Corralito: a crise institucional argentina completa dez anos

Carlos Menem e seu ministro da Economia, Domingo Cavallo, prometeram décadas de prosperidade ao povo, mas entregaram o oposto

Buenos Aires e São Paulo – Não se vai da bancarrota do dia para a noite. O processo que estourou na Argentina de dezembro de 2001 tem raízes profundas. Diretamente, em 1999, com o governo de Fernando de la Rúa. Em termos de trajetória, em 1989, com a presidência de Carlos Menem, e em 1976, com o golpe de Estado que dá origem à última ditadura.

Períodos que têm em comum um personagem. Domingo Cavallo foi presidente do Banco Central no momento em que Martínez de Hoz comandava o Ministério da Economia do governo militar. Tinha início o processo de desmonte do Estado construído ao longo das décadas anteriores, capaz de transmitir à classe média sensação de bem-estar, e, ao mundo, a impressão de um país latente.

O regime repressivo terminou em 1983. Em 1989, vence Carlos Menem, do Partido Justicialista, também conhecido como peronista, e Cavallo volta. Primeiro como chanceler e, dois anos depois, como titular da Economia.

Foi em 1992 que a Argentina colocou em marcha a Lei da Conversibilidade. A partir de 1º de abril daquele ano, com a troca da moeda vigente, um peso conversível passou a valer um dólar. Entrava-se no banco com uma nota de cem pesos e ela se transformava em uma de cem dólares. A renda per capita argentina, não por acaso, passou a ser a maior da América do Sul, em torno de oito mil dólares.

A equipe econômica conseguiu combater assim a hiperinflação que historicamente assolava o país. “O peso, que a partir de 1º de janeiro valerá igual que o dólar, é uma men… uma moeda destinada a durar com esse valor por muitos anos. Atrevo-me a dizer: por décadas”, dizia o ministro em pronunciamento de abril de 1991. Duas sílabas mais, e “mentira” teria sido proferida – o que poderia ter feito a verdade vir à tona dez anos antes. Não por acaso a hesitação ou ato falho de Cavallo tornou-se emblemática no auge da crise.

O ministro ensinava aos pobres gauchitos, desconhecedores do além-fronteiras, que o mundo civilizado era assim, e não tolerava comerciantes careiros que colocassem em risco as metas de inflação. “Deixem de comprar-lhes. Isso que lhes convido a fazer é prática cotidiana em todos os países estáveis do mundo”. Dá-lhe, Cavallo, dá-lhe. Estimado amigo, que fazemos para chegar ao Eldorado? As famílias devem ter apreço pelo dinheiro e não gastar em demasia. A fórmula deu certo nos primeiros meses. Tirar das costas do assalariado a alta de preços de itens básicos criava uma sensação positiva.

O dólar igualado ao peso tornava mais fácil viajar ao exterior, e em qualquer lugar do mundo os argentinos sentiam ter poder de compra. Mas a mesma cotação que facilita a vida do consumidor é o terror de empresários e produtores rurais. O peso valorizado torna muito barata a importação de produtos, que era 74% maior em 1999 na comparação com 1992 – no ano anterior, 1998, a diferença era de 114%. Exportar, em contraposição, faz-se tarefa cada vez mais difícil.

Tardou um pouco para que os efeitos se fizessem sentir. Centenas de milhares de produtores rurais se viram na obrigação de hipotecar os campos. Cerca de 400 mil pequenas e médias empresas fecharam as portas, desempregando 1,6 milhão de pessoas.

O governo Menem-Cavallo seguia à risca o que lhe dizia o Fundo Monetário Internacional (FMI). Vender empresas, apreciar a moeda, abrir-se aos mercados mundiais. “Isso complicou o sistema produtivo. Se você gasta mais do que tem, em algum momento vai ficar mal. Menem não soube resolver essa questão”, diz Osvaldo Tagliani, um aposentado que mora em Buenos Aires.

De fato, não houve conta corrente positiva nos dez anos de menemismo. Na balança comercial, um ou outro superávit foi garantido com base na verba que entrava pela privatização. Mas, se um país não produz, e se ele vendeu tudo, não tem do quê viver. Quando acaba o dinheiro, o fundo manda mais, embora cobre juros mais altos.

E os juros se pagam tomando mais empréstimos, a juros um pouco mais altos. Em 2000, da dívida pública argentina, 54,8% havia sido contraído durante o período do menemismo; 25,26% durante a ditadura; 13,68% no governo de Raúl Alfonsín, antecessor de Menem. De gota em gota, até o copo transbordar.

O gênio da cereja

Quando isso ocorreu, Menem já não era presidente. Fernando de la Rúa foi responsável por 0,99% da dívida. Era o presidente certo para o momento certo: tardou a dar-se conta dos problemas que o cercavam. Quando percebeu, sacou do bolso uma ideia: se Cavallo nos colocou nessa, Cavallo deve saber o caminho para a porta de saída. Che, sos vivo, presi, eh? Como lhe ocorreu isto?

Àquela altura, o desemprego se aproximava da quinta parte da População Economicamente Ativa e a pobreza afetava a 35,9% dos argentinos – superava 55% no nordeste do país. Antes de chamar Cavallo para colocar a cereja no bolo, De la Rúa cogitou entregar o confeito ao FMI, que nomearia um técnico para trabalhar dentro do governo – nada que não se veja na Itália de 2011.

A essa altura, seguir o receituário do Fundo deixava de ser uma questão de linha ideológica, mas de obedecer ao credor. Em novembro de 2000, o diretor-geral do FMI, Horst Köhler, elogiava mais uma vez os ajustes tomados pelo governo. “As medidas anunciadas pelo presidente De la Rúa esta noite demonstram sua forte liderança e representam um significativo reforço no programa econômico, fornecendo mais evidências do compromisso da Argentina com a política que vem sendo mantida com sucesso há uma década”, dizia em um comunicado. Para acessar os recursos dourados, a Argentina precisava cumprir com condições cada vez mais difíceis.

Cavallo chega mais uma vez ao comando da Economia dizendo-se transformado. Esqueçamos a ortodoxia de outros tempos: o ministro aproveitou uns períodos fora do governo para arejar, tomar aulas de desenvolvimentismo, é um progressista completo, há quem diga que virou marxista.

Semanas depois, o ministro anuncia sua política de déficit zero, e é hora de cortar na carne de uma vez por todas. Vale de tudo para garantir novos saques no FMI, até mexer na conta dos argentinos. Lembra de quando, dez anos atrás, ele falou que iria precisar de nossa ajuda? A desconfiança crescente dos credores e da população, alimentada por um passado de problemas similares, levou muita gente aos bancos, sacando a poupança, que estava na mira do governo.

Declara-se no início de dezembro o “corralito”, limitando os saques bancários a 250 pesos-dólares por semana. Quantia difícil para se viver. Quem não havia se tornado pobre por força da economia arruinada passou a ser pobre-temporário por força de decreto.

Àquela altura, já se articulavam por todos os lados assembleias de bairro nas quais os vizinhos uniam forças para sobreviver à fome, organizar-se e combater o governo. Em 19 de dezembro, surge o primeiro panelaço. De la Rúa não passaria o Natal na Casa Rosada.

Acompanhe neste sábado (3) a segunda reportagem especial sobre os 10 anos da grande crise institucional argentina

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