Um imposto que não mata ninguém. E vale muito

Tributação das grandes fortunas seria para a saúde pública e o combate à miséria

Criação de impostos sob grandes fortunas está subordinada à aprovação de lei complementar (Fotomontagem)

A criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), prevista na Constituição Federal de 1988, está subordinada à aprovação de lei complementar para entrar em vigor e até hoje não virou realidade. O debate sobre a taxação das fortunas voltou à tona no ano passado, por causa da Emenda 29, que fixou os percentuais mínimos que União, Estados e municípios devem investir na saúde. Defensores e críticos da tributação praticada em outros países voltaram a tornar públicos argumentos de uma discussão que ganha corpo. Em 1989, o Senado aprovara um projeto de lei complementar do então senador Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) que punha em vigor o IGF, mas permitia que os valores pagos fossem deduzidos do imposto de renda. Na Câmara, o projeto acabou substituído por outro, do PSOL, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça em junho de 2010 e pronto para ir a voto em plenário. No entanto, dorme em alguma gaveta da Mesa Diretora à espera de uma decisão política que destrave a discussão.

Imposto sobre Grandes FortunasGráfico

Elaborado pelos deputados Chico Alencar (RJ), Ivan Valente (SP) e Luciana Genro (RS, sem mandato), do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o projeto de lei do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) visa complementar a Constituição Federal. Ele determina que o imposto incida em 1% sobre os patrimônios de R$ 2 milhões a R$ 5 milhões; em 2%, entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões (26.206 pessoas em 2008, segundo a Receita Federal); em 3%, entre R$ 10 milhões e R$ 20 milhões (10.168 pessoas); em 4%, entre R$ 20 milhões e R$ 50 milhões (5.047 pes-soas); e em 5% sobre patrimônios acima de R$ 50 milhões (1.327 pessoas – há, ainda, 997 pessoas com patrimônio acima de R$ 100 milhões).

Contribuição Social das Grandes FortunasGráfico (Fonte: Receita Federal)

Em 2011, no debate sobre a Emenda 29, o deputado Dr. Aluizio (PV-RJ) criou a Contribuição Social das Grandes Fortunas (CSGF). A relatora do projeto na Comissão de Seguridade Social e Família, deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), apresentou emenda para que a arrecadação proveniente da CSGF fosse direcionada a ações e serviços de saúde. O dinheiro seria encaminhado ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) e financiaria o Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo a deputada, a CSGF atingiria mais de 55 mil contribuintes com patrimônio superior a R$ 4 milhões. Seu relatório previa nove alíquotas para a CSGF, a serem pagas anualmente: 0,4% (entre R$ 4 milhões e R$ 7 milhões); 0,5% (de R$ 7 milhões a R$ 12 milhões); 0,6% (de R$ 12 milhões a R$ 20 milhões); 0,8% (de R$ 20 milhões a R$ 30 milhões); 1% (de R$ 30 milhões a R$ 50 milhões); 1,2% (de R$ 50 milhões a R$ 75 milhões); 1,5% (de R$ 75 milhões a R$ 120 milhões); 1,8% (de R$ 120 milhões a R$ 150 milhões); e 2,1% para patrimônios acima de R$ 150 milhões.

A deputada ressalta que as alíquotas produziriam efeito sobre a arrecadação e baixíssimo impacto para os contribuintes atingidos face à evolução patrimonial: “A Receita Federal informa que, em 2009, o patrimônio das pessoas que superava R$ 100 milhões elevou-se de R$ 418 bilhões para R$ 542 bilhões – 30% de crescimento num ano. Assim, uma tributação de 2% representa pouco para esse diminuto segmento social, mas significará um belo aporte de recursos para a saúde pública, que atende 190 milhões de brasileiros” – diz Jandira. Se aprovada na Comissão de Seguridade Social e Família, a CSGF passará por duas comissões antes de ir a votação. O trâmite se estenderá pelo primeiro semestre de 2012. O objetivo dos defensores da proposta é evitar que se repita a situação do projeto que está a hibernar na gaveta da Mesa Diretora.

 

Imposto ou Contribuição Social: o que é melhor?Milionares

O professor de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio de Janeiro Bruno Macedo Curi acha que o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) deve prevalecer sobre a contribuição (CSGF). Ele lembra que entre os objetivos constitucionais do Brasil estão a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais: “O combate à pobreza é algo caríssimo. Por isso, buscou-se um instrumento tributário e a receita do IGF ficou vinculada ao Fundo de Combate à Pobreza”. 

Segundo Curi, não haveria dupla tributação do IGF e do Imposto de Renda porque “não há duas incidências sobre o mesmo bem; o IGF não tributa a renda, mas o capital. Renda é o acréscimo de patrimônio (tributável pelo IR) e a grande fortuna é o patrimônio em si. Se uma pessoa com grande fortuna não acrescer seu patrimônio durante um ano-calendário, não pagará imposto de renda, mas pagará o IGF”. O tributo, portanto, atua sobre o patrimônio de quem concentra grande parte da renda nacional. 

Segundo Curi, o calcanhar de Aquiles é a possibilidade de o IGF provocar fuga patrimonial do país. “Eis um ponto crucial. O imposto não incide sobre o patrimônio de fora do país, ao contrário do Imposto de Renda, que tem previsão constitucional para isso. Assim, é preciso haver uma emenda constitucional destinada a evitar a previsível evasão de divisas. Até porque, quanto maior o patrimônio do cidadão, tanto maior será sua mobilidade” – diz o professor, para quem uma alternativa possível, mas não ideal, seria a União aumentar o IOF sobre certas remessas de dinheiro para o exterior. “Mas isso, infelizmente, não é à prova de fraudes e demandaria maior esforço de fiscalização.”

 

Como é lá fora

Em 1922, na Alemanha, a tributação, com alíquotas de 0,7% a 1%, atingia não apenas quem possuía bastante dinheiro, mas também poder econômico e político. O imposto foi declarado inconstitucional em 1995. Desde então, aguardam-se  novas regras para que volte a ser cobrado. 

Na França, o Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna, ainda em vigor, tem alíquotas de 0,5% a 1,5% e incide sobre o patrimônio líquido de pessoas físicas. Foi recriado pelo presidente François Mitterrand, em 1988. Outros países europeus que tributam as fortunas são Áustria, Suécia, Finlândia, Islândia, Luxemburgo, Noruega e Suíça. Holanda, em 2001, e Dinamarca, em 1996, o aboliram em um passado recente; há mais tempo, Itália (1947) e Irlanda (1978) o deixaram de lado.

Nos países anglo-saxões, a taxação de grandes fortunas nunca pegou. Na Inglaterra, as discussões sobre a sua criação foram de 1960 a 1974, quando se formou uma comissão especial para decidir sobre o tema. Ela constatou que a instituição de um imposto sobre grandes fortunas substituiria um imposto sobre patrimônio já existente, impedindo sua adoção. Nos Estados Unidos e no Canadá, o debate foi abandonado na primeira metade do século 20, mas ambos possuem sistemas próprios de impostos, chamados de property tax, que incidem sobre a propriedade e não sobre o patrimônio global dos contribuintes.

Nos países emergentes, a África do Sul e a China não tributam as grandes fortunas. Na Índia, desde 1957, existe um imposto anual sobre o patrimônio líquido com alíquotas que variam entre 1% e 5% sobre os bens das pessoas físicas e jurídicas que excedam um limite estabelecido pelo governo. O modelo indiano, no entanto, isenta da cobrança do imposto propriedades agrícolas, obras de arte, bens de uso pessoal e até um imóvel do contribuinte, desde que comprovadamente habitado por ele.