Países querem reduzir poder dos EUA na Corte Interamericana de Direitos Humanos

São Paulo – As atenções da América Latina estão voltadas nesta sexta-feira (22) para a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, onde chanceleres dos países-membros debaterão […]

São Paulo – As atenções da América Latina estão voltadas nesta sexta-feira (22) para a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, onde chanceleres dos países-membros debaterão um pacote de reformas para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que pode tanto limitar quanto fortalecer a comissão.

O debate sobre o funcionamento do Sistema Interamericano, que já leva vários meses, contou inclusive com um período de consulta pública, aberto em meados de fevereiro deste ano, pela própria CIDH, que acolheu recomendações de governos, organizações de direitos humanos e da sociedade civil sobre reformas em seu regulamento, políticas e práticas, considerando as propostas feitas em 2011 por um grupo de reflexão do Conselho Permanente da OEA.

No cenário atual, Brasil, Argentina, México, Uruguai e Chile se posicionam a favor da promoção de reformas moderadas, muitas delas propostas pela própria CIDH. Outros países, como Venezuela, Nicarágua, Bolívia e Equador, além dos demais membros da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba), esperam mudanças mais profundas e relacionam os procedimentos do Sistema Interamericano com a origem de seu financiamento, prioritariamente norte-americano, e o lugar de sua sede, em Washington.

Países como Estados Unidos e Canadá defendem com afinco o que consideram ser a “autonomia” e a “independência” da CIDH, e se opõem às reformas reivindicadas pelos demais. Apesar de figurarem entre os maiores doadores de recursos para o funcionamento da comissão, ambos não ratificaram a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de San José) e, portanto, não reconhecem a competência da Corte Interamericana para julgar casos de violações em seus próprios territórios.

Na semana passada, membros da Comissão Interamericana se reuniram na cidade equatoriana de Guayaquil e elaboraram uma declaração de oito pontos de acordo para reformas que serão levados à Assembleia Geral. Algumas iniciativas, que preveem maior controle para a emissão de medidas cautelares ou até mesmo a inabilitação da comissão para ditar as mesmas, não tiveram consenso na reunião, segundo o próprio chanceler do país, Ricardo Patiño.

Para Gastón Chillier, diretor-executivo do Centro de Estudos Legais e Sociais da Argentina, a moderação de países de relevância para a região como a Argentina e, principalmente o Brasil, deve fazer com que os outros amenizem as reivindicações, contentando-se com medidas que já resultariam em um fortalecimento da Comissão e da Corte Interamericana. A tendência é que uma reforma no estatuto da CIDH, por exemplo, não seja discutida na Assembleia.

A necessidade de diminuir a influência norte-americana – ainda que simbólica – na CIDH é um assunto que ganha força e conta com o apoio da maioria dos países latino-americanos. Entre as propostas para uma mudança nesta correlação de forças está a de que os países da região assumam o financiamento do Sistema Interamericano e que a sede da comissão seja transferida para um país signatário do Pacto de San José.

Chillier questiona o argumento de que os EUA influam sobre as decisões da comissão e da corte. “Mas não podemos nivelar por baixo”, disse ao Opera Mundi. “A posição dos países da região em politica exterior, a respeito do fortalecimento do Sistema Interamericano, não é se guiar pelos Estados Unidos, que provavelmente está entre os piores exemplos”, afirma.

Segundo ele, “quanto menos a comissão tiver financiamento externo, mais independente e mais forte vai ser”, mas essa possibilidade deve vir acompanhada do compromisso dos países signatários do Pacto de San José para suprir este financiamento, argumento também expressado pelo presidente equatoriano, Rafael Correa, durante a reunião em Guayaquil.

“Podemos fazer este esforço e, se algum [país] tem dificuldades, não se preocupe, o Equador suprirá essa cota, mas financiaremos o Sistema [Interamericano] entre aqueles que assinarem a Convenção”, propôs. Os países que assinaram a declaração final do encontro concordaram que contribuições externas devem ser aceitas quando não forem “condicionadas nem direcionadas”.

Para Chillier, é positivo que os Estados reivindiquem maior transparência dos organismos da OEA, em particular quanto aos direitos humanos. “É bom que a comissão preste contas sobre o uso de seus recursos e esteja disposta a críticas, não só dos Estados, como da academia”. Em sua avaliação, no entanto, “não se pode dizer que todo o trabalho siga um critério que não é transparente, que não é equânime, que não é imparcial”, afirma.

Outro ponto que figurou na declaração final do encontro em Guayaquil foi a universalização do Sistema Interamericano, com a “adesão de todos os Estados membros da OEA ao Pacto de San José” e que os membros da CIDH sejam eleitos somente entre os países signatários. O ponto ainda defende a “importância do equilíbrio entre os direitos e obrigações” dos Estados americanos.

