Peru: mineração é uma bomba-relógio ambiental e social que vai explodir

Nesta semana, milhares de camponeses no departamento de Cajamarca, no norte do Peru, protestaram contra o projeto de exploração de uma mina de ouro pela empresa americana Newmont

As águas do Rio Condoraque na província de San Antonio de Putina, departamento de Puno, no Peru, têm uma cor alaranjada. Não há vegetação nas margens; somente um sedimento de poeira mineral. A contaminação afeta outros rios, como o Toco Toco, Putina, Huancané, e o Ramis – chegando até o famoso Lago Titicaca.

As águas poluídas vão parar nas fontes usadas para irrigar terras agrícolas e pastos. As ovelhas e alpacas na comunidade vizinha, onde moram cerca de 45 famílias, podem morrer se beberem esta água. Os animais também correm risco de vida se aspiram a poeira mineral – risco que é aumentado entre julho e agosto, quando os ventos são fortes e a poeira cobre os pastos.

Os seres humanos não sofrem menos. Eles relatam sintomas como diarréia, distúrbios respiratórios, dores de cabeça, tosse, dores reumáticas nas mãos e pés. O problema afeta cerca de dez comunidades; elas não têm outra fonte de água, que não a contaminada.

“Os animais bebem a água do rio, têm diarréia e morrem. As fêmeas abortam e perdem suas crias. E nós comemos esses animais. Estamos morrendo lentamente”, diz Simon Orihuela, governador da região de Condoraque, em entrevista ao Centro de Investigação Jornalística do Chile (Ciper).

Ele conta que as famílias perderam cerca de dois terços do seu gado. Algumas tinham cerca de cem alpacas – agora, têm no máximo trinta.

Chuva como vinagre 

A causa desses males são os resíduos deixados pela mineradora Regina Palca 11 em 2006, após 30 anos extraindo tungstênio – um metal usado para fazer filamentos de lâmpadas incandescentes. A empresa deixou para trás nada menos que 1,2 milhão de toneladas de resíduos.

Também deixou para trás um vertedouro de águas poluídas que correm para a lagoa Choquene  e o rio Condoraque, e uma chuva ácida com um pH de 3,25 – índice de acidez semelhante ao do vinagre.

Hoje em dia a concessão foi dada à empresa Sillustani SA, que não resolveu nenhum dos problemas.

Isso é só uma amostra

O desastre, ou “passivo ambiental”, de Condoraque não é um dos mais sérios do Peru. Ele chamou a atenção internacional porque em 2010 a ONU exigiu que o governo peruano o investigasse, após o Departamento de Direitos Humanos e Meio Ambiente do governo de Puno apresentar o caso na sede em Nova York.

Na época foi feita também uma queixa à Procuradoria Especializada em Questões Ambientais em Puno. O caso está sob investigação.

Mas a perícia só chegou às conclusões previsíveis: as águas estão contaminadas por cádmio, chumbo, cobre e zinco. Não há ainda nenhuma idéia sobre a dimensão do dano ambiental, um plano para enfrentar o problema ou uma estimativa de quanto isso vai custar.

Perto dos olhos, longe do coração 

Na verdade, essa é a imagem de passivos ambientais de mineração no Peru: a poluição está à vista, bem como danos e, ao mesmo tempo, há pouca informação sobre as características dos resíduos. Ou se cada caso constitui um risco permanente ou potencial para a saúde da população e para o ecossistema.

Em 2000, um estudo do Banco Mundial estimou que a mineração e a metalurgia jogam anualmente 13 bilhões de metros cúbicos de resíduos nos rios do país.

É verdade que desde meados da última década, o setor de mineração vem assumindo progressivamente responsabilidades ambientais e buscando mitigar os danos.

Existem empresas privadas, por exemplo, que ao assumir uma concessão mitigaram efeitos nocivos deixados pela exploração feita anteriormente pelo Estado, como a Barrick, em Quiruvilca, no departamento de La Libertad, que “limpou” os rejeitos deixados pela estatal Minero Peru. A empresa confinou 60 mil metros cúbicos de carvão, fechou nove galerias de minas e três lareiras, construiu 3,5 km de canais de drenagem, reflorestou a área e construiu uma zona úmida artificial para tratar a água contaminada.

