Como na Argentina, ‘Lei de Meios’ no Brasil vai exigir vontade política

Um dos 'pais do espírito' da lei para democratizar a comunicação no país vizinho afirma que se trata de um direito humano básico, mas cuja regulamentação requer intenso debate na sociedade

Damian Loreti é professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA)(Foto: Fick/ Ministerio de Seguridad Argentina)

Buenos Aires – Quem se deixa levar por uma imagem pode se enganar. A foto sobre a estante de Damian Loreti, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA), coloca-o na condição de fã da presidenta reeleita da Argentina, Cristina Kirchner, e não revela todos os detalhes de sua personalidade – na imagem, ele olha para a câmera com sorriso de garoto feliz, como quem finalmente consegue chegar ao ídolo, mas a verdade é diferente.

“Foi aí que tudo começou!”, exclama, quando perguntado a respeito, para em seguida novamente soltar um sorriso de garoto feliz, apesar de já estar em idade “um pouco” mais avançada que a de um pibe.

Foi em abril de 2008. A presidenta e o ex-presidente, Néstor Kirchner, andavam incomodados, para usar a qualificação mais leve, com o noticiário sobre a crise entre o governo e os grandes produtores agropecuários. Cristina chamou Gabriel Mariotto, titular do então Comitê Federal de Radiodifusão, e ordenou que levasse adiante o projeto de um novo marco regulatório para o setor. Mariotto chamou o amigo Loreti, reuniu mais alguns especialistas, e passaram a debater semanalmente na Casa Rosada, com a presidenta, o teor do texto. O titular da UBA, dos primeiros na Argentina a estudar o direito à informação, era um velho conhecedor do assunto. Já no fim da década de 1980 havia trabalhado na primeira tentativa a respeito, que resvalou na falta de interesse do Congresso.

Loreti tem uma certeza: sem vontade política, não dá, uma resposta que guarda para as ocasiões em que é inquirido sobre as dificuldades de se levar adiante, no Brasil, uma iniciativa do gênero. Na reta final do governo Lula, o então ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, preparou um anteprojeto que deixou de herança para a gestão de Dilma Rousseff. O texto foi transferido ao Ministério das Comunicações, onde, passados quase onze meses, pode-se dizer que repousa, para tranquilidade e regozijo da chamada “velha mídia”. 

Na Argentina, entre abril de 2008 e outubro de 2009, o projeto foi avaliado, votado, aprovado e sancionado. Loreti admite ser, no máximo, um dos pais do “espírito” da lei. “A lei não se pode dizer que tenha um autor. Houve 160 modificações feitas pelas pessoas que participaram dos fóruns.” Aquilo que não se incorporou porque fugia ao “espírito” da iniciativa foi anexado à proposta, para que se possa consultar.

O anteprojeto argentino nasceu dos 21 pontos elencados pela Coalizão por uma Radiodifusão Democrática. Pedem a desconcentração de poder na mídia argentina, a valorização da comunicação comunitária e incentivos à produção regional. Em suma, a democratização da comunicação. “A OEA (Organização dos Estados Americanos) indica que a comunicação não é um mero direito declamativo. Implica dar os mecanismos para garantir este exercício”, recorda Loreti.

Perguntado sobre como se neutralizaram os “perigos” alegados pelos grupos dominantes do país para desqualificar a iniciativa de estabelecer um marco regulatório para a comunicação na Argentina, o professor afirma que, na verdade, eles não foram neutralizados. “O que se criou foi um enfrentamento à capacidade dos grandes grupos (empresariais) de influir na vontade política, que não é o mesmo que neutralizar. Esses discursos seguem existindo. Em alguns casos são até razoáveis, porque nem sempre têm a ver unicamente com interesses. Há gente que pensa efetivamente que o Estado não tem de oferecer mecanismos de equilíbrio na comunicação, acreditam que o mercado se regula. Eu prefiro pensar que os meios precisam ser multiplicados e precisam ser transmissores e divulgadores dos pensamentos das pessoas.” 

O professor espera ansioso por uma chamada telefônica. Sabe que os Kirchner não costumam avisar com antecedência a quem desejam que assuma um cargo político, e no geral não consultam: comunicam. Na primeira chance de assumir um cargo relacionado à aplicação da Lei de Meios, um problema no pâncreas o tirou de combate. Agora, que o amigo Mariotto vai assumir como vice-governador da província de Buenos Aires, a mexida de peças no tabuleiro pode conduzi-lo de volta à partida. 

Se puder comandar a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual, Loreti terá a chance de implementar seu filhote – ou seu co-filhote. Dois anos após a sanção, a Lei de Meios vai sendo aplicada, mas liminares obtidas pelo Grupo Clarín, o maior conglomerado de mídia do país, impõem restrições ao cumprimento das medidas que tentam limitar a concentração.

A obediência à lei tal qual aprovada implicaria ao Clarín se desfazer de boa parte de seu império de emissoras de televisão, rádios, operadoras de TV a cabo, produtoras, operadoras de internet, jornais. “Um mercado de comunicação fechado unicamente ao exercício do dinheiro desnaturaliza um direito humano e, em consequência, prejudica a democracia. Se tivesse de escolher uma frase de terceiros, lembraria que a Comissão Interamericana em sua declaração de princípios diz que a comunicação social afeta a democracia porque afeta o direito à comunicação e o direito à liberdade de expressão.”

A lei argentina prevê dividir o mercado em três fatias iguais: veículos públicos, veículos privados com fins lucrativos e veículos privados sem fins lucrativos. E o que já mudou desde a promulgação? “Há muita coisa em andamento. Os canais digitais universitários, os editais para duzentos novos canais de televisão, o regime de transparência na administração dos meios de comunicação, a desconcentração dos direitos de exibição – que se exploravam de maneira monopólica, o controle das veiculações publicitárias dentro de um mesmo programa – que é um problema de concentração econômica nas produtoras de Buenos Aires”, exemplifica.

E como a sociedade argentina conseguiu aprofundar essa discussão? “Isso se nota nas ruas. Houve mobilizações contra os meios de comunicação, e nem digo que tenham sido enormes, foram manifestações individuais dizendo que não estavam contando as coisas como elas ocorreram. Uma pessoa vai ao bar, pede que entreguem o diário, não gosta, pede outro, não tem, e deixa aí uma queixa. Ele cobra que se tenha mais diários para garantir a pluralidade da comunicação. A mim soa insólito, quase como uma coisa de um maníaco doutor em comunicação. Mas é verdade.”

A Lei de Meios foi um dos fatores que aproximaram o kirchnerismo da juventude. Dos que votaram em Cristina Kirchner no último domingo (23), 84% estão de acordo com a medida. Entre quem não votou, a adesão é de apenas 40%, segundo estudo feito por outro acadêmico da UBA.

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