Cana-de-açúcar mantém um pé no futuro, outro no atraso

O setor se moderniza para competir lá fora, mas os trabalhadores são excluídos

Rotina no canavial: máquinas substituem os bóias-frias (Foto: Willian da Silva)

A safra de cana-de-açúcar no período 2010-2011 fechou com recorde de 625 milhões de toneladas colhidas, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Na Região Centro-Sul, chegou a 557 milhões de toneladas, com 55% destinados à produção de etanol e 45%, à de açúcar.

O setor sucroalcooleiro se modernizou nos últimos anos, ganhou o mercado externo, mas as condições de trabalho continuam sofríveis: jornadas exaustivas, más condições de higiene e de moradia e pouca qualificação. Em São Paulo, que produz mais de 50% da cana do país, um acordo firmado em 2007 entre usineiros e o governo prevê o fim das queimadas em áreas mecanizadas em 2014 e, nas demais, em 2017. A mecanização já representa mais da metade da área colhida e é uma ameaça ao emprego.

“A introdução da colheita mecanizada deslocou a mão de obra braçal de São Paulo para o Triângulo Mineiro, Goiás e Mato Grosso” – diz o padre Antônio Garcia Peres, da Pastoral do Migrante em Guariba, cidade paulista a 350 quilômetros da capital, palco de