Uma tragédia chamada Haiti

Menino senta em escombros de uma escola. História do Haiti é, ao mesmo tempo, grandiosa e trágica (Foto: Carlos Barria/Reuters) A declaração do cônsul do Haiti em São Paulo, numa […]

Menino senta em escombros de uma escola. História do Haiti é, ao mesmo tempo, grandiosa e trágica (Foto: Carlos Barria/Reuters)

A declaração do cônsul do Haiti em São Paulo, numa gravação inadvertida para o SBT, de que a desgraça de seu país se deve à religião (que ele chamou de “macumba”) e à quantidade de “africanos” em seu país, não é um fato isolado: apenas reflete um preconceito generalizado, em escala mundial, contra o país fundado por ex-escravos.

Ainda assim não sei como ele ainda não renunciou ao cargo de representar o país e o povo que insultou.

Na verdade, a história do Haiti é, ao mesmo tempo, grandiosa e trágica. O país foi e é o cenário “privilegiado” de um dos maiores esbulhos políticos e saques econômicos da história da humanidade.

Não raro lê-se que no tempo do colonialismo francês, estabelecido na parte ocidental  da ilha, “Santo Domingo” (como era então chamado o território) era “a pérola das Antilhas”. Pérola para os senhores brancos e seus apaniguados e protegidos: para os escravos era um inferno. 40 mil escravos negros eram trazidos anualmente da África para a colônia; a sua expectativa de vida era de pouco mais de 20 anos. O código de comportamento a que eram submetidos era dos mais brutais do continente.

É claro que a Revolução Francesa teve um impacto de grande alcance na colônia, levando a uma revolta de escravos que é um dos acontecimentos mais extraordinários da história da humanidade, e a única que triunfou sobre seus senhores e seus exércitos.

O principal líder dessa revolta, Toussaint Louverture, foi um dos políticos e militares mais brilhantes e de visão de longo alcance das lutas pela independência em territórios das três Américas.

Toussaint era, como muitos políticos, militares e intelectuais da época, católico e maçom. Liderou a revolta com o tato de tentar evitar a destruição das plantações e de evitar que ela se transformasse simplesmente numa vingança contra os senhores brancos ou as “gens de couleur”, mestiços de europeus, africanos e, em algumas poucas regiões, do povo Taíno”, nativos que habitavam a ilha antes da chegada de Colombo.

Tinha consigo uma elite de militares formados no Exército Francês, alguns dos quais tinham, inclusive, combatido pela Independência dos Estados Unidos, contra os britânicos. Toussaint conseguiu a proeza de derrotar sucessivamente e várias vezes alguns dos principais exércitos da época: o francês, o espanhol e o britânico.

A princípio, Toussaint não tinha, entre seus intentos, proclamar a independência. A constituição que apresentou ao país, em 1801, dizia que todos os habitantes da ilha eram “livres e franceses”. Diante das tentativas, por parte dos governos franceses cada vez mais conservadores, depois da Revolução, de restabelecerem seu controle sobre a ex-colônia e também a escravidão, voltou-se, sem sucesso para a Espanha, que dominava a outra metade da ilha, depois das cordilheiras que a cortam em dois.

Ao fim, aceitou fazer um acordo com tropas francesas recém chegadas, sob o comando do cunhado do próprio Napoleão, Gen. Leclerc. Traído, foi por ele aprisionado e deportado para a França, onde ficou preso. Morreu numa prisão na região montanhosa do Jura, perto da Suíça, de frio, desnutrição e doenças conexas, como a pneumonia.

Seus comandados Henri Christophe e Jean-Jacques Dessalines assumiram a liderança da luta, e em 1º de janeiro de 1804, o segundo proclamou a independência do país, depois de derrotar definitivamente os franceses. 

