Iniciativa política desconcertou oposição e determinou vitória do governo argentino

Para cientista político, aprovação de leis importantes após derrota parlamentar foi fundamental para reeleição de Cristina Kirchner

Benefício Universal por Filho, programa de transferência de renda instalado pelo governo de Cristina, deixou a oposição sem discurso (Foto: © Pablo Busti)

Buenos Aires – O crescimento econômico constante nos últimos anos, com aumento de renda e redução da pobreza, foi um dos fatores importantes para a vitória de Cristina Fernández de Kirchner no último domingo (23). Além disso, no entanto, o cientista política Diego Reynoso, coordenador do programa de Instituições Políticas e Governabilidade Democrática da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) na Argentina, destaca a retomada das rédeas do jogo político pelo governo após a derrota parlamentar de 2009. O Executivo recuperou a iniciativa política e conseguiu aprovar leis importantes, como a Lei de Meios, o que desnorteou seus opositores. O Benefício Universal por Filho, programa de transferência de renda semelhante ao Bolsa Família, também deixou sem discurso os adversários de Cristina, que comemorou uma vitória com 54% dos votos. A seguir, a íntegra da entrevista concedida na última segunda (24).

Diego Reynoso (Foto: Divulgação Flacso)

Que fatores levaram a essa vitória de Cristina Kirchner?

Há alguns fatores estruturais básicos. Oito anos de crescimento consecutivo, aumento de renda, redução da pobreza e do desemprego, balança comercial superavitária. Isso explicaria uma parte importante do êxito. No entanto, em 2009, com essas mesmas características, se perde a eleição. Então, não é só isso o que explica, porque então não se teria o retrocesso eleitoral de 2009, do qual parecia não haver possibilidade de se recuperar. No Brasil, por exemplo, por sorte se eliminou a eleição de meio de mandato. Quando se perde uma eleição deste tipo, o governo vai a nocaute, ainda mais no sistema político argentino, em que os partidos não estão acostumados a fazer coalizões. O partido que perde cai sozinho.

Mas o governo recuperou a iniciativa política. E recuperou com várias decisões que foram importantes. Primeiro, a estatização da Previdência. Isto é visto por alguns como um ato terrível, mas foi importante. A Lei de Meios polarizou a sociedade, e a colocou de volta ao lado do governo. A estatização das Aerolíneas Argentinas, que estava em mãos de uma empresa espanhola que a estava esvaziando. A Aerolíneas não é um modelo de funcionamento, mas hoje se restabeleceram rotas que já não eram prestadas. E a reforma política. Conseguiram quatro leis importantíssimas logo após perder as eleições e o controle do Congresso. Isso desconcertou a oposição. Entre a vitória eleitoral e a tomada de posse, em dezembro, haviam encontrado um panorama completamente mudado, e esse poder que supostamente haviam conquistado nas eleições se desfazia antes que assumissem. Há um reagrupamento dos grupos afins ao governo. E consegue se levar adiante algumas questões que fragmentam a oposição. Um deles é o Benefício Universal por Filho, que deixou a oposição sem discurso. A alta da avaliação do governo a partir desta retomada da iniciativa política, o que deixava a oposição ressabiada. Com a crise de 2009, pensavam que sairia do grupo deles o ganhador e começaram a disputar entre eles quem seria o vencedor. Então, de um lado se tinha um bloco homogêneo e coeso, que era o oficialismo, e, de outro, um processo de formação de ilhas de oposição. E isso sem que o governo tivesse controle do Congresso.

Em 2010, em plena ascensão do governo, morre Néstor Kirchner. Foi uma surpresa terrível. O kirchnerismo aprende a falar com a morte de Kirchner. Depois da morte, há uma reconstrução impressionante desse movimento político que, ouso dizer, é um novo movimento político. Já não é o peronismo. É o kirchnerismo. Não digo que seja melhor, mas que é algo diferente. Ainda que se baseie nas linhas do Partido Justicialista, o kirchnerismo estabelece eixos de outro formato de organização política.

A morte dele levou a outro diagnóstico equivocado da oposição, que pensava que era o fim político de Cristina. Cristina se dedicava à gestão, e Néstor à parte política, mas Cristina conseguiu fazer algo que nunca se havia feito dentro do Partido Justicialista, que foi ter a capacidade de armar todas as listas de deputados locais, coisa que antes faziam os governadores. Mostrou o poder que tinha. E que sabia usá-lo. Muitos votantes optaram por Cristina porque viram nela a capacidade de condução.

