Analista afirma que os Kirchner preferem conflito como forma de governo

Professora de universidades portenhas avalia que Cristina tem conseguido desta maneira construir autonomia em relação ao poder econômico, um velho problema da democracia argentina

Na avaliação de Maria Esperanza, Néstor e Cristina garantiram com o enfrentamento a principal conquista desde 2003 (Foto: Casa Rosada)

Buenos Aires – Agentes e presidentes da ditadura, Poder Judiciário, produtores rurais, Grupo Clarín: a lista de gente incomodada com os Kirchner cresce sem parar de 2003 até hoje, e não se resume a quatro ou cinco nomes. Se no começo a busca pelo conflito foi intuitiva, hoje é racional, avalia a analista política Maria Esperanza Casullo, professora de las universidades de Rio Negro e Di Tella, em Buenos Aires.

“O maior problema da democracia argentina de 1983 para cá foi a fraqueza do poder político, a debilidade em construir autonomia em relação ao poder econômico”, afirma, em entrevista à RBA. “Este, para mim, é um dos maiores avanços dos dez anos de kirchnerismo. Conseguiu-se construir uma maior autonomia do poder político, Executivo e também do Legislativo, com respeito aos grupos empresariais.”

A conversa foi realizada em meio à tormenta entre governo, Judiciário e Clarín em torno da Lei de Meios. O maior grupo midiático do país conseguiu em 6 de dezembro a extensão da liminar que venceria no dia seguinte, e que o desobriga de cumprir com os mecanismos de desconcentração do controle das emissoras de rádio e televisão. Uma semana depois, vitória da Casa Rosada, com decisão judicial pela constitucionalidade da legislação. Mas, após três dias, nova sentença pró-Clarín, que recuperou a validade da liminar que o ampara. 

Para a analista, nada que chegue a atrapalhar Cristina Fernández de Kirchner, já que ajuda a mostrar que o governo não ostenta o poder desmedido de que lhe acusam alguns meios de comunicação. “A sociedade argentina é antihegemônica, não gosta em geral de uma acumulação de poder”, argumenta. “A este governo convém ter um mecanismo de construção de poder mais amena frente à sociedade, e não passar a impressão de que tem um poder tão frontal.”

Confira a seguir trechos da entrevista concedida à RBA.

Como se analisa o conflito entre governo, Judiciário e Clarín?

De 1983 até aqui se avançou muito na construção do Poder Legislativo, no Executivo, mas o poder que não está sujeito à luz do público é o Judiciário. E as relações do Poder Judiciário com os sucessivos governos e, mais que nada, com grupos empresariais sempre existiram, mas ninguém falava disso. É a primeira vez que se tematiza essa relação. Um dos juízes que está no caso Clarín foi recusado porque foi a férias pagas de 15 dias a um hotel luxuoso pagas pelo Clarín.

A Justiça na Argentina é um poder que vem há muitos anos em um sistema muito corporativo, é um poder que não gosta de ser apertado pelo governo de turno. Não gosta de ser pressionado. E tem diversos laços com grupos empresariais. É isso que atuou neste caso.

Há também um erro do governo em avançar do conflito com o Clarín ao conflito com a Justiça. Embora também seja difícil pensar em não antagonizar-se com eles porque se tem um juiz que vai de férias pago pelo Clarín, como fazer? Além disso, é um governo que tende a ser muito frontal.

A senhora escreveu que este é um governo que gosta do conflito. Não só não foge como o procura. Esta foi uma postura intuitiva ou racional?

Em algum momento foi intuitivo. Em outro momento foi racional. O maior problema da democracia argentina de 1983 para cá foi a fraqueza do poder político, a debilidade em construir autonomia em relação ao poder econômico. Raúl Alfonsín tentou fazer isso na década de 1980 com um governo relativamente de esquerda. Os atores econômicos e empresariais perderam rapidamente a confiança no governo, houve uma crise inflacionária. Durante o menemismo houve estabilidade, mas, bom, não houve autonomia do governo em relação aos setores econômicos. Foi uma paz social ao custo de que o governo se rendesse a todas as políticas do setor empresarial.

Este, para mim, é um dos maiores avanços dos dez anos de kirchnerismo. Conseguiu-se construir uma maior autonomia do poder político, Executivo e também do Legislativo, com respeito aos grupos empresariais. Não se pode esquecer que Clarín não é apenas um meio de comunicação. É um dos grupos empresariais mais importantes da Argentina. Tem o principal distribuidor de sinal de TV a cabo, controla Papel Prensa, foi sócio de Goldman Sachs e fez operações muito complexas no mercado financeiro. Não é só um enfrentamento com um diário.

Nesta série de enfrentamentos o governo aprendeu que uma das principais cartas é administrar o fator-surpresa. Este governo não tem vazamento de informações. Anuncia a estatização de YPF e até o dia anterior ninguém sabia. A outra é que todos os atores econômicos e sociais do país sabem que se você enfrentar o governo, o governo vai para cima. Então é muito complicado que os diferentes atores assumam os custos deste acirramento. É muito provável que enfrentando o governo se saia destruído. Então, esta dureza é muito racional.

Para o governo, quais os limites deste conflito? Em qual contexto isso deixa de funcionar?