O governo contabiliza 6.847 desastres ambientais; mas há muito mais

Depois de dois meses de investigação e de fazer dois pedidos através da Lei de Transparência e Acesso à Informação Pública ao Ministério de Minas e Energia peruano, a reportagem obteve acesso ao arquivo que elenca os “passivos ambientais mineiros” mais perigosos.

Descobriu-se que Puno, onde existem cerca de 250 desses passivos, não é o departamento mais afetado pela poluição gerada por minas abandonadas. O pior é o departamento de Ancash, no norte peruano.

Em todo o país há registros de 6.847 passivos ambientais de mineração. As regiões mais afetadas são Ancash (1.115), Cajamarca (1.018), Huancavelica (830), Puno (522), Cusco (507), Liberty (488) e Pasco (429). Menos de 15% desses casos passaram por um estudo ambiental ou estão em vias de fechamento. Os outros continuam poluindo livremente.

Mas a estatística oficial foi atualizada em 2006, o que significa que há muitos outros casos não contabilizados.

Em 2012 o Ministério de Meio Ambiente começou visitar áreas contaminados para atualizar os dados de 2006. Encontrou 5.551 casos. Mas as equipes só visitaram 13 das 65 bacias hidrográficas em que há atividades de mineração, de modo que a atualização não está completa.

Este ano, o programa vai incluir as bacias de Rimac, Lurin, Huarmey, Pativilca e Huaura. Apenas em 2013 a atualização estará completa. Ou seja: o número de desastres ambientais registrados vai aumentar.

Além disso, a inspeção é puramente visual. Nenhum material é coletado para análise, que ocorre apenas nos locais em que há projetos de mitigação. Alva Edgar Bazan, diretora técnica de mineração no Ministério de energia e Minas, diz que não há orçamento suficiente para isso.

As minas – e os desastres – vão passando de mão em mão

A pesquisa do Ministério é feita com base nas contaminações declaradas pelos proprietários de concessões de mineração que cumpriram a lei e desenvolveram um plano de fechar os passivos ambientais.

Mas é claro que foram pouquíssima empresas que fizeram isso. Em geral, durante o curso das últimas décadas as minas foram mudando de mãos, sem que os passivos ambientais originais tenham sido resolvidos.

Em muitos casos o Estado não consegue determinar de quem é afinal a culpa pela poluição e quem deve ser responsável por mitigar o desastre ambiental.

Somente 50 empresas responsabilizadas

Na verdade, o Estado tem conhecimento de cinqüenta empresas que causaram desastres ambientais. Nos outros casos, não se sabe a quem reclamar.

Mas mesmo quando as empresas são identificadas, isso não significa que o problema está resolvido. O Ministério geralmente envia um plano de fechamento das operações no local, mas geralmente a empresa apela ao Conselho Nacional de Mineração. Se a empresa perde, então começa um conflito judicial. E ela continua a poluir.

Foi o que aconteceu em Ticapampa, no distrito de Ancash. O desastre é visível a partir de escombros que margeiam a estrada. Após uma investigação do Ministério, a empresa Yahuarcocha foi multada, mas teve início uma batalha que corre até hoje nos tribunais.

Atualmente o governo peruano exige um plano de encerramento desde o início da operação, mas o processo é longo e pode ter complicações.

Ao explicar por que o Peru está longe de ter um manejo adequado de resíduos de mineração, a diretora do Fundo Nacional do Meio Ambiente, Julia Justo, diz que o problema é mais do Estado do que das mineradoras.

Para ela, o Ministério deveria alocar mais recursos humanos e orçamento para avaliar os impactos ambientais. Este ano, por exemplo, o Ministério não vai gastar nem um centavo para inspecionar passivos ambientais, embora a verificação só tenha sido feita em cerca de 20% das localidades.

O Estado no banco dos réus 

A legislação peruana, que visa fazer com que a empresa responsável pelo desastre ambiental cuide de remediar a situação, oferece um impasse. Como os responsáveis muitas vezes não são apontados, ninguém é responsável por resolver o problema.