Que há de diferença entre o kirchnerismo e o peronismo?

O peronismo sempre foi um partido muito preocupado com a questão da justiça social. Sem ser igualitarista, não é igualitarista. Na distribuição para a contenção social, o kirchnerismo manteve a linha clássica. Distribui não para mudar as relações de poder em uma sociedade, mas para conter os problemas sociais.

O peronismo sempre foi muito refratário ao liberalismo político, social e econômico. O peronismo não era liberal. Com o governo de Menem (Carlos Menem, presidente de 1989 a 1999), o peronismo surgiu para o liberalismo econômico, mas não para o político e o social, porque nisso era muito conservador. Com o kirchnerismo, mescla-se o componente justicialista histórico com o componente do liberalismo político e social. Não muito forte, mas há um braço progressista importante. Matrimônio igualitário, aborto, Benefício Universal por Filho, Lei de Meios, questões ligadas ao liberalismo social.

Por outro lado, à diferença do histórico peronismo, apesar de acusar-se de não sê-lo, é muito institucionalista. O sistema político argentino está muito mais institucionalizado. Se Cristina não vai por uma próxima reeleição, isso vai ficar muito claro. E acho que é possível porque creio que tende a ser como Lula, ou seja, “tenho tudo, mas devo ir”. Apesar de quererem insistentemente compará-la com Chávez (Hugo Chávez, presidente da Venezuela), o que não tem nada a ver. Está muito claro que há um abismo aí.

O discurso de domingo foi claro neste sentido quando falou que o projeto atual é de política, e não de pessoas.

E que não quer nada mais. Quem sabe o desafio agora é ver como se vai solucionar o processo interno. O que ocorre é que o peronismo é muito selvagem na hora de disputar o poder. Uma vez que o resolve, é uma máquina azeitada que lhe permite governabilidade, mas enquanto não consegue resolver os problemas internos, produzem-se cataclismos importantes.

Como lhe parece a novidade do vice-presidente, Amado Boudou, fiel ao governo?

A Julio Cobos (ex-vice de Cristina) se demonizou porque foi quem colocou a cereja no conflito que já estava iniciado e que não se sabia como resolver. Cobos coroa o conflito quando vota contra o governo, mas depois, nem antes, teve um papel significativo. Salvo isso, não há nada mais nestes quatro anos em que Cobos tenha sido um ator-chave. Isso é um paradoxo. Isso o levou a um pico de aprovação pública, mais de 70%, mas a ponto de hoje ter três pontos negativos, se isso fosse possível.

Essa singularidade não é esperada de Amado Boudou. Nem sequer é um homem de partido. Surge e nasce ao calor desta reconstrução kirchnerista. Até chegar ao Ministério de Economia, era alguém que não estava no centro. Se converteu em um ator relevante a partir disso, ou seja, tem dois ou três anos em um processo de oito anos. Nisto teve muito a ver a aleatoriedade das decisões, a morte de Kirchner. Boudou pode ser uma garantia de que no Senado não vai haver surpresa.

Quanto esse gabinete é uma influência de Néstor Kirchner? Vai mesmo haver mudanças?

Não é uma influência somente de Néstor. É um gabinete cristinista. O primeiro foi influência de Néstor. Creio que é bastante desconsiderada a capacidade política da presidenta, que tem de sobra. É um quadro político de primeira linha. Por mais que se tenha destacado o papel de Néstor, uma análise da história vai dar a ela um lugar mais preponderante. Deve haver alguns ajustes no gabinete que têm a ver com o respaldo eleitoral que ela agora tem claramente. Aí se move um pouco o tabuleiro, mas não acredito que haverá muitas surpresas. Não será um giro copernicano.

Há muito preconceito nas críticas a Cristina?

Houve muito preconceito, mas não sei que efeito teve se olharmos estes 54% (percentual de votos obtidos pela presidenta em sua reeleição). A maior quantidade de adjetivos que lhe implicam à gestão tem a ver com qualidades femininas. Houve uma crítica visceral à condição de mulher.

No Congresso, volta a ter maioria.

