‘Estamos vendo o mesmo filme’, diz ex-ministra argentina sobre a Grécia

Felisa Miceli, que comandou a Economia no governo de Néstor Kirchner, acredita que gregos terão de declarar o calote em algum momento para escapar da 'barbárie capitalista'

Felisa Miceli considera que europeus se dão conta de que lhes impõem um futuro de exclusão (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Arquivo Agência Brasil)

Buenos Aires – Felisa Miceli é a comandante de uma trincheira estabelecida contra o neoliberalismo. De um apartamento no bairro portenho de San Telmo, a ex-ministra da Economia de Néstor Kirchner e ex-presidenta do Banco da Nação Argentina comanda o Centro de Estudos Econômicos e Monitoramento das Políticas Públicas (Cemop), ligado às Mães da Praça de Maio, o grupo de senhoras que luta contra a ditadura e agora encampa o combate às políticas econômicas ortodoxas.

– Felisa, você será ministra da Economia – avisou Néstor Kirchner em 2005, quando preparava-se para se separar do padrinho político Eduardo Duhalde, o que significava também a saída do titular da pasta, Roberto Lavagna.

– Mas, Néstor, não sou uma pessoa… Você sabe, não sou querida pelo mercado

– É disso que precisamos – decretou o então presidente.

Hoje, quatro anos após sua saída, vê no governo de Cristina Fernández de Kirchner uma continuidade da política econômica, um dos trunfos da vitória esmagadora estabelecida no último mês. Desendividamento e superávit fiscal são as linhas-mestras desta política, que tenta se livrar de um passado pouco auspicioso. As políticas da década de 1990 tiveram seu ápice social entre 2001 e 2002, quando 54% da população argentina mergulhou linha da pobreza abaixo. Durante a década anterior, o ministro da Economia de Carlos Menem, Domingo Cavallo, aplicou a política do “um para um”. Mantinha-se o peso artificialmente cotado a um dólar. As importações ficavam baratas e a população tinha a sensação de bem-estar. A indústria nacional ficava em frangalhos, e a balança comercial tinha déficits crescentes, aprofundados pela privatização de empresas.

Quando assume Fernando de la Rúa, as coisas seguem mal, e ele resolve chamar Cavallo para resolver o problema – o pai da criança deveria saber a solução. Em dezembro de 2001, a população desconfia da incapacidade argentina de bancar suas dívidas, e começa a tirar massivamente suas reservas dos bancos. O governo decreta o corralito, pelo qual cada cidadão só podia sacar 250 pesos por semana. O resultado é a explosão de 19 e 20 de dezembro de 2001, com a fuga de De la Rúa e uma profunda crise institucional.

“É impressionante. Parece que estamos vendo o mesmo filme”, comenta, a respeito da situação da Grécia, que nesta semana recebeu um ultimato: ou acata o pacote de corte de investimentos imposto pela União Europeia, ou deixa o bloco.

Dez anos depois, Felisa saúda a possibilidade de que Cristina promova planos de longo prazo e entende que é hora de garantir a industrialização argentina. Para isso, no entanto, falta superar o pé atrás dos empresários, acostumados a uma cultura de confisco pelo Estado.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

RBA – Como a senhora avalia a gestão econômica do mandato de Cristina?

A política econômica do governo de Cristina foi uma continuidade da política econômica iniciada por Néstor Kirchner. Isso está claro. As grandes diretrizes do modelo econômico continuaram. Essas linhas são a política de desendividamento, o que implica a acumulação de reservas para estar muito melhor coberto pelas crises internacionais, uma política de superávit fiscal para não precisar tomar sequer um peso de dívida. Isso é muito importante porque na Argentina, desde a ditadura até a queda do governo de De la Rúa (Fernando de la Rúa, presidente entre 1999 e 2001) pela grande insatisfação que havia na população, todos os governos se financiaram com base no endividamento. 

Uma segunda coisa importante do mandato de Cristina é o papel do Estado nas políticas econômicas. Para regular, porque estão reguladas muitas coisas que eram de livre atuação dos setores econômicos, se estatizaram muitas empresas que estavam privatizadas, se criaram outras empresas, e o Estado retomou um papel importante na prestação de serviços básicos de educação e saúde.

E com Néstor Kirchner?

Outra questão retomada é a integração latino-americana, que aumenta a margem de atuação em termos de soberania econômica. O que se fez foi pagar as dívidas com o Fundo Monetário Internacional e desfazer-se da supervisão, do condicionamento das políticas que deveria tomar o governo. O Fundo estava contra quase tudo o que fazia o governo, desde aumentar os salários até ampliar a cobertura dos aposentados. Em contraposição, ao pagar a dívida com o Fundo, Néstor de alguma maneira consegue muito mais autonomia para as políticas econômicas e se abre espaço para uma maior integração da América Latina. Isso foi um grãozinho que nos tirou de cima da cabeça um pé muito pesado. 

