Eleições no Chile mexem com sonho boliviano de saída ao mar

Na relação com o Brasil, candidatos prometem aproximação. Em programa, país é tratado como 'potência'

Favorito Piñera deve paralisar negociações que avançaram no governo Bachelet (Foto: Divulgação/Flickr)

A poucas semanas do segundo turno, as eleições presidenciais chilenas seguem acirradas, como não poderia deixar de ser diferente, mas as atenções sobre o futuro ocupante de La Moneda talvez sejam tão grandes em La Paz quanto em Santiago.

A vitória do conservador Sebastián Piñera poderia frear o ímpeto do governo Evo Morales em conseguir uma saída soberana ao mar – o acesso ao Pacífico é eixo principal da política externa de seu segundo mandato.

A eleição de Eduardo Frei Tagle, ex-presidente e integrante da coalizão governista, não alteraria grandemente as aspirações bolivianas de conseguir uma saída soberana ao mar. As negociações conduzidas pelo governo de Michelle Bachelet, naturalmente, seguiriam o rumo de buscar que o vizinho possa administrar alguma área.

 A julgar pelo programa de Piñera, tão amplo quanto vago, é melhor a Bolívia torcer fortemente pelo candidato oficialista. “Chile deve ter uma atitude muito clara e não criar falsas expectativas que terminam prejudicando as relações entre ambos países. Devemos evitar gerar mais mesas negociadoras ou expectativas que sabemos ser impossíveis de cumprir, e desde este ponto de vista estar disponíveis para cumprir, de maneira zelosa e rigorosa, o tratado de 1904”.

O tratado de 1904 fez com que a Bolívia cedesse, sem custos, sua saída marítima. Duas décadas e meia depois, Chile e Peru estabeleceram que qualquer cessão futura aos bolivianos só seria feita de comum acordo entre as duas partes – e Alan García, presidente peruano, não é exatamente o tipo de parte que a Bolívia gostaria de ter como vizinho.

Somem-se a isso as declarações do empresário Piñera de que concorda em oferecer facilidades, mas não a saída soberana, e está adiado o sonho da Bolívia, um daqueles que encontram poucos paralelos na história mundial.

O país, picotado por diversos conflitos bélicos e diplomáticos ao longo dos séculos XIX e XX, viu na Guerra do Pacífico (1879-1883) um ponto fundamental de sua soberania indo por terra. De lá para cá, o tema mobiliza esquerda e direita, que sabem que, sem mar, o progresso do segundo país mais pobre da América do Sul será sempre limitado.

Rodrigo Álvarez Valdés, professor da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) em Santiago, avalia que Piñera seguiria trabalhando por uma aproximação. “Mas sempre no sentido de que um governo de direita se fixaria nos acordos já existentes. E olharia muito mais pela lógica multilateral do que por uma negociação bilateral”, avalia.

A negociação avançou fortemente durante os atuais governos, com o estabelecimento de uma agenda de 13 pontos que inclui a solução para o problema boliviano. O Chile estuda ceder os rios Silala para o vizinho como forma de garantir o transporte, mas o fato é que as negociações não chegaram ao fim a tempo de Bachelet ver o tema solucionado.

Logo depois de sua reeleição, no início do mês, Evo Morales deixou claro a importância da questão: “Sei que existe no Chile um debate forte sobre se será devolvida à Bolívia uma saída para o mar, com ou sem soberania. Isso é um avanço. Antes, o Chile não reconhecia que a Bolívia tinha direito a uma saída para o mar, agora isso é reconhecido”, comemorou.

Debate forte não seria exatamente os termos. A relação com a Bolívia é importante, mas muito mais pela manutenção do respeito de lado a lado do que pela situação econômica, em que os chilenos pouco têm a lucrar. As duas nações têm relações diplomáticas cortadas desde 1962, o que claramente é muito mais prejudicial aos bolivianos.

Rodrigo Álvarez Valdés avalia que o tema tem importância quase nula para a eleição chilena. “A diferença do que ocorre na Bolívia, aqui há uma visão muito mais conservadora nesse sentido e não vejo neste tema uma problemática da sociedade chilena. É algo que surge em momentos conjunturais, um campo no qual se entende que não deveria haver questionamento”.

Brasil

Por outro lado, as relações com o Brasil, essas sim, têm bastante importância para o país. Fortalecidas durante as gestões Lula e Bachelet, as negociações parte a parte interessam a ponto de o Brasil ser colocado no programa de governo de Piñera no capítulo dedicado às “grandes potências”.

De certa maneira, nenhum dos dois candidatos pretende mexer com as linhas básicas da política externa atual. O Chile sempre teve a determinação de fazer alinhamentos que não inviabilizassem sua autonomia de negociar em outras frentes, daí o fato de não haver ingressado no Mercosul e de ter assinado acordos de livre comércio com os Estados Unidos, por exemplo.

O pesquisador Rodrigo Álvarez Valdés aponta que, na atual gestão, essa política foi seguida, mas ampliou-se grandemente o número de parceiros, o que por sua vez deixou o país mais aberto. A intenção é a entrada de produtos baratos e o aumento do intercâmbio tecnológico.

Em passagem este ano por São Paulo, a presidente Michelle Bachelet não escondeu que seu país é uma plataforma para as exportações brasileiras. Reconhecendo a dimensão territorial limitada do Chile, o governo atual prefere abrir suas portas do Pacífico para o Brasil e lucrar com a movimentação gerada por lá com a passagem dos produtos.

O Itamaraty, nesse ponto, não tem por que se preocupar com o resultado chileno nas urnas. Os dois candidatos, que sempre guardaram mais semelhanças do que diferenças, parecem não discordar em nada no que diz respeito às relações com o maior país sul-americano. Piñera considera que o “Brasil para nós é um país fundamental, não somente por haver compartilhado histórias e interesses, mas porque se transformou em uma potência mundial e, ainda mais, é a grande potência de nossa América do Sul”.

O nome da Concertação, Eduardo Frei, pensa que “os laços com o Brasil são excelentes, pelo que existem as condições para consolidar uma aliança ou sociedade especial que gere maior interdependência bilateral, bem como vínculos de complementaridade para assegurar a paz, o progresso econômico, a coesão social, a estabilidade democrática e a integração em todo o continente, porque nosso desenvolvimento precisa de uma região integrada”.

A empolgação de oferecer situação privilegiada ao Brasil é tamanha que os redatores do programa de Frei esqueceram-se que o país não pode ter aliança especial com o Chile por conta das cláusulas do Mercosul, que impõe que a negociação só pode ocorrer através do bloco, incluindo todos os membros.

Mesmo vagas, são palavras que reconhecem que o Chile deve ser um espaço para que o Brasil viabilize suas exportações para a Ásia. Rodrigo Álvarez entende que, nesse aspecto, as relações serão guiadas, como sempre, pelo pragmatismo, mas avalia que os chilenos ainda não pensaram em um aspecto: “É interessante visualizar de que maneira o Chile, governado pela direita ou pela centro-esquerda, vai lidar com a erupção do Brasil no contexto mundial e regional. O Brasil assumiu seu papel, o que deveria gerar certas tensões na região, e isso creio que o Chile não resolveu como vai fazer”.

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