Lei de Meios na Argentina abre caminho para indígenas resgatarem cultura

Com uma dezena de rádios e a primeira TV exclusiva, povos originários apostam na comunicação para criar laços entre as comunidades e resgatar idiomas e hábitos esquecidos

Os mapuche do oeste argentino já conseguem se comunicar por meio das rádios (Foto: Flickr Radio Nederland Wereldomroep)

Buenos Aires – Gabriela Cardozo integra uma poderosa rede de comunicação argentina. A FM Pachacuti não derruba presidentes, não faz o Congresso aprovar projetos de lei, não tem amigos no Judiciário. Mas resgata culturas. Criada em 2011, a emissora de Abra Pampa, um povoado de menos de oito mil almas na província de Jujuy, no noroeste, foi um dos primeiros frutos da Lei de Meios Audiovisuais sancionada em 2009 na tentativa de garantir maior diversidade à difusão via rádio e televisão.

“A gente fica sabendo o que acontece com outros povos, socializa com as pessoas os problemas e podemos nos ajudar. Queremos frear a mineração, que contamina a água, o ar, o solo”, afirma Gabi Cardozo, nome artístico desta camponesa recém-convertida em comunicadora popular. A indígena de 27 anos mora em uma vila com cem famílias e é a responsável por difundir informações dali para Abra Pampa e para outros rincões argentinos.

Os indígenas tiveram direito a vários artigos “particulares” sobre a Lei de Meios. São pessoas de “direito público”, o que significa que o Estado está obrigado a conceder licenças de rádio e TV para eles em qualquer comunidade que as reivindique. Em julho deste ano, a autoridade reguladora emitiu mais cinco autorizações de operação, e calcula-se que dez emissoras controladas pelos povos originários estarão no ar até o primeiro bimestre de 2013. “Já não falamos quechua. Fomos perdendo nossa língua com o tempo. Agora estamos vendo como vamos recuperar isso”, afirma Gabi Cardozo, esperançosa de que as novas concessões sirvam ao resgate da cultura perdida ou ocultada por vergonha e medo de preconceito. Wichi, huarpe, diaguita, omaguaca, kolla: são 22 as nações originárias que vivem na Argentina. 

No último dia 7 de dezembro começou a funcionar a primeira emissora de televisão comandada por indígenas. A Wall Kintun será comandada pela etnia mapuche e transmitirá desde Bariloche, na Patagônia, com uma programação voltada à promoção dos direitos humanos e da cidadania. Todas as emissoras estão reunidas pela Coordenadora de Comunicação Audiovisual Indígena, surgida após a Lei de Meios. Entre os dias 6 e 8 de dezembro, 150 comunicadores de povos de todo o país foram a Buenos Aires para o segundo encontro voltado a discutir um sistema colaborativo de produção. No caso da Wall Kintun TV, programas sobre o universo indígena serão feitos em parceria com produtoras independentes e com uma escola de comunicação popular. Além disso, é possível baixar gratuitamente conteúdo disponível em um banco de produção nacional e independente criado pela Lei de Meios para garantir que emissoras comunitárias consigam manter a grade de programação.

Uma das responsáveis por coordenar a nova televisão, Inalén Antillanca, afirmou durante uma teleconferência com os colegas em Buenos Aires que será importante garantir uma programação ampla, com temáticas diversas. “A emissora será um veículo para difundir a cultura, a realidade e a atualidade do povo mapuche. Um veículo para que muitos se reencontrem com sua cultura e seu idioma, que através de gerações foram se perdendo. Será útil para a difusão da cultura mapuche para dentro e para fora do povo, prestará serviços e dedicará espaço ao entretenimento. Nós, gente mapuche nascida e criada neste lugar, na zona do grande lago Nahuel Huapi, queremos contar nossa história, nossas formas e maneiras, com nossos próprios meios, com nossa gente e desde nosso lugar.”

Damian Loreti, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires e um dos articuladores do texto que resultou na Lei de Meios, considera que a concessão das licenças indígenas representa um “marco de justiça” para o país, que, com isso, passa a cumprir uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que define os direitos dos povos originários. “É justo para aqueles a quem historicamente os meios de comunicação estavam fechados”, diz, em entrevista concedida à RBA no dia seguinte ao 7 de dezembro. “Um outro aspecto é que o uso dos idiomas dos povos originários deixou de ser uma questão subsidiária. Historicamente as leis argentinas dizem que o idioma oficial é o castelhano. E agora se reconhece um direito que vem de uma reivindicação importante.”