Outro feito muito importante foi a reunião de Mar del Plata em 2005, quando Néstor Kirchner incentiva toda a região a negar a formulação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Isso não é uma coisa menor. É o cimento, a base de pensar que Argentina deveria ter um destino industrial para incluir as pessoas em um emprego formal. Se imperava a Alca, em nosso país e em nossa região se cristalizava uma estrutura produtiva muito desindustrializada e, portanto, as desigualdades sociais não poderiam ser superadas. A Alca impunha à região um papel de provedor de matérias primas e também de consumidor dos bens industriais que as potências fabricavam. Isso foi muito bem avaliado.

Como levar adiante um esforço de reindustrialização da Argentina?

Vamos neste caminho. Lento porque há muita cultura impregnada de que algo vai ocorrer. Os empresários têm muito medo ainda de investir e acabar perdendo. Isso ocorreu nos anos 1990, e isso na vida de um empresário não é muito tempo. Há empresas que compraram máquinas muito modernas nos anos 1990, e um ou dois meses depois ficaram com uma dívida enorme nas mãos, sem conseguir colocar a máquina para funcionar, e só depois de 2003 conseguiram reabrir. Esses empresários chegam ao máximo de capacidade instalada e não querem comprar uma única máquina porque têm medo do que possa ocorrer.

É uma história cultural que tem a ver com a história econômica nefasta da Argentina. Em 1980 houve uma crise financeira em que muita gente perdeu dinheiro porque fecharam vários bancos. Em 1989 e 1990 houve outra crise financeira na qual todos os que tinham dinheiro no banco viram o governo de turno tomá-lo. Dez anos depois vem Cavallo e aplica o corralito. Essas experiências, de que a cada dez anos se tomam os depósitos privados, criam muita desconfiança. As pessoas querem guardar o dinheiro em suas casas. A Argentina ainda não é um país normal do ponto de vista dos depósitos, dos dólares. É um país que tem temor da repetição destas atitudes. A industrialização vai se dando a partir de incorporar valor agregado. Nosso país tem um enorme território e muito pouca população. Precisamos de um modelo de alto valor agregado.

Socialmente e politicamente, quais são as consequências de depender de poucas corporações do agronegócio?

É negativo. Como em todo o mundo. A concentração é negativa. Quando a riqueza está em poucas mãos, essa gente que tem essa quantidade enorme de recursos já comprou quantos barcos, quantos aviões, quantas mansões, quantas festas fizeram. Não têm mais onde gastar. E aí começa a especulação financeira. Esta é uma questão pendente.

Não tenho ilusão de que a Argentina seja um exemplo de desconcentração de mercado. O mundo vai para um lado. O sistema capitalista vai para um lado. Mas quantas empresas de alumínio pode ter um país? Para que teremos quatro empresas de alumínio? Quantos países têm indústria automotiva no mundo? Precisamos de oito, dez grupos nacionais? Há que ser realista.

A senhora analisa de que maneira a tensão que houve em 2008 e 2009 com o setor rural? Havia este tipo de acirramento antes?

Sempre existiu com o kirchnerismo. O agro acredita que pode passar ao câmbio que quiser sem haver feito nada. Estas lutas com os setores patronais são um exemplo de como é difícil a um governo que quer transformar a realidade, que quer avançar na redistribuição, que quer arrecadar mais para fazer mais políticas públicas, de como estes setores estão dispostos a promover problemas para defender os próprios interesses. Mas hoje o povo argentino está muito mais feliz que oito anos atrás. Em qualquer povoado da Argentina se vê uma realidade muito melhor da tragédia que se vivia no passado. Se por uma dessas desgraças que nos ocorre às vezes ganhasse um nome da oposição, as políticas seriam de desmantelar o que se está fazendo.

A União Europeia quer impor à Grécia o que o FMI queria impor a vocês.

É impressionante. Parece que estamos vendo o mesmo filme. A Grécia parece que terá de declarar seu default em algum momento. Quanto dinheiro mais vão lhes dar? O povo da Grécia reclama nas ruas, mas os governos aplicam políticas de ajuste, de desespero, da barbárie capitalista. As pessoas ficam sem proteção. A Europa tem a vantagem de que parte de um piso muito mais alto que o que se tem em nossos países, mas as pessoas se dão conta de que o futuro planejado pelos governos é horrível, é de exclusão. Para sustentar um grupo de 1% da população mundial que controla 30% da riqueza mundial.  

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