Há 40 anos, as urnas barravam o impeachment de Salvador Allende no Chile

Apesar de apoio popular, legitimado em eleições, projeto socialista de Salvador Allende foi barrado pela truculência conservadora do Chile (CC/allendesupporters) Porto Alegre – No dia 4 de março de 1973, […]

Apesar de apoio popular, legitimado em eleições, projeto socialista de Salvador Allende foi barrado pela truculência conservadora do Chile (CC/allendesupporters)

Porto Alegre – No dia 4 de março de 1973, um domingo, o Chile compareceu às urnas para substituir ou reafirmar os nomes de seu Congresso. Toda a Câmara de Deputados e metade do Senado passariam por renovação. Naquela altura, o socialista Salvador Allende já havia cumprido dois anos e meio dos seis previstos para seu mandato presidencial, e o pleito era muito mais do que um simples termômetro da aceitação de suas reformas. Diante da crise econômica vivida pelo país, a oposição acreditava numa vitória esmagadora para iniciar a deposição do governo usando a lei. O objetivo: conquistar dois terços das cadeiras do Legislativo, número que garantia o sucesso de um pedido de impeachment.

Para entender a dimensão que aquelas eleições tomaram, é preciso olhar para o Chile dos meses e anos anteriores. Allende havia chegado ao poder com a Unidade Popular (UP), uma ampla coalizão de esquerda liderada por seu Partido Socialista e pelo Comunista. A plataforma de campanha falava na “via chilena para o socialismo”, uma transição que se pretendia democrática, seguindo as leis existentes e sem pegar em armas. Num continente recheado de ditaduras de direita impulsionadas pela Guerra Fria, o discurso foi visto com reservas. Após uma corrida polarizada por três nomes fortes, Allende venceu em setembro de 1970 sem maioria absoluta, com apenas 36% dos votos, e raras vezes conseguiria formar um consenso em torno de suas propostas. A UP se baseava em 40 premissas fundamentais, dentre as quais a nacionalização das minas de cobre, a estatização do sistema bancário e a aceleração da reforma agrária.

A “via chilena” encontrou resistências antes mesmo de vencer as eleições e, após o êxito do primeiro ano de governo, sofreu uma violenta implosão. As razões foram muitas. Por um lado, a ineficiência das empresas recentemente estatizadas e o furor causado por um presidente que não reprimia os movimentos sociais – o que causou abusos de organizações de base e amedrontou os chilenos reticentes. De outra ponta, os boicotes e sabotagens daqueles que desejavam o fim iminente da “ameaça marxista”, fosse estocando produtos para criar uma inflação artificial, fosse através do terrorismo promovido por grupos paramilitares. Como seria amplamente documentado nas décadas seguintes, não faltou o suporte dos Estados Unidos na desestabilização do Chile. O governo Nixon cortou os créditos ao país e financiou ações contrárias à UP.

Em outubro de 1972, a cinco meses das eleições parlamentares que fizeram aniversário segunda-feira, Salvador Allende deparou-se com a maior crise de sua administração até ali. Com o sindicato dos caminhoneiros nas mãos de León Vilarín, militante do conservador Partido Nacional, os transportadores iniciaram uma greve que se estendeu por todo o país. A CIA distribuiu os dólares que mantiveram os veículos estacionados – como comprovou a queda abrupta do preço da moeda no mercado paralelo –, e as facções armadas da oposição se encarregaram de assustar quem recusou o esquema. Os poucos caminhões que se aventuravam pelas estradas eram apedrejados ou tinham os pneus furados por “miguelitos”, pregos espalhados no asfalto. A paralisação teve o apoio de sindicatos de comerciantes e associações de médicos, e os responsáveis pelo transporte coletivo também reduziram a oferta de ônibus nas ruas.

A esquerda chamou o episódio de “greve dos patrões”, e ela só chegou ao fim quando Allende incluiu em seu gabinete alguns militares da linha “constitucionalista” – aqueles que, segundo se acreditava, jamais encabeçariam um golpe de Estado. O general Carlos Prats, comandante do Exército, assumiu o Ministério do Interior, cargo que equivalia à vice-presidência. Prats não decepcionou o governo: liderou as negociações com os grevistas e, em quatro dias, encerrou o movimento que durava quase um mês. Ele se tornaria um nome tão fundamental para sustentar o governo contra os golpistas que foi preciso forçar sua renúncia para que o levante das Forças Armadas ocorresse.

Vítima de uma intensa campanha de desmoralização promovida pela imprensa conservadora, o general deixaria o comando do Exército no fim de agosto de 1973. O cargo recairia sobre Augusto Pinochet, que dezoito dias mais tarde derrubaria a Unidade Popular. Nas eleições parlamentares de 4 de março, porém, ainda se acreditava no diálogo – ou numa saída menos sangrenta, já que a oposição trabalhava com a ideia do impeachment. Era a última chance de derrubar o governo dentro do jogo democrático: não haveria outro pleito antes do fim do mandato de Allende, em 1976.

Os partidos contrários à Unidade Popular não repetiram o erro de concorrer em separado e se juntaram numa mesma coligação. O Partido Nacional e o Partido Democrata Cristão – uma sigla centrista cuja ala à esquerda vinha sendo engolida pela bancada conservadora – se somaram na Confederación de la Democracia (CODE). A nova coalizão venceu as eleições sem vencer. Nos resultados, que só foram finalizados às nove da noite do dia 5 de março, a CODE arrebatou 55% do eleitorado, bem longe dos dois terços necessários para executar o plano. Os 44% obtidos pela UP eram ambíguos: mostravam que o governo seguia sem maioria absoluta, mas ao mesmo tempo – e apesar da crise – ele aumentava seu número de parlamentares.

Na prática, as eleições de 40 anos atrás foram uma derrota geral: a oposição ficava sem quórum para um impeachment e a situação não tinha representantes suficientes para aprovar suas propostas. Do dia das eleições até o voo dos caças para bombardear La Moneda, em 11 de setembro de 1973, seriam vividos seis meses e uma semana. À base de boicotes e erros de planejamento, em julho a inflação bateria em 1% ao dia. O extremismo ganharia espaço. Nos últimos meses da UP, o país registraria em média um atentado terrorista por hora contra estradas, oleodutos ou torres de transmissão de energia, ajudando a semear o caos. Naqueles seis meses e uma semana, os moderados da Unidade Popular e da democracia-cristã tentariam de todas as formas chegar a um acordo, antes de serem silenciados por seus correligionários mais radicais.

Sem diálogo e frente a uma crise cada vez mais grave, o golpe brutal florescia para sepultar não só o governo Allende, mas todo o sistema político vigente no Chile. Ainda não se sabia, mas as eleições parlamentares de 1973 seriam as últimas celebradas no país pelos próximos dezesseis anos.

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