitabilidade

Como exemplo dessa atuação propositiva no plano internacional, Amorim cita a liderança do Brasil na formação do Grupo de Amigos da Venezuela logo no início do governo Lula. Na época, Hugo Chávez acabara de resistir a um golpe de Estado orquestrado em 2002 pela elite empresarial venezuelana em articulação com setores das forças armadas e os governos conservadores dos Estados Unidos e Espanha. Como resultado da instabilidade política, lembra o ministro, o país vizinho enfrentava graves distúrbios sociais que, na avaliação do Itamaraty, poderiam resultar em conflitos civis violentos. “Era um problema que existia: tínhamos não apenas que nos posicionar contra ou a favor do governo, mas ajudar a encontrar solução pacífica para o impasse.”

Foi então que, segundo Amorim, o Brasil não teve medo de levar a cabo políticas exteriores nas quais acreditava. O ministro afirma que, por influência de Brasília, Hugo Chávez aceitou que o grupo de amigos da Venezuela fosse composto não apenas por países aliados de Caracas, mas também por seus antagonistas diplomáticos, como Estados Unidos, Espanha e Portugal. Com isso, e ancorados nos princípios estabelecidos pela Constituição venezuelana, o Itamaraty obteve legitimidade para defender a permanência do presidente no poder e condicioná-la à realização de um referendo revocatório dali a alguns anos – o que era previsto pela Carta do país. “Todos os países aceitaram essa solução.”

O ministro aproveitou para defender algumas atitudes “menos óbvias” tomadas pela política externa durante o governo Lula, que seriam aparentemente “injustificáveis” se comparadas à tradição passiva da diplomacia brasileira. Uma delas foi a oposição do país à invasão do Iraque pela coalizão anglo-norte-americana interessada na destituição de Saddam Hussein, em 2003. “Não éramos obrigados a tomar uma atitude, como no caso da Venezuela, mas ainda assim Lula quis se posicionar”, conta. “Não conseguimos evitar a guerra, mas marcamos uma importante postura de independência em relação aos Estados Unidos.”

Celso Amorim argumenta que essa diferenciação frente a Washington possibilitou ao país ter sido convidado posteriormente a participar de fóruns internacionais que discutiram, por exemplo, a reconstrução do Iraque, a invasão do Líbano por Israel, a questão Palestina e até mesmo a proposta de encontrar uma solução pacífica para o programa nuclear iraniano. Embora nunca tenha se concretizado, até mesmo a pretensão brasileira de conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU tornou-se mais factível depois dessa demonstração de autonomia.

“Nosso pleito causava sempre muita resistência. Japão e Alemanha queriam reformar, mas sem a entrada de países em desenvolvimento. França tinha avançado um pouco, falava na entrada de ‘grandes países do sul’. Mas só passam apoiar explicitamente o Brasil depois dessas atitudes independentes”, avalia. “E ao contrário do que dizia a opinião pública brasileira, isso não causou nenhum atrito em nossa relação com os Estados Unidos. No caso do Irã, o próprio presidente norte-americano veio pedir nossa ajuda dizendo que precisava ter amigos que falassem com os países que não eram amigos deles. Ganhamos grande respeitabilidade.”