Argentina condena membros do maior campo de concentração da ditadura

Sentença sai oito anos após o país dar fim às leis de anistia. Ativista entende que julgamentos terão de dar lugar a outras lutas

Buenos Aires – A Justiça da Argentina anunciou a condenação à prisão perpétua de 12 integrantes da Escola de Mecânica da Marinha (Esma, na sigla em castelhano), o maior e mais conhecido campo de concentração da última ditadura argentina (1976-83).

O caso, definido na quarta-feira (26) após mais de dois anos de debates, apresenta uma série de avanços na luta argentina pela chamada Justiça de Transição, entre os quais o de ser o primeiro relacionado à Esma, uma estrutura de terrorismo de Estado mantida na área norte da cidade de Buenos Aires, e hoje convertida em um memorial em homenagem às 30 mil vítimas do regime repressor.

Além disso, foram condenados os responsáveis pela morte do jornalista Rodolfo Walsh, assassinado após publicar uma carta no “aniversário” de um ano do governo autoritário na qual denunciava as atrocidades que vinham sendo cometidas. O juiz Daniel Obligado reconheceu ainda que o suicídio cometido pela militante Maria Cristina Lennie não se tratou de tal, mas de um homicídio. Lennie tomou pastilhas de cianureto no momento do sequestro, uma prática acordada entre os militantes para evitar que, sob tortura, fossem dadas informações relevantes que colocassem em risco grupos inteiros de resistência. Por fim, foram condenados os responsáveis pela morte de Azucena Villaflor, fundadora do grupo Mães da Praça de Maio.

Ainda sem contabilizar estas últimas condenações, 16 ao todo, a Argentina tem 210 repressores condenados. “Seguramente vão aparecer novos repressores porque do universo de pessoas imputadas não dá para acreditar que apenas estes comandavam os 350 centros clandestinos”, lembrou Carolina Varsky, diretora da área de ações judiciais do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), uma das entidades que moveram a ação no caso Esma. A causa judicial teve ainda o peso de responsabilizar duas das figuras mais sinistras da repressão: Jorge “El Tigre” Acosta, chefe da Esma, e Alfredo Astiz, o anjo da morte, que se infiltrou nas organizações de direitos humanos para delatar as vítimas e é responsável pela morte de duas freiras francesas. 

Em entrevista concedida à Rede Brasil Atual antes da divulgação da sentença, Carolina ponderou, no entanto, que a Justiça de Transição terá de ser encerrada em algum momento para dar início a novas lutas. “Chega um momento em que pelas vítimas, ou porque os acusados falecem, ou porque a agenda de trabalho precisa se concentrar em outros aspectos. Usar outros mecanismos que não sejam exatamente a justiça e o castigo.”

A transição argentina teve início logo no primeiro governo da redemocratização, quando o presidente Raúl Alfonsín determinou a criação da Comissão Nacional de Desaparecidos Políticos (Conadep), que pode ser entendida como a comissão da verdade da nação vizinha. O informe conhecido como “Nunca Mais” vale-se do trabalho de várias entidades, entre elas organizações brasileiras de direitos humanos ancoradas na Arquidiocese de São Paulo, que haviam realizado o primeiro levantamento sistemático das listas de mortos pela ditadura argentina.

Logo em seguida, no entanto, esta luta sofre um refluxo com as leis Obediência Devida e Ponto Final, que restringem os casos em que pode haver julgamento e condenação dos culpados. Na década de 1990, as entidades de luta por reparação moral sofrem problemas com o governo conservador de Carlos Menem, e recorrem a organismos supranacionais. Em 2003, Néstor Kirchner decide colocar a política de direitos humanos no centro de seu mandato, e revoga os dispositivos que davam guarida a torturadores. Até hoje, 1.774 repressores foram processados. Além dos 210 condenados, há 273 denunciados, mais de 700 que estão em fase de processo, 17 que foram absolvidos, 39 foragidos e 278 falecidos.

A seguir, trechos da conversa com Carolina Varsky, do CELS, a respeito das ditaduras da Argentina e do Brasil.

Neste momento, que dificuldades opõem-se ao avanço das lutas para apurar os crimes da ditadura?

O processo de justiça em relação aos crimes do passado avançou muito na Argentina. Os debates em 2006 eram dois, e estamos com l9 no ano passado. Há questões que têm a ver com que a reabertura de um processo não teve um desenho de processamento penal. De 2003 em diante, não teve quem olhou o mapa das causas e montou uma estratégia – vamos investigar por centro clandestino, por regimento, por acusado. Cada jurisdição abriu suas causas.

Há jurisdições com 100 casos individuais abertos. Há outras que investigam pelos centros clandestinos. Um dos grandes déficits que se tem agora é que algumas jurisdições têm um número enorme de causas acumuladas. Precisaria se pensar em como evitar a repetição de testemunhos. Um dos grandes problemas que temos é que as vítimas, os parentes, estão cansados de declarar. Precisamos evitar que sejam chamados ‘sete’ vezes.

Outra questão é pensar em como fazer a integração dos tribunais. Precisa-se pensar em não fazer novos julgamentos sobre os mesmos casos. Isso tem a ver com a designação de juízes. Avançou-se na digitalização de muitas causas. Seguem havendo problemas sobre os lugares onde se farão os debates. Há julgamentos feitos em lugares fechados. 

Há um momento em que acaba a transição?

O termo Justiça de Transição é muito complexo. Teremos julgamentos por mais alguns anos, mas não é nossa intenção como organismo de direitos humanos seguir indefinidamente com isso. Chega um momento em que pelas vítimas, ou porque os acusados falecem, ou porque a agenda de trabalho precisa se concentrar em outros aspectos. Utilizar outros mecanismos que não sejam exatamente a justiça e o castigo. Seguramente vão aparecer novos repressores porque do universo de pessoas imputadas não dá para acreditar que apenas estes comandavam os 350 centros clandestinos. Não me imagino em uma situação como a da Alemanha, que segue investigando os criminais nazistas.

Por quê?

Acredito que tem a ver com que tudo o que se avançou até agora, que foi muito. Tendo em conta que é um processo penal, para condenar uma pessoa é preciso ter provas. Só uma menção à pessoa não é prova. Precisam surgir novos arquivos. Esta prova, como se constrói? Também pelo testemunho das vítimas, mas elas estão cansadas.

Alguns dos ministros do Supremo Tribunal Federal do Brasil entendem que a decisão deles se sobrepõe à da Corte Interamericana no sentido de garantir que a Lei de Anistia mantenha impunes os repressores.

Se pensamos em termos do caso argentino, a primeira vez em que um juiz declarou a inconstitucionalidade das leis foi em 4 de março de 2001. Em 14 de março, a Corte Interamericana se pronunciou no caso do Peru, no qual disse que o Estado peruano não poderia interpor qualquer questão de anistia para deixar de julgar o caso Barrios Altos. Esta decisão ajudou muito a que a Câmara Federal e logo a Corte Suprema se pronunciassem sobre a necessidade de se investigar estes fatos porque de fato a Argentina poderia incorrer em uma falta internacional.

Enquanto não se investiga, que risco se corre?

Se não se investiga não se conhece a verdade dos fatos, e todo este trabalho de limpar as instituições é difícil de fazer. Os julgamentos permitem conhecer partes da verdade que não se conhecem.

 

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