Líder indígena: ‘quem protesta no Peru é terrorista’

Em entrevista à Rede Brasil Atual, Lourdes Huanca Atencio declara que há um responsável com nome e sobrenome pelos problemas com os camponeses: Alan García

O presidente do Peru, Alan García, nesta semana anunciou mudanças em seu gabinete incorporando o partido Apra à base de sustentação do governo (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Mais de um mês se passou desde o conflito que deixou dezenas de mortos na selva peruana. Neste período, ministros caíram, a popularidade de Alan García, que já era baixa, chegou ao pior nível imaginável, e o Congresso derrubou os decretos contra os quais os indígenas se manifestavam.

Mas a vida das comunidades originárias só piorou. Depois de Alberto Pizango, os irmãos e líderes Saúl e Cervando Puerta Peña pediram asilo à Nicarágua alegando falta de segurança no país. Em entrevista à Rede Brasil Atual, Lourdes Huanca Atencio, presidente da Federação Nacional de Mulheres Camponesas, Artesãs Indígenas, Nativas e Assalariadas do Peru (Femucarina), confirma que “todas nossas famílias estão desamparadas, bem como nossos companheiros que estão fora do país porque a Justiça do Peru não lhes dá garantias”.

Entrevista

Lourdes Huanca Atencio

presidente da Federação Nacional de Mulheres Camponesas, Artesãs Indígenas, Nativas e Assalariadas do Peru (Femucarina)

Em Belém para o Fórum Pan-amazônico, que termina nesta sexta (17), a líder indígena aimará conversou por telefone com a reportagem sobre a situação dos camponeses no país. Emocionou-se várias vezes ao falar do preconceito sofrido pelas mulheres peruanas, da morte do irmão que se opôs às multinacionais e da violência contra o filho que lutou por direitos trabalhistas.

RBA – A senhora acredita que o machismo no Peru é um reflexo da colonização ou vem deste antes?

Para nós, como mulheres, dirigentes e camponesas, muitas vezes é difícil assumir responsabilidades. No nosso país reina o patriarcalismo machista. Creio que vem de antes da colonização, porque na história mesmo de cada país sempre eram os homens os senhores, e as mulheres as serventes. Na cultura de nosso país, o homem tem a razão, é o dono da casa, o que enfrenta a situação.

“As mulheres temos muito mais vezes problemas para poder assumir responsabilidades. Sua família não lhe entende, o sistema não lhe entende e reina o patriarcalismo. Ou o matriarcalismo, porque muitas mães, irmãs, quando você está discutindo algo, dizem que “está agindo como homem”, não lhe dão razão, não lhe apoiam na luta.” – Lourdes Huanca, presidente da Femucarina

Claro que a colonização dá mais força a isso. Os homens puderam entrar na universidade e nos colégios com 50 anos de vantagem. Imagine você como temos que lutar agora para poder levar nossas filhas às escolas. Porque muitas vezes, quando o dinheiro não é suficiente, e tem um filho e uma filha, quem vai para a escola é o homem.

RBA – Por ser mulher e indígena, a senhora sofre dois preconceitos no Peru.

As mulheres temos muito mais vezes problemas para poder assumir responsabilidades. Eu, como presidente, tenho de ajudar a dar capacitação no que eu aprendo. Por exemplo, isso que estou discutindo aqui, devo ir até as províncias e dividir porque é algo que não deve morrer nos dirigentes. Com isso, tenho de deixar minha casa. Pelo menos consigo que meu esposo e meus filhos me compreendam, mas não é assim com os outros.

Sua família não lhe entende, o sistema não lhe entende e reina o patriarcalismo. Ou o matriarcalismo, porque muitas mães, irmãs, quando você está discutindo algo, dizem que “está agindo como homem”, não lhe dão razão, não lhe apoiam na luta.

O homem, quando vê que a esposa está avançando, sente ciúmes e faz com que ela não cresça. É um medo tonto. Se os dois ganham poder ao mesmo tempo, temos força para poder defender nossa terra e nosso território, nossa água, nossa semente que nos querem levar.

RBA – A nova Constituição boliviana reconhece o direito indígena de organizar sua própria justiça e de se autoadministrar. Isso representa uma conquista dos altiplânicos?

“Há um responsável (pelo incidente de Bagua). E tem nome próprio: é o presidente da República Alan García. E (também) todo seu gabinete ministerial por não terem a capacidade de governar para seu povo e para seu país. Estão governando para os interesses de transnacionais. Em seus discursos, afirmam que os camponeses e os amazônicos somos de terceira classe.” – Lourdes Huanca, presidente da Femucarina

Parece muito importante uma Constituição a favor de um povo esquecido, mas deve-se ter muito cuidado de que não se entenda da maneira errada e se comece a matar seres humanos. Temos de por as coisas claras no sentido de que temos o direito de organizar-se, de administrar nossas terras, mas isso não nos dá o direito de tirar a vida de alguém.

RBA – Como o movimento recebeu a notícia do que ocorreu em Bagua no mês passado?

