Políticas sociais, economia e juventude levam Cristina à vitória

Protesto barulhento no centro de Buenos Aires contra medidas do Banco Central. Entidades e movimentos são mais ativos em críticas ao chefe de governo da capital, Maurício Macri (Foto: Paulo […]

Protesto barulhento no centro de Buenos Aires contra medidas do Banco Central. Entidades e movimentos são mais ativos em críticas ao chefe de governo da capital, Maurício Macri (Foto: Paulo Busti)

Buenos Aires – Um barulho enorme de bumbos se espalha pelo centro da cidade em uma tarde abafada da primavera argentina. Parece vir aí mais uma marcha maciça em um capital acostumada a tal. É um trânsito imenso o que se forma, é um ruído imenso o que se espalha, e é quase certo que o protesto é grande.

Não é. São 20 militantes que estão contra alguma medida interna do Banco Central. Fecham uma esquina durante alguns minutos, a polícia organiza a marcha, em vez da tradicional repressão, e garante que os motoristas, estes sim, não se excedam. A manifestação se desfaz, o que não tarda muito, e em pouco tempo o trânsito começa a fluir naturalmente. Os manifestantes ainda batem os bumbos uns pares de vezes, e ao chegar à Praça de Maio, coração psicológico da capital, deparam-se com outra, bem maior.

O chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Maurício Macri, é um sujeito capaz de despertar grandes comoções. Notoriamente conservador, quer agora mudar o sistema de seleção e de promoção dos docentes das escolas públicas, e consegue provocar uma paralisação de dois dias e uma marcha até a sede de sua administração. Não são só os professores que estão indignados, mas também os alunos.

E não só os alunos. JP Descamisados, Colina, La Cámpora: leva tempo entender o mar de instituições que estão contra Macri. E que, antes de nada, estão a favor do kirchnerismo. Mais que isso, estão juntos. As organizações de jovens são uma das heranças que Néstor deixou a Cristina, e que a presidenta tem capitalizado em seu favor. “Um monte de gente que não acreditava voltou a acreditar na política. Se conseguiu um monte de coisas. Há que seguir aprofundando. É como a bicicleta. Se não pedalar, se não avançar, cai”, avalia Carlos Días, um rapaz que apesar da idade, 36, milita na Juventude Peronista Descamisados. E também na Corrente Peronista Nacional, órgãos que “meio que se fundiram”, explica.

São jovens que cresceram se indignando contra o legado que lhes havia deixado a ditadura, que em vários casos lhes levou os pais, e que chegaram à idade adulta enquanto o neoliberalismo do governo de Carlos Menem começava a deixar marcas. Quando vem a decretação do Estado de sítio, em dezembro de 2001, saem de todas as partes para que caia o governo de Fernando de la Rúa. “Que se vayan todos” é a máxima repetida como oração ao longo das semanas seguintes, quando manifestam a total ruptura entre a clássica divisão representantes-representados.

Vêm as eleições de 2003 e Néstor Kirchner, um até então pouco conhecido político que havia governado a distante e sulista província de Santa Cruz, de pouco peso no quadro nacional, é o candidato de Eduardo Duhalde, o presidente provisório. Obtém 22% dos votos e deve disputar o segundo turno com o ex-presidente Carlos Menem, que alcançou 24% em um pleito no qual apareceram candidatos aos montes e no qual predominou o “voto bronca”, de protesto contra a classe política tradicional.

Menem, velho conhecedor da vida argentina, ao notar que terá mais de 70% de rejeição, retira-se da disputa, e por pouco não joga o país em um novo fosso. Néstor vira presidente após levar as eleições que não venceu, e chega à Casa Rosada sem a legitimidade do voto popular. Precisa encontrar parcerias. Prometera um “país normal”. “Eu o que não quero é mentir ao povo argentino”, prometia o presidente em seu discurso de posse. “Não quero fazer uma manipulação mais da credibilidade de nossa Argentina e vou lhes dizendo passo a passo o que vamos fazendo”. A fala estava recheada de referências a um político que era só mais um entre tantos do povo, uma tentativa de ganhar a confiança e resgatar a relação entre políticos e sociedade.

