Criado na Guerra do Paraguai, imaginário de inferioridade do vizinho persiste, diz professor

Jornalista pesquisou charges da imprensa brasileira durante o conflito do século XIX e lembra que expressões cotidianos mencionam país vizinho ligado à ideia de falsificação ou fracasso, como “cavalo paraguaio”

Solano Lopez era retratado em charges como ditador que comandava ignorantes (Foto: Wikicommons)

O time de futebol que larga na frente em um campeonato, mas não inspira muita confiança dos comentaristas, logo recebe a pecha de “cavalo paraguaio”: cairá em desgraça antes do fim da competição. Em uma festa, serve-se um uísque “legitimamente paraguaio”, alusão a uma bebida de baixa qualidade e, muito provavelmente, falsificada.

As ocasiões em que o Paraguai aparece em expressões cotidianas é como sinônimo de má qualidade e pirataria são inúmeras, vão muito além dos exemplos dados acima. Em “A batalha de papel” (editora LP&M), o professor de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mauro César Silveira, relata que a visão negativa do vizinho, ainda que se tenha transformado ao longo das décadas, foi forjada durante a Guerra do Paraguai (1864-70), conflito em que Brasil, Argentina e Uruguai dizimaram boa parte da população masculina paraguaia.

Em julho deste ano, ficou claro como o imaginário do Brasil como país superior ao vizinho está vivo. A eleição de Fernando Lugo e a meta do novo governo de renegociar acordos de Itaipu provocaram reboliço em parte da imprensa nacional, que logo passou a escorar-se na informação de que o tratado relativo à hidrelétrica é legítimo e não deixa dúvidas – a informação de que o acordo foi assinado por dois governos ilegítimos não é levada em conta, no entanto.

“Mostro como a mídia brasileira continua, mais de 140 anos depois (da guerra), trabalhando ideias que na verdade surgiram durante aquele episódio. O Paraguai, já naquela ocasião, era associado a uma imagem de negócios escusos”, afirma.

Mauro César Silveira pretende acrescentar, na próxima edição do livro, um posfácio com exemplos atuais sobre a propalada superioridade brasileira e a associação da imagem do Paraguai à falsificação.

Uma dessas ideias é a de cavalo paraguaio, citada no início desta reportagem. De acordo com o professor, a expressão surgiu porque Solano Lopez, à época presidente do Paraguai, venceu a primeira batalha, mas acabou perdendo a guerra. Desde então, é sinônimo de alguém que começa na frente e acaba derrotado. O termo ganhou força nova no noticiário esportivo dos últimos anos com os campeonatos nacionais de pontos corridos.

A pesquisa do docente, iniciada na década de 90, focou-se nas charges publicadas na imprensa brasileira durante os anos de combate. Do material disponível na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foram selecionadas 202 ilustrações sobre o período. “Quando me deparei com as imagens, a totalidade era negativa. A maioria dirigida a Solano Lopez, construindo a imagem de um inimigo que precisava ser derrotado, personificado em uma figura cruel”, relata. Além disso, manifestava-se a imagem de um povo fraco, inferior, que precisava ser salvo pelo Império do Brasil.

Como a tecnologia não permitia o envio de imagens da batalha, as charges permitiam imprimir a visão desejada pelo Estado brasileiro, de modo a justificar a morte de centenas de milhares de pessoas. Mauro César Silveira aponta que, para isso, Solano Lopez era reproduzido como um ditador que comandava ignorantes: “Isso, de certa forma, persiste. Nossa elite, quando quer reduzir a importância de determinados problemas sociais que a gente vive, diz: ‘dá uma olhada no Paraguai’”.

Outro caso recente em que cabe fazer um paralelo é a nacionalização dos campos de petróleo e gás da Bolívia pelo presidente Evo Morales, que teve ampla repercussão negativa na imprensa de massa brasileira. “Até hoje tem jornalistas que usam a expressão ‘índio cocaleiro’ para se referir a ele (Morales). Na verdade, a crítica carrega sobretudo muito preconceito. Como todo preconceito, pega-se uma parcela ínfima da realidade e que é projetada de forma grande”, lamenta.

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