Afetou-nos demais. Mas há um responsável. E tem nome próprio: é o presidente da República Alan García. E (também) todo seu gabinete ministerial por não terem a capacidade de governar para seu povo e para seu país. Estão governando para os interesses de transnacionais.

Em seus discursos, afirmam que os camponeses e os amazônicos somos de terceira classe. Por que nos dizem isso? Porque não queremos que se venda a água, não queremos que se viole nosso território, nossa cultura. Não queremos que nos agarrem e nos forcem a aceitar seus costumes. Por exemplo, defendemos nossas sementes criollas (do altiplano, convencionais). Hoje, com o tratado de livre comércio (com os Estados Unidos), querem impor as sementes transgênicas.

RBA – De que maneira o ocorrido em Bagua teve conseqüências no movimento indígena?

Piorou a criminalização dos protestos sociais. Todos os dirigentes, homens e mulheres, somos considerados terroristas. Todo o que fala, que protesta é terrorista. Todas nossas famílias estão desamparadas, bem como nossos companheiros que estão fora do país porque a Justiça do Peru não lhes dá garantias. Eles lhe deixam doente, lhe matam. Somos tratados pior que animais. Como é que podemos lutar para sobreviver no país? Não nos consideram como seres humanos. A impotência é tão grande.

RBA – Como estão as lutas camponesas altiplânicas?

A vantagem do que aconteceu em Bagua é que trouxe consciência tanto ao campo quanto à cidade. O país estava adormecido. Éramos muito poucos os que saíamos para lutar pelo temor da violência política.

Seguimos vivendo em um tempo em que as empresas grandes querem avançar com tudo. Se não despertamos, não poderemos viver tranquilamente e com uma vida digna.
Sabemos que o atual presidente e seu gabinete têm uma política capitalista neoliberal. Isso nos faz saber que há uma necessidade e uma urgência de chegar ao poder, estar em uma grande maioria dentro do Congresso.

RBA – Assim como a Bolívia, o Peru tem majoritariamente indígenas e mestiços em sua população. Como explicar que chegue ao poder sempre uma mesma elite branca?

Lamentavelmente, no nosso país existe isso de que estamos falando: o racismo, a discriminação. Muitas pessoas que vivem na cidade perguntam: “O que você vai saber propor? Um camponês vai saber se expressar?”. Isso é uma dor.

Mas agora está chegando à cidade a ideia de que é preciso unir homens e mulheres, campo e cidade. Os golpes da vida ensinam a unir as forças. Estamos em nossos passos para conseguir um governo de um camponês ou de um indígena correto em igualdade, em princípios. Porque tivemos um presidente indígena, Alejandro Toledo (2001-06), que tinha a mente imperialista, a mente de gringos. De nada valeu ter um presidente que tinha o rosto indígena.

RBA – Como tem sido a atuação de empresas de biotecnologia no Peru?

“Sem Pachamama, sem água, sem semear não há vida. Por isso pedimos que nos escutem, nos ajudem a respeitar nossa terra. Ajudar a cuidar do sangue da terra, que é a água. Nós, humanos, sem sangue não caminhamos, não é? A terra, sem água, que é seu sangue, não pode sobreviver. Temos de conservar a vida.” – Lourdes Huanca, presidente da Femucarina

Estão muito fortes as empresas mineiras que querem a terra e a água. E agora a Monsanto chega ao Congresso para dizer a maravilha que o mundo pode conseguir com a tecnologia transgênica. Isso é um crime. Querem nos fazer consumistas. Semeamos, colhemos, voltamos a semear, voltamos a colher.

Com as sementes transgênicas, sabemos que se semeia uma vez e depois já não pode produzir. A Monsanto, monopolista, sempre vê somente seu bolso e por isso continuam apoiando governos a favor desta economia capitalista com leis para nos tirar a água.

Não quero deixar de citar a militarização. No Peru, dissimuladamente, pedem que se erradique a folha de coca porque faz dano ao mundo. Em primeiro lugar, a folha de coca para nós é fundamental. Mastigamos a coca contra o frio. Não somos os responsáveis por converterem essa folha em cocaína em outros países. Está ocorrendo o que se passava nos anos 80, soldados maltratam cidadãos que vivem por aí, abusam das jovens, elas são violadas e vivem com medo. Quando alguém vai se mobilizar, te matam. Essa é a lei.

RBA – A coca e a agricultura são parte de uma cultura milenar dos indígenas…

E que nós sempre conservaremos. De helicóptero, o governo trata de fumigar quimicamente a terra para que não volte a produzir. Matam a Mãe Terra (Pachamama). Isso dói na alma. Se matam a terra, de que vai viver o camponês?

Sem Pachamama, sem água, sem semear não há vida. Por isso pedimos que nos escutem, nos ajudem a respeitar nossa terra. Ajudar a cuidar do sangue da terra, que é a água. Nós, humanos, sem sangue não caminhamos, não é? A terra, sem água, que é seu sangue, não pode sobreviver. Temos de conservar a vida.

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