Os limites são dois. Os primeiros são os que são colocados pelas instituições que na Argentina funcionam. Não estou definitivamente de acordo com essa ideia de que há um atropelo institucional. Em 2008 o Senado votou contra o governo a Resolução 120 [que aumentava os impostos sobre as agroexportações. Aí há um limite. O outro limite é social. Ou seja, quando a sociedade se cansa da escalada de conflito ou vê que se passou uma fronteira tolerável do que é construir o poder.

A pergunta vital no caso da Lei de Meios é se a Corte Suprema vai dizer se é constitucional ou não. O melhor cenário para o governo é que a Corte Suprema diga que é. Se isso ocorre, obviamente estamos pensando em um processo de dois, três, cinco anos em que o Clarín vai fazer recursos de absolutamente tudo que possa. Mas, se a Corte diz que é constitucional, todo o resto é secundário.

Agora, se a Corte diz que é inconstitucional, seria o primeiro exemplo de que tenho memória de 1983 para cá de que o Judiciário diz para deixar para trás uma lei consolidada. Todos os grupos, salvo o Clarín, já manifestaram por escrito o cumprimento da lei. Isso seria um limite muito claro e uma situação de crise institucional inédito.

A outra questão é que há um cansaço social muito grande que não sei como se expressaria. Provavelmente uma derrota nas eleições legislativas no ano que vem.

Atente para o fato de que não estou citando os partidos de oposição. Eles hoje não têm condições de colocar limites ao governo. São os outros poderes, ou a sociedade.

Depois do fracasso nas eleições presidenciais do ano passado, esperava-se um novo discurso e uma nova liderança. Mas são os mesmos de sempre.

Faz meses que venho publicando artigos sobre isso. Não é que eu tenha a bola de cristal, mas é evidente que a oposição vem fechada no microclima do Clarín, falando dos temas que interessam ao Clarín e que não interessam à sociedade. A oposição precisa encontrar um discurso econômico, que expresse claramente uma alternativa econômica ao governo. O tema central é o econômico. Clarín é secundário aos temas reais do país, que são outros, são o crescimento, o emprego, os impactos da crise internacional, a inflação. É articular um discurso que fale diretamente à sociedade e que seja menos “governocêntrico”, ou seja, que deixe de comentar o tempo inteiro o que está fazendo o governo. Não falam à sociedade. Este é o grande desafio que tem a oposição daqui até 2015.

Parece que Maurício Macri e Hermes Binner querem fazer um discurso de que o kirchnerismo teve seu lugar, teve dez anos, e agora é um governo que já foi, passou. Que é preciso pensar como se segue adiante, pensando os problemas de agora. E deixar de discutir se o kirchnerismo é satânico ou não. Se os Kirchner vão para casa amanhã, o país já mudou, não poderá voltar aos anos 1990. Em algum sentido é parecido ao que vimos na última campanha do PT no Brasil: a dúvida entre criticar um governo e dizer que se pode fazer melhor que um governo bem avaliado. Isso é o que não conseguem articular.

O interessante da Argentina é que, ainda que existam figuras relativamente novas, como Binner, acabam tragadas. Centrados em um discurso sobre temas institucionais, sobre ameaças à República. São discursos que não têm ressonância na sociedade porque a sociedade não entende que haja ameaças à República. A sociedade está preocupada com a inflação, com a manutenção dos salários em um contexto de crise econômica. A sociedade fica nervosa com os trens, que são lentos, com as tarifas de eletricidade. O povo votou em Cristina em 2011. Então, dizer que este é um governo totalitário é o mesmo que chamá-los de estúpidos. Este é o grande desafio. 

Note-se que as principais figuras políticas não se meteram no conflito com o Clarín. Os que criticam são figuras marginais. Se eu fosse Binner, Macri ou qualquer político com pretensões de chegar ao poder central estaria feliz e agradecido com que o kirchnerismo rompa o grupo monopólico. O presidente que governe depois deste conflito vai governar com um fator de pressão menos. O Clarín é um fator de pressão impressionante. Antes de votar qualquer lei, apareciam no Congresso assessores de Clarín escolhendo a pauta de votação e oferecendo recompensas e ameaças.

Os panelaços de novembro, como interpretá-los? O que estava expressado aí?

Foram algo muito interessante do ponto de vista da sociologia política. Expressam diferentes coisas. Para mim expressa sobretudo que há um grupo social na Argentina que é profundamente antikirchnerista e que não tem representação política. Se este pessoal tivesse alguém que falasse com eles, seguramente não teriam saído de casa. 

Isso me faz lembrar o que foi o final do menemismo na década de 1990. Quando apareceu o Frepaso, a figura de Chacho Álvarez, que era um pouco a voz que representava os setores de classe média urbanos, ele falava por esses setores. Este pessoal hoje não tem quem fale por eles. 

Ao mesmo tempo o panelaço manifesta um rechaço a certas medidas do governo, especialmente de caráter econômico, sobretudo do dólar, que na Argentina é uma questão muito profunda. A poupança, uma questão simbólica, o dólar é um horizonte de desejo muito forte para a classe alta, a classe média e a classe média-baixa. A mim chamou atenção que não houvesse mais manifestações frente à decisão do governo de controlar o mercado do dólar. Nem tanto pelo impacto econômico, mas porque os argentinos economizam em dólares há pelo menos 40 anos. É o que permite viajar ao exterior, sentir-se parte do mundo. 

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