Para o secretário executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH), Víctor Abramovich, essa preocupação mostra a importância da Convenção para “o funcionamento dos processos, para os governos, para a estabilidade democrática nos países e para o processo de integração”.

Chillier acredita que a falta de universalização na assinatura do mecanismo é um problema, mas que a desproporção entre o monitoramento dos Estados Unidos em relação a outros países é questionável. “Os EUA são o país que mais recebe pedido de medidas cautelares em caso de penas de morte, e em diversas questões. O informe sobre a situação dos migrantes no país, por exemplo, é muito critica”, afirma ele, garantindo que o Sistema Interamericano é o organismo que mais monitora sistematicamente o país quanto aos direitos humanos.

Segundo ele, os Estados Unidos “historicamente tiveram muito pouco compromisso com os organismos multilaterais de proteção dos direitos humanos, com o argumento de que seu sistema de proteção constitucional é suficiente”, afirmou, ressaltando, no entanto, que “é claríssimo” que a justificativa do país não condiz com a realidade.

A negativa dos EUA em aderirem a mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos, na sua avaliação, tem a ver “com a atitude de um país hegemônico durante muito tempo, que não está disposto a ser avaliado por instituições que não são as nacionais”. Entre as graves violações no país que evidenciam esta falta de controle, aponta a situação de migrantes e a atuação na guerra contra o terrorismo, com “assassinatos seletivos, até a manutenção de pessoas em condição de desaparecidos em prisões secretas”.

Sede nos EUA

A crítica ao fato de a CIDH estar sediada em Washington também esteve presente em forma de proposta na declaração de Guayaquil, onde se considera a conveniência a estudar a possibilidade de que a sede seja transferida a algum país signatário do Pacto de San José. “Que a CIDH esteja em um país que não ratificou o Pacto e que 98% dos casos [levados ao organismo] provenham da América Latina são discussões necessárias”, diz Chillier.

Segundo Abramovich, a transferência requer uma mudança no estatuto da comissão, que vale ser debatida à medida que dê ao Sistema Interamericano maior legitimidade. “Considero que a questão de estar sediada nos EUA não implica em influência, mas muitas vezes a questão da imparcialidade e da independência de um tribunal não é só o que é, mas o que parece ser”, analisa.

Para ele, a questão também é válida no marco do debate regional sobre o papel hegemônico dos EUA, sobre a criação de espaços regionais e sobre autonomia politica. “Acredito que a tendência dos Estados seja a de judicializar um pouco mais a comissão, de que seja mais parecida a um tribunal, mais imparcial. Portanto, [a proposta] tem coerência e é um debate que pode contribuir para uma maior legitimidade política para o sistema”, considera.

Chillier acredita também que o tema da transferência de sede “poderia servir para a discussão das mudanças políticas que ocorrem na região”, diz. Para ele, o destino da sede não precisaria ser necessariamente a Argentina, como mencionou o presidente equatoriano Rafael Correa, mas “qualquer país da região que garanta sustentabilidade”.

Reformas profundas

Outro ponto proposto em Guayaquil é que todas as relatorias da CIDH “sejam consideradas especiais” e tenham a garantia financeira para o funcionamento. A reivindicação inicial do grupo que defende reformas mais profundas era contrária ao orçamento desproporcional da relatoria de Liberdade de Expressão em relação às demais.

Segundo o chanceler equatoriano, Ricardo Patiño, a relatoria de direitos da infância, por exemplo, conta com 100 mil dólares por ano e a dos direitos dos migrantes com 50 mil. Já os dólares anuais da relatoria de liberdade de expressão chegam à casa do milhão. “Esse desequilíbrio é inaceitável. Propomos que todos os direitos sejam tratados igualmente”, manifestou.

Para Chillier, a CIDH deve dar garantias de que todas as relatorias contem com financiamento para funcionar devidamente, além de estabelecer “critérios estratégicos para trabalhar certos temas de maneira mais sistemática”. Por outro lado, a elevação do piso de ingresso das relatorias também poderia ser melhor esclarecida.

Quanto à emissão de medidas cautelares, Abramovich esclarece que hoje, os governos da região não estão questionando a competência da Corte para ditá-las, mas sim pedindo um procedimento mais formal de tramitação, demanda que, se atendida, fortalecerá a comissão.

“A última reforma do regulamento, em 2009, apontou nessa direção. Talvez não tenha sido suficiente. Então a CIDH propõe que a emissão de medidas tenha fundamentos públicos. Isso poderia atrasar um pouco mais o trâmite, mas ao mesmo tempo dará mais garantias”, conclui.  

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