Um lugar no país

“Comunicar-se é importante para que outras comunidades saibam o que estamos fazendo”, acrescenta Ronaldo Sánchez, de 22 anos, que viajou de Rosário a Buenos Aires pela primeira vez para participar do congresso. No ano passado a comunidade em que vive recebeu a licença para uma rádio comunitária, e ele, natural de uma vila camponesa na província de Chaco, rapidamente se fez entrevistador, repórter e roteirista. “Falamos de nossa cultura, que não se pode perder. Mostramos as pessoas da nossa comunidade.”

O encontro foi realizado na antiga Escola de Mecânica da Armada (Esma), maior centro de tortura da última ditadura (1976-83), e hoje é utilizado por vários grupos de promoção de direitos humanos. O congresso serviu à capacitação dos jovens comunicadores que começaram a surgir. Ao longo dos três dias foi estimulada uma rede de intercâmbio de programação e foram realizadas oficinas de capacitação para o uso de novas tecnologias e a produção de conteúdo.

Em busca de experiência, Lucas Valdiviesa, de 20 anos, viajou de Catamarca, no extremo oeste, até a capital. A comunidade dele, um povoado dentro de um povoado de mil habitantes, ainda não tem uma emissora local, e ali tampouco chegam sinais de televisão e de internet. Hoje cursando faculdade na capital da província, Lucas passou a ser a ponta de lança para captar informações que permitam integrar a comunidade dele às demais e ao país. “Vim aqui para aprender o que está sendo feito”, resume, atento a todos os movimentos.

Miguel Castillo, de 29 anos, representa uma vila da região de Bariloche que apresenta estágio mais avançado. Com licença nas mãos, aguarda apenas a instalação de alguns equipamentos para virar a chavinha e colocar a rádio comunitária no ar. Hoje, Huyquillum recebe apenas o sinal da Rádio Nacional, uma emissora pública estatal. “Vai servir muito para nos desenvolvermos internamente, não dependermos de outras comunidades. Os jovens do lugar podemos trocar ideias, é isso que está faltando lá, e tem a ver com desenvolvimento econômico e social”, diz. “Podemos estabelecer contato com nossos povos e unir nossa comunidade. Eu nem sequer sabia da existência de algumas famílias mapuche na nossa vila. Estava tudo muito fechado.”

Miguel conta que a cultura mapuche veio sendo perdida, sufocada pelo medo criado entre os descendentes por conta do preconceito que sofreram. Nos últimos anos, porém, a situação começou a se inverter, e os jovens se esforçam para resgatar a cultura. As emissoras que já operam na região transmitem informações sobre saúde e educação voltada aos mapuche, e cumpriram um importante papel na prestação de serviços. 

Em junho do ano passado, quando o vulcão Puyehue, do outro lado da fronteira, no Chile, despertou de um sono de 51 anos, os meios de comunicação tradicionais de todo o país – e do exterior – se mobilizaram para mostrar o estrago feito ao turismo na região de Bariloche, coberta pelas cinzas que durante vários dias impediam a circulação nas estradas e o oferecimento de serviços básicos. Poucos se lembraram que os dejetos expelidos pelo vulcão acabavam também se depositando nas áreas indígenas, impedindo a agricultura. Foram as rádios comunitárias dos mapuche que passaram a garantir um intercâmbio sobre as condições climáticas e de solo e sobre quais áreas deveriam ser esvaziadas temporariamente.

“Temos princípios e valores dos quais devemos nos sentir orgulhosos. Com esses valores vamos construir a diversidade da Lei de Meios”, afirmou na abertura do congresso Matías Melillán. Um dos criadores da Coordenadora de Comunicação Audiovisual Argentina, Matías é um mapuche de San Martín de los Andes, ao lado de Bariloche. Tem um semblante sério, às vezes duro, e é bom de palavras. Ele representa os povos indígenas no Conselho Federal de Comunicação Audiovisual (Cofeca), um colegiado que apoia o órgão regulador na formulação de políticas públicas voltadas à implementação do novo marco legal. “De 2009 até agora fomos avançando. Termos um mapuche no Cofeca não se teria dado sem uma abertura política. E não se teria dado sem uma série de mudanças ocorridas desde 2003. Qual é o lugar que vamos ocupar no projeto nacional?”, cobrou. 

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