A revogação das leis que davam guarida a agentes da última ditadura é o primeiro ponto de aproximação entre Néstor Kirchner e os jovens. Era um antigo anseio de setores da sociedade, e foi tomada não por ideologia, mas porque havia um pedido de extradição da Espanha para que os militares argentinos fossem julgados pelas violações cometidas a cidadãos da nação europeia. Desde 2003, foram abertas 379 causas contra colaboradores do regime, o que significa a abertura de processo contra 1.774 pessoas, incluídas condenações dos ex-presidentes da junta de governo.

Daí por diante, os movimentos sociais e de jovens se dividiram entre os que apoiavam o kirchnerismo e os que consideram o projeto insuficiente, tímido e clientelista. A expressão máxima da relação com a juventude é La Cámpora, uma organização fundada em 2004 por correntes peronistas para dar suporte ao governo. Atualmente, os integrantes de La Cámpora são quadros dos governos, e têm porteira fechada para fazer a nomeação em certos órgãos. Se vão manter a atitude combativa, o tempo dirá.

Economia nos trilhos, uma memória afetiva

O desemprego na Argentina está em 7,3%, e 90% da população tem um emprego fixo ou está dedicada a alguma atividade econômica. 9,4% estão na chamada subocupação e, destes, 5,7% demandam mudar para um trabalho formal. Uma situação bem diferente da encontrada há dez anos. Em maio de 2002, meses após a crise político-social, 21,5% não tinham emprego e 18,6% estavam em subocupações.

É bem verdade que a inflação é alta, isso se nota, independentemente do que digam as estatísticas oficiais, mas o aumento de salários tem sustentado a popularidade de Cristina Kirchner. Enquanto cresce a renda, enquanto surgem novos empregos, a bola rola redonda para o kirchnerismo. Ainda mais em um país que tem na memória sucessivas capturas de dinheiro pelos governos de turno, arrocho salarial e desemprego. “Esta mulher e este homem se dedicaram a criar um capitalismo distribucionista – pode ser popular, o que seja. Este movimento de começar a dar dinheiro fez rodar novamente o desenvolvimento. Fábricas que estavam fechadas, a educação”, constata Osvaldo Tagliani, um velho morador do Parque Avellaneda, um bairro de classe média-média, ou média-baixa, a depender da referência pela qual se observe.

Em 2002, antes que Néstor assumisse, a dívida externa equivalia a 150% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, o que significava, em português claro, a incapacidade de honrar as contas. Hoje, está em 37,27% do PIB. A pobreza atingia 54,3% da população, e 24,7% destes estavam na indigência, ou seja, na pobreza extrema. Hoje, ainda que pesem suspeitas sobre manipulação dos dados oficiais, calcula-se que as taxas estejam, respectivamente, em 8,2% e em 2,4%.

Felisa Miceli, ex-ministra da Economia, acredita que o segredo de Cristina está na manutenção das linhas desenhadas no mandato de Néstor. Titular da pasta entre 2005 e 2007, ela defende uma economia nacional e popular, uma contraposição à política da década de 1990, vista como estrangeira e elitista. Para isso, o aumento das reservas e o superávit fiscal para evitar novos endividamentos são vistos como fatores fundamentais. “E Cristina segue com isso. Segue dizendo que devemos industrializar o país, que devemos ter um Estado mais forte, mais eficiente”, afirma durante uma entrevista em seu escritório, na região central de Buenos Aires, onde hoje comanda o Centro de Estudos Econômicos e Monitoramento das Políticas Públicas (Cemop), uma organização vinculada às Mães da Praça de Maio e que pretende montar uma “trincheira” contra o neoliberalismo. “Vamos neste caminho. Lento porque há muita cultura impregnada de que algo vai ocorrer. Os empresários têm muito medo ainda de investir e acabar perdendo.”

No ano passado, a economia argentina cresceu 9,2%. Em 2009, afetada pela crise, ficou em 0,9%, e em todos os períodos anteriores desde 2003 esteve acima de 6,8%. Entre 2003 e 2010, a soma de todas as riquezas passou de 235 milhões para 422 milhões de pesos. Temem-se os efeitos tardios da segunda perna da crise financeira internacional, que estanca as economias europeias e dos Estados Unidos, e ameaça frear o crescimento chinês. Mas um levantamento do Centro de Estudos e Opinião Pública (Ceop) mostrou que 40,9% da população acredita que a situação no próximo ano estará igual, e outros 34,3% apostam que estará ainda melhor. Um voto claro pela continuidade.

