A ameaça que ronda 300 famílias da Jureia, um paraíso encravado na Mata Atlântica

Há tensão e medo entre os moradores da Jureia. A falta de decisão dos deputados estaduais de transformar o projeto de lei que cria na região  Reservas de Desenvolvimento Sustentável […]

Há tensão e medo entre os moradores da Jureia. A falta de decisão dos deputados estaduais de transformar o projeto de lei que cria na região  Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), assegurando o direito de permanência das comunidades na área, fez a população local  preparar–se para o pior. Em julho, algumas pessoas começaram a receber uma notificação exigindo que saíssem de suas casas. A comunidade promete resistir

 

Caiçaras, índios, quilombolas

Audiência Pública (Foto: Davi Ribeiro)Uma rara reserva de Mata Atlântica do Estado de São Paulo, que possui biomas riquíssimos e uma população tradicional de mais de 300 famílias de cultura secular, corre o risco de ser descaracterizada por um Projeto de Lei (PL) do governador Geraldo Alckmin, encaminhado em fevereiro à Assembleia Legislativa (Alesp). A convivência harmoniosa entre homem e meio ambiente na região da Jureia pode ter fim com a alteração dos limites da Estação Ecológica Jureia-Itatins, (criada em 1986, com cerca de 80.000 ha) e a criação de um Mosaico de Unidades de Conservação: algumas áreas de maior densidade demográfica, como a Barra do Una e o Despraiado – que abrange cerca de 60% do povo local – seriam transformadas em Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), onde haveria presença humana e o desenvolvimento de algumas atividades agropecuárias. Já os outros 40% de moradores da região – formados também de caiçaras, quilombolas e indígenas – que estão isolados em comunidades menores não encampadas por essas duas reservas, teriam sua permanência histórica ameaçada pela nova recategorização e poderiam ser expulsos da floresta. Os povos da Jureia estão insatisfeitos. Há intensas manifestações de associações de moradores, que repudiam o projeto. Por isso, a Alesp promoveu três audiências públicas em maio – uma em Peruíbe, outra em Iguape e a terceira na Alesp, que reuniu mais de 200 pessoas, boa parte delas vindas em caravanas do litoral sul – visando mudar o projeto inicial do governo e chegar a um consenso.

 

Uma história de resistência. Aos militares e aos civis  

(Foto: Luciano Faustino)

No fim dos anos 1970, a Jureia foi alvo da política nuclear da ditadura militar e do setor imobiliário especulativo, que pretendia empreender condomínios luxuosos. A audácia desses projetos era tamanha que até uma estrada adentraria a serra e cortaria a planície do rio do Una do Prelado. Em 1980, o general João Figueiredo firmou um acordo com a Alemanha para a instalação das usinas nucleares 4 e 5, numa área de 24.000 ha da região. O projeto sofreu críticas de organizações ecológicas nacionais e internacionais, o que levou o general a promulgar novo decreto ‘protegendo o meio-ambiente’. O programa nuclear não foi concretizado. Até 1985, as desapropriações dos moradores não foram realizadas pela Nuclebras. O prazo de caducidade das desapropriações – de cinco anos – expirou, dando aos antigos proprietários a chance de reaverem a posse das terras que ocupavam. 

Em sua dissertação de mestrado, a geógrafa Carolina Peixoto aponta que “o empreendimento nuclear representava uma ameaça ao ambiente natural e social, mas acabou por proteger as terras da especulação imobiliária, o que não quer dizer quer as relações entre a Nuclebras e os moradores não tenham sido coercitivas”. Em 1986, o governador Franco Montoro criou a Estação Ecológica Jureia-Itatins, com a extensão atual, que abrange os municípios de Peruíbe, Iguape, Miracatu e Itariri, para garantir a integridade dos ecossistemas e da fauna e flora ali existentes. As atividades primárias – caça, pesca, extrativismo – foram limitadas para atender a nova legislação. Foi assim que a população tradicional do lugar mudou seus hábitos e cultura para sobreviver. 