Somando os aliados. Na Câmara, passa a 114 deputados, mas com aliados de muitos grupos se alcança 131, e supera em dois o quórum próprio. Está em condições de legislar. No Senado, tem 32 próprios e seis de aliados, ou seja, 38, um a mais que o quórum. Ainda se tem os efeitos das eleições de 2009, que foram muito ruins para o governo.

Que possibilidades isso dá para aprofundar o modelo, como se vem dizendo?

Na análise política precisamos distinguir os discursos dos fatos concretos. Categorias como modelo, aprofundar, essas coisas, não são fáceis de articular, são para fazer o discurso. É um governo muito pragmático, mas com direcionalidade. Nunca tomou uma decisão que seja claramente antipopular. Esta é a direção que tem o governo. Se a isso podemos chamar modelo, está bem, mas há uma condução da economia, das variedades políticas, das variedades sociais que não nos levam à antítese do Consenso de Washington. Se se começa a observar, há coisas que são feitas inclusive de maneira mais profunda do que nos anos 1990. Por isso funcionam.

Há condições estruturais difíceis de mudar rapidamente. A questão da falta de moradias e os conglomerados chamados favelas e assentamentos devem ser tratados com mais ênfase. Claro que isso vai ter opositores. Se já com o Benefício Universal por Filho, uma das medidas mais revolucionárias do governo, e revolucionárias entre aspas, por favor, pode haver oposição. Houve grande resistência dos setores médios, que diziam até mesmo que teriam de renunciar à educação para pagar a comida dos mais pobres. Outra questão são os créditos para os meios médio-baixo e médio, que podem ser os que sintam que o governo não lhes dá tanta atenção, salvo pela questão do consumo. Aí é onde o governo deve consolidar, mais que aprofundar. Há coisas que melhoraram. E há coisas que definitivamente não se deve fazer, mas se fazem, como corrupção. Se se coloca na balança, fica claro que não é só corrupção, ou não venceria.

Em que se equivocou o governo no primeiro mandato de Cristina?

A condução da crise com o campo foi malfeita. Poderia ter sido evitada e daria mais institucionalidade ao governo, não haveria perda de segurança institucional e não se teria colocado em risco o projeto. Depois de 2009 corrigiram o rumo, e isso explica porque tiveram 54%. Aprenderam com isso. E precisa manter a capacidade de aprender. Soube ler quais eram suas problemas e os transformou.

Com o agro, na semana passada a presidenta esteve reunida com o ConInAgro (Confederação Intercooperativa Agropecuária). No entanto, a Sociedade Rural (Sociedade Rural Argentina)…

A Sociedade Rural nunca. Nunca vai estar do lado de um projeto político industrialista e popular. E entendo. São outros interesses. O problema da Sociedade Rural é não encontrar um partido político de centro-direita que o expresse. O déficit do sistema político não permitiu isso ainda. As tentativas de combater o kirchnerismo se fazem desde uma suposta centro-esquerda, e aí não há muito espaço. Há que ir pela centro-direita, mas reconhecendo-se assim. Os votos recebidos por Binner são da centro-direita. No Brasil, o PSDB decidiu fazê-lo. (José) Serra falou que se o PT está na esquerda, ele está na direita – ainda que Fernando Henrique Cardoso tenha sido mentor teórico de muitos da ciência política da esquerda. Isso está faltando na Argentina.

A União Cívica Radical não pode ocupar este espaço?

Pode. O que acontece é que a UCR sempre tem um pé progressista, ou ao menos que quer se destacar como progressista, e isso cria um problema com o eleitorado que vota na centro-direita.

Este governo já fez o enfrentamento que tinha de fazer com o agro e agora pode levar adiante um projeto de industrialização?

No conflito com o agro ninguém saiu vencedor. O agro entendeu isso e vê que com estes preços internacionais e esta taxa de lucro não é prudente brigar com o governo. O governo tem de refazer sua estratégia com o agro. A anterior foi equivocada. Colocou quatro entidades que nunca estiveram juntas somadas. Isso se manifestou na força que teve o agro em 2008. A não ser pela Sociedade Rural, vai conseguir diálogo com o resto.

A respeito dos resultados de domingo, como analisar os papéis de Duhalde (Eduardo Duhalde, ex-presidente da Argentina) e Carrió (a deputada Elisa Carrió, da oposição) ?

