Medellín e a tradição dos silleteros

A vida daqueles que herdam uma tradição secular de carregar sobre as costas um peso maior que o do corpo

Don Oscar fala ao público enquanto o filho, Juan Guillermo, prepara uma silleta para os visitantes (Foto: João Peres)

Oscar Londoño explica calmamente os tempos de outrora e fala sobre o orgulho de seu antigo ofício. A finca (pequena propriedade rural) em Santa Elena, 40 minutos a leste de Medellín, sempre foi a vivenda deste patriarca de uma família de origem humilde e que hoje claramente não sofre tantas dificuldades financeiras.

Don Oscar herdou a profissão de silletero, que hoje serve como atração principal da Feira das Flores, evento mais importante da segunda maior cidade colombiana. No passado, os silleteros tinham a triste função de animais de carga humanos. Em suas costas, amparados por uma armação de madeira, viajavam autoridades que preferiam usar as pernas de outros para superar as montanhas do Vale de Aburrá. Depois, entrado e avançado o século XX, os silleteros carregavam pessoas enfermas, grávidas ou que tivessem necessidade de chegar rapidamente à cidade. 

Atualmente, consiste em pelo menos uma vez ao ano (os silleteros são muitas vezes contratados para eventos em outros países) dar sua carga de sofrimento ao ofício. A maioria trabalha com flores ou até na indústria têxtil, principal renda de Medellín. Carregam sobre as costas as silletas, pesadas estruturas de madeira adornadas com flores.

O povo de Antioquia guarda orgulho dessa gente, que talvez traduza e sintetize a obsessão propalada de trabalhar. Os paisas, moradores dessas terras, declaram amor ao aguardente (guaro), orgulham-se de ser o povo com maior índice de consumo de bebida per capita da Colômbia, mas dizem gostar ainda mais de trabalho. Não importa a que horas durmam, no outro dia, às 7 da manhã apresentam-se no escritório, restaurante, repartição pública, seja o que seja, de maneira impecável – para casa, ninguém retorna antes das seis da tarde, pelo que conta o mito dessas bandas.

Embora hoje tenha rotina mais tranquila, Don Oscar insiste em acordar cedo: 5h30 durante a semana, e 4h30 aos domingos, quando vai à missa. Após tomar banho, ele senta no quintal de casa e fica observando o movimento, que não é muito nessa finca. Almoça e observa mais um pouco. No fim da tarde, vê as notícias na TV e vai dormir.

O cotidiano por estes dias, no entanto, está mudado: com a Feira das Flores, milhares de turistas locais deslocam-se para a finca todos os dias. Gente ávida por um turismo que simplesmente reafirme sua condição de paisa, seu orgulho de gente trabalhadora e sofrida. Sem saber muito bem de onde, enquanto Don Oscar fala, uma gentarada surge apressada para ver as silletas que dali a dois dias decorarão o desfile principal da festa. Ele não se abala: “aquele que vive só é um pouco amargo. O melhor que há no mundo é conviver com toda a gente, ter amizade com todo mundo”.

Tudo o que precisam os turistas-locais é de algumas fotos, e o interesse por ouvir este patriarca acaba assim que o almoço começa a ser servido. Sempre em bandos, deslocam-se para uma fila não muito respeitada em busca do prato paisa de cada dia: arroz, feijão, torresmo, chouriço, abacate, salada. A versão pode ainda ser acrescida de carne moída, banana e ovo.

A invenção, de acordo com o relato de Don Oscar, parece recente e combina com a necessidade paisa de ter em tudo o maior, o melhor – não importa se é o maior do mundo, da Colômbia, de Antioquia ou do quarteirão. Uma necessidade de mostrar a prosperidade da região: “antes, nem sequer o arroz chegava a um. A bandeja paisa foi muitos anos depois”, diz o patriarca enquanto o filho Juan Guillermo Londoño confecciona uma silleta com flores colombianas.

Há vários tipos delas: tradicional,

emblemática, monumental e comercial. No dia do desfile, em torno de 500 pessoas carregam sobre as costas essas estruturas, que têm entre 70 e 80 quilos.

São alguns selecionados entre umas poucas famílias que dominam a técnica e o dever de sofrimento deste ofício. Na hora do evento, tarde de sexta-feira em Medellín, calor absurdo, milhares de pessoas se acotovelam no espaço de dois quilômetros e meio de trajeto. Como nas aglomerações festivas de qualquer parte do mundo, vendedores aproveitam para garantir o prato paisa.

Para um estrangeiro que consegue superar a barreira humana para ver algo, a face dos silleteros demonstra sofrimento. Marta, outra silletera, conta que o faz “pela tradição, porque gosto, desfruto. Nada melhor que fazer o que gostamos”.

“O orgulho de ser camponês e tomar as ruas da cidade em dias como o 7 de agosto, em que vocês com aplausos – e com as pessoas que olham pela televisão – fazem com que a silleta seja mais leve”, diz Don Oscar. Mas ninguém pode esconder: carregar a silleta deixa marcas pelo corpo. O aguardente, que anteriormente era utilizado para aguentar o dia puxado na cidade grande, neste ano foi proibido entre os silleteros.

Uma rádio local ironiza a tradição ao mesmo tempo em que aproveita para fazer piada da “necessidade” das mulheres antioquenhas de terem seios grandes. Uma necessidade que, aparentemente, surgiu no auge de narcotráfico e violência, entre as décadas de 1980 e 1990, exatamente entre as esposas de mafiosos, e que neste 2009 alimenta o lucro de clínicas de estética e de cirurgias plásticas pela cidade. A emissora local ironiza o gosto um tanto duvidoso, mas que de alguma maneira critica a vontade de superar-se:

–    Senhora, vejo que está curvada. É muito pesada a silleta, hein?
–    Não, não é a silleta. É que meus peitos são muito grandes, por isso estou me arrastando.

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