Por outro lado, foi uma lei de 2006 que criou o primeiro Mosaico da Jureia e possibilitou aos moradores se reorganizarem, lutarem e apresentarem a contraproposta ao governo de unidade de conservação que eles queriam. Segundo a vice-presidente da União dos Moradores da Jureia (UMJ), Adriana Souza Lima, “o pessoal aceitou o modelo do mosaico para não perder a oportunidade de assegurar a permanência de parte da população, mas o objetivo era incluir todas as comunidades”. Mas a esperança dos moradores de viver com estabilidade e possibilidade de manejo sustentável dos recursos naturais ruiu rapidamente. 

Em 2009, o Ministério Público Estadual (MP-SP) elevou a reserva novamente à condição de Estação Ecológica porque, segundo a Lei, apenas o governador poderia legislar sobre o meio ambiente. Para a defensora pública Maíra Coraci Diniz o governador da época, José Serra, “deveria ter encaminhado o projeto para resolver a situação dos moradores da Jureia”. Em abril de 2010, novo problema. O Grupo de Defesa do Meio Ambiente (Gaema) do MP-SP pediu, e a Justiça estadual concedeu, liminar para a retirada de todos os moradores, tradicionais ou não, sob a justificativa de realização de estudos no local, mas a defensoria pública conseguiu suspendê-la até o dia 7 de julho passado. A defensora Coraci também encaminhou recurso ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), mas que está parado há oito meses sem julgamento. “Se for necessário, eu vou recorrer ao STF ou à OEA, pois existem convenções e tratados internacionais que garantem o direito dos povos tradicionais aos seus territórios” – finaliza a defensora. 

 

“O lugar é nosso”

(Foto: Luciano Faustino)

A vice-presidente da União dos Moradores da Jureia (UMJ), Adriana Souza Lima, afirma que a região sempre se orientou por projetos preservacionistas, que não concebem homem e floresta dividindo o mesmo espaço e propõem que, para o território ser preservado, não exista a presença humana. O projeto de Lei que está para ser votado na Assembleia Legislativa não é diferente. A consequência, segundo ela, é “uma política que tira o homem do seu território, jogando-o nas periferias das cidades, criando favelas e levando-os, muitas vezes, à criminalidade. Isso vai na contramão do que o mundo pensa hoje”.

Sobre a hipótese de a força policial entrar para cumprir a determinação judicial, o presidente da UMJ, Dauro Marcos do Prado, é enfático: “Resistimos há 26 anos a uma política ambiental criminosa, que não defende o meio ambiente nem se preocupa com a questão social. Queremos um acordo entre os Poderes Executivo, Legislativo e a comunidade para resolver esse conflito de uma vez por todas. Se as comunidades ficarem fora da RDS, o conflito persistirá. E, se a polícia entrar na Jureia, nós vamos enfrentá-la, sim”. 

O pessoal também quer que seja criado um amplo espaço para o manejo sustentável dos recursos. O morador Arnaldo Júnior, de Iguape, enxerga o projeto de lei do governo mais como um assentamento fundiário do que uma RDS. “Como uma RDS, você tem que ter grandes áreas para explorar um recurso e dar um tempo para que ele se regenere. Assim, você vai para outra área, para gerar renda e trabalho para as pessoas.” Arnaldo lembra que Iguape entrou em  declínio quando a Jureia passou à condição de Estação Ecológica. “Até a década de 80, a cidade vivia da exploração da caixeta, mas desde que a atividade passou a ser criminalizada, o resultado foi a exploração clandestina da madeira, que levou a espécie quase à extinção” – afirma. Agora, a proposta é o manejo  sustentável da caixeta, que sairia de barco da floresta e abasteceria uma indústria de lápis específica. O intuito é que os lápis sejam fornecidos aos alunos de escola pública. “Esse é um grande passo e um exemplo que a gente pode dar para o Brasil. E essa é a hora” – conclui ele.