São os dois grandes perdedores. Além de Alfonsín em certos pontos. Das primárias até aqui houve um grande perdedor. Duhalde perde seis pontos de votação entre agosto e hoje. Lilita Carrió perde dois pontos. Se você olhar, os pontos de Duhalde foram para Binner (o socialista Hermes Binner), o que coincide com o diagnóstico de que a centro-esquerda estava com a centro-direita. O grande derrotado é Duhalde. Elisa Carrió já vinha sendo derrotada. Não é a grande derrotada. Ontem havia um post no Twitter que dizia que Carrió é a história de Benjamin Button (referência a filme com o ator Brad Pitt em que o personagem principal nasce com aparência de idoso e vai envelhecendo e mudando a aparência)  em votos. Nasce grande, morre pequena. Ela teve uma excelente estreia eleitoral em 2003, foi melhor em 2007, e agora tem 1,8%.

E Binner, tem chances para 2015?

O dilema é que ele precisa do apoio da UCR. Se a UCR assume que desde 1995 deixou de ser o que todos pensávamos que era, poderia somar-se ao setor político liderado pelos socialistas. Mas isto, para a história da UCR, é muito difícil. Se se olha a taxa de votação da UCR, em 1995 foi terceira. Em 1997, ganha a Aliança, mas aí não estão só os votos da UCR, mas também os da Frepaso. Em 1999 ganha a Aliança, mas em 2001, quando a UCR se desmorona novamente, em 2003 fica com três por cento dos votos. Em 2007 apresentam um candidato peronista, que era o ex-ministro da Economia de Kirchner, Roberto Lavagna, que vai a 16% dos votos. E domingo, com Alfonsín, fica com 10% dos votos. Se fizermos uma análise simplesmente do potencial eleitoral, é diferente do poder institucional, que também já andou perdendo. Deveria confluir um novo partido debaixo de uma nova liderança, mas isso é muito difícil para os radicais processarem. Hoje Binner pode exigir certas coisas porque é claramente mais que a UCR. Mas precisamos novamente ponderar que o voto dado a Binner não é o voto do Partido Socialista, é da Frente Ampla e Progressista, que é mais que isso, e que é difícil de conseguir manter. Se entenderam que o caminho é este, têm quatro anos para trabalhar a aliança. Não sei se Binner terá qualidade de articulador para isso.

E Maurício Macri, chefe de governo da cidade de Buenos Aires, fez bem em não disputá-la?

Sim. O segundo grande ganhador, e sem haver disputado, é Macri. É o que está faltando, um partido de centro-direita claro. Sem ambiguidades. Isso é Macri. É centro-direita. Seria a referência deste espaço. Mas o problema dele é que os votos somam cem. Não pode somar 150. Se o kirchnerismo tem 50% dos votos, e se tem uma centro-direita forte, uma centro-esquerda forte, estes dois têm 25% cada um, com o que não podem bater o kirchnerismo. Somar por centro-esquerda é debilitar a centro-direita e garantir que o kirchnerismo siga ganhando.

Néstor Kirchner chegou ao governo com 22%. Como conseguiu politicamente encontrar suporte?

As eleições de 2003 foram inusuais. Votou-se unicamente para presidente, e as eleições para deputados foram feitas aos poucos. Com a vitória, Kirchner foi o claro vencedor do kirchnerismo, não foi Duhalde, e rapidamente se reorganiza o tabuleiro. Isso minimizou a debilidade no Legislativo. A aliança com Duhalde andou bem até 2005. A grande jogada política, com uma coragem política sem precedentes, nas eleições legislativas para senador por Buenos Aires vai Chiche Duhalde, esposa de Eduardo Duhalde, contra Cristina Kirchner. Quando Cristina ganha, e o faz com a margem que ganhou, Néstor se anima a desduhaldizar-se. Saem do gabinete os duhaldistas que não se converteram ao kirchnerismo. De 2005 a 2007, Kirchner consolida seu poder político, e em 2007 termina de configurar o espaço eleitoral. Domesticou o Partido Justicialista, que era muito difícil de fazer, construiu alianças locais.

E com a população, que estava muito desiludida com a política?

Se pudéssemos fazer uma foto da Argentina em 2001, 2003, 2005, 2007, 2011, vai parecer que se passaram 50 anos. Houve uma reconfiguração muito importante da política. Acho que Cristina teve um papel muito importante nisso, e a ela não se reconhecem as qualidades de quadro político. Néstor tinha um grande papel, óbvio, mas isso acaba por minimizar o papel de Cristina.

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