Independente, o Haiti se viu presa de uma disputa interna violenta entre seus líderes, que levou ao assassinato de Dessalines e à divisão do país em dois, uma liderada por Henri Christophe, que se proclamou rei e instituiu uma corte; a outra por Alexandre Pétion. Pétion teve um papel importantíssimo na libertação da América do Sul. Acolheu em 1815 o fugitivo Simon Bolívar, cuja primeira tentativa de luta contra os espanhóis malograra. Deu-lhe dinheiro, armas e pessoal militar, com a condição de que abolisse a escravidão nas terras que libertasse. Sem essa ajuda Bolívar não teria podido voltar e recomeçar sua luta, afinal, vitoriosa.

Além das disputas internas que minaram a resistência do país e sua capacidade de recuperação econômica, o Haiti se viu vítima de um isolamento internacional. Os Estados Unidos, divididos entre o norte capitalista e o sul escravocrata, logo esqueceram sua dívida para com os militares haitianos. À Europa da Restauração pós-napoleônica não interessava um país de ex-escravos. Ao Brasil independente e escravista o exemplo haitiano era uma ameaça. E depois da morte de Bolívar e de alguns de seus principais generais, como Sucre, as antigas colônias espanholas se viram ocupadas por oligarquias autocráticas para quem os nativos e os africanos nada mais deviam ser do que força de trabalho submetida.

Em troca do reconhecimento francês o Haiti, sob o governo de Jean Pierre Boyer, cercado por pela frota da ex-metrópole, concordou em assinar um tratado pelo qual seu país pagaria à França uma indenização de 150 milhões de francos (!) a título de “indenização”(!!). A dívida depois foi reduzida para 90 milhões, mas assim mesmo isso exauriu a economia. Desde então, o país se viu sempre na condição de buscar grandes empréstimos internacionais para seu auto-financiamento, num atoleiro sem fim. A vida política haitiana passou a ser, nos próximos séculos, a ser uma via estreita entre governos violentos e corruptos, na maioria, e banqueiros ingleses, norte-americanos, alemães, franceses e outros que tomaram conta da economia alquebrada do país e a sangraram mais ainda.

Entre 1915 e 1934 os Estados Unidos ocuparam militarmente a ilha, e instituíram a Guarda Nacional, que viria a ser a base dos tristemente célebres Tonton Macoutes, um corpo para- militar que deu sustentação à longa ditadura da família Duvalier, Pai (Papa) e Filho (Baby) Doc. Juntos, Papa e Baby amealharam uma fortuna considerável com os fundos do país arrasado, o que garantiu ao último, pelo menos de início, uma vida folgada em Paris quando afinal teve de se exilar, em 1986.  Uma (outra) triste curiosidade: um dos descontentamentos que levaram à queda de Baby Doc foi o massacre de 10 milhões de porcos da população camponesa, exigência dos Estados Unidos por causa de um surto de gripe suína.

Desde a queda da dinastia Doc o Haiti assistiu uma série de tentativas de criar governos populares, revoltas militares de remanescentes dos Tonton Macoute, e intervenções lideradas pelos Estados Unidos, que continuaram exaurindo o país miserável.

Agora mesmo estamos assistindo, em conseqüência do nefasto terremoto, a mais uma intervenção norte-americana: 5 mil marines preparam-se para desembarcar no país, já ocupado por 9 mil efetivos das tropas da ONU comandados pelas brasileiras.

Uma das causas dessa constante intervenção norte-americana (que desta vez, pelo menos, se escuda em interesses humanitários) é a incômoda (para Washington) vizinhança com Cuba (o canal que separa as duas ilhas tem 100km. de largura, algo assim como a distância de São Paulo a São José dos Campos) e agora com a Venzuela de Hugo Chávez.

Esperemos que desta vez haja a possibilidade de reinventar o país por sobre seus escombros, com a dignidade que ele, seu povo e sua história merecem.

P.S.: – Há pelo menos dois livros imperdíveis sobre a história revolucionária do Haiti: “Os jacobinos negros”, de CLR James (São Paulo: Boitempo Editorial) e “O reino deste mundo” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira), romance do escritor cubano Alejo Carpentier. Em seus respectivos campos, são clássicos.

 

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