De acordo com a lei, o Estado pode mitigar a contaminação quando uma empresa estatal foi responsável por pelo menos dois terços dos resíduos. A lei determina que “excepcionalmente”, em caso de interesse público, o Estado pode agir – o que funciona na prática quando protestos muito grandes.

Durante o governo do ex-presidente Alan Garcia, o Ministério, sob pressão, elaborou um projeto de despoluição em Cajamarca, para depois processar os responsáveis e reaver o valor gasto.

Foi na bacia do rio Llaucano, onde havia cinco depósitos de resíduos deixados pela estatal Banco Minero. Expostos ao vento, chuva e escoamento superficial, esses dejetos formaram uma fonte de poluição dos leitos dos rios Hualgayoc e Arascorgue. Sob pressão, o Fundo Nacional para o Meio Ambiente teve que botar a mão na massa e remediar outras 119 áreas afetadas em El Dorado e La Tahona.

“Não acreditamos” 

Uma história menos bem-sucedida é a do lago Chinchaycocha. O caso é um bom exemplo de como, em casos de contaminação gerada há muitos anos, acabam se misturando responsabilidades de diversas empresas mineiras e do próprio governo peruano.

Situado a 4.105 metros acima do nível do mar, o lago Chinchaycocha dá origem ao rio Mantaro e é o segundo mais extenso do país depois do Titicaca – além de ser um dos principais abastecedores da bacia do Amazonas. Em uma área declarada reserva natural, é habitat para milhares de espécies de aves aquáticas, anfíbios, roedores silvestres, e raposas que se adaptaram ao clima gélido.

As autoridades locais, cheias de soluções intermediárias, procuraram o Ministério Público para oferecer denúncia contra as empresas Doe Run, El Brocal, Aurex, Volcan, e contra o governo – no caso, os ministérios de Energia e Minas, do Meio Ambiente e da Agricultura.

A contaminação é antiga: começou em 1929, quando foi construída a represa de Upamayo, inundando mais de 26 hectares em oito comunidades. Depois veio a produção mineira, e ao mesmo tempo a gritante inação estatal. Este ano o Ministério do Meio Ambiente reformulou um plano para o manejo ambiental do lago, mas a sua credibilidade já tinha ido por água abaixo.

― É apenas uma declaração de boas intenções. Não acreditamos ― diz Ginés Barrios, conselheiro municipal da cidade de Junín, à beira do lago.

O que fazer?

O Estado, por si só, tem resolvido muito pouco. Isso tem que mudar, diz a ex-diretora-geral de Mineração do Ministério de Energia e Minas , María Chappuis. “O Estado deve remediar e depois cobrar”.

Em 2005, um relatório do Banco Mundial afirmou que os vazios legais facilitam que as empresas fujam de suas responsabilidades. Por um lado, a lei requer que o governo identifique os responsáveis, mas não permite que as sanções sejam retroativas a antes de 1990. Ou então, permite que o Estado assuma a recuperação de passivos ambientais abandonados, mas exonera o governo de se comprometer financeiramente com isso.

Afinal, quais são as áreas que requerem atenção imediata? A lista obtida pela reportagem mostra 25 regiões contaminadas com alto risco. Com esses dados elaboramos um mapa detalhado sobre essas regiões. Treze deles estão no departamento de Ancash. A lista completa dos locais afetados de alto risco está aqui.

De acordo com a diretora do Fundo Nacional do Meio Ambiente Julia Justo, para sanar todos os 6.847 passivos ambientais, seria necessário mais de 1 bilhão de dólares.

Agora, o Ministério acaba de anunciar um investimento de cerca de 28 milhões de dólares para a descontaminação do rio Grande, em Puno, que vai beneficiar cerca de 60 mil moradores afetados.

Foi uma decisão sábia. Se não anunciasse a verba, os conflitos no local – que no começo deste ano ameaçaram impedir as eleições estaduais – poderia ressurgir. Não muito longe dali, outros moradores têm protestado por estragos ambientais que a empresa Southern garante ter resolvido. Ele negam.

O tema ressurgiu fortemente nos primeiros cem dias de governo de Ollanta Humala. A pergunta que não que calar é: será que o novo presidente tem um plano para mudar a política estatal – ou a falta dela?

Conteúdo reproduzido da Pública, Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo.

 

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