Políticas sociais

Com a casa em ordem, fica mais fácil promover políticas sociais. Um decreto assinado por Cristina Kirchner em 2009 se transformou em um dos trunfos para a vitória eleitoral. O Benefício Universal por Filho (AUH, na sigla em castelhano) garante uma ajuda de 220 pesos mensais por criança às famílias cujos pais e mães estejam desempregados ou empregados no mercado informal. O Ministério do Desenvolvimento Social calcula em 4,5 milhões o número de crianças e adolescentes beneficiados, o que, sem se somar as famílias, é mais de 10% da população argentina.

“Muitos diziam que iria desmoronar tudo, que o Estado não teria como pagar tantos benefícios, mas parece que não”, diz o veterano Osvaldo, peronista, em uma avaliação similar à que se fez do Bolsa Família no Brasil. Assistencialismo para vagabundos, esmola, compra de votos: cá, como aí, as acusações por parte da oposição e, fundamentalmente, dos especialistas de plantão foi a mesma. “Tudo isso serve para fazer andar uma roda da economia. O pobre só gasta é na comida. Não especula, não compra na bolsa, não faz nada. É rápido o movimento. Você dá o dinheiro e o sujeito come, se veste, e as fábricas começam a se ampliar”, discorda Osvaldo.

A pesquisa do Ceop mostrou o Benefício Universal como política mais bem avaliada do governo, considerada a grande conquista por 38,2% da população. Em seguida vêm o aumento concedido aos aposentados, o que inclui a aposentadoria concedida aos trabalhadores do mercado informal, com 32,6%. A estabilidade frente à crise mostra o quanto se aprecia esse bem prometido por Kirchner, a tal vida ”normal”, com 28,4% das avaliações, seguida pela recuperação do papel do Estado na economia, com 19,3%.

Aí entram duas das políticas sociais que tanto aproximaram o kirchnerismo das camadas baixas urbanas e dos jovens. O Futebol para Todos e a Lei de Meios vão em um mesmo sentido, o de enfraquecer o poder do grupo Clarín, o grande aglomerado do setor de comunicação. O primeiro transformou por decreto o futebol em um bem de interesse público e, portanto, que não poderia ficar restrito a transmissões pagas. “O que tenta é colocar pressão sobre o mercado audiovisual com um produto-estrela. Em condições que às vezes eram inenarráveis”, aponta Damian Loreti, professor de Ciências da Comunicação da Universidade de Buenos Aires. “Ter de pagar uma taxa básica de televisão fechada não para ver o jogo em si, mas para ver uma arquibancada com um senhor narrando, é estranho. Uma matrícula especial para os canais premium era muito alta.”

Loreti é um dos pais da outra iniciativa no setor. Bem, como gosta de dizer, é um dos responsáveis pelo espírito da lei, e não pela lei em si, que recebeu sugestões de centenas de pessoas. Foi em 2008 que a crise do agronegócio fez bater em Cristina e em Néstor a sensação de que algo ia mal no reino da comunicação. As distorções eram consideradas inaceitáveis, e era hora de garantir maior pluralidade no setor. A Lei de Meios teve como base os 21 pontos citados por uma coalizão de entidades que debatiam a democratização da comunicação, e cobravam o estabelecimento de um novo marco regulatório.

“Supõe-se que é um direito humano. A OEA (Organização dos Estados Americanos) indica que a comunicação não é um mero direito declamativo. Implica dar os mecanismos para garantir este exercício“, aponta Loreti durante uma entrevista em um elegante escritório na avenida 9 de Julho, a mais larga da cidade e, dizem, do mundo. Liminares impedem a colocação da lei a plenos direitos, mas houve avanços na produção nacional e se imagina que em algum momento o Clarín terá de se desfazer de algumas de suas concessões de rádio e TV e de operadoras de TV a cabo e de internet, como prevê o texto. “É um dogma dos direitos humanos. Os monopólios e os oligopólios minam a democracia.“

A Lei de Meios é apontada por 8,4% dos argentinos como grande feito do governo de Cristina. Vem logo atrás do matrimônio igualitário, ou seja, da equiparação de direitos para uniões homoafetivas e heteroafetivas. Tudo somado e se tem o caldo que levou à vitória de Cristina no último domingo (23), a maior desde a redemocratização argentina e comparável unicamente aos feitos de Juan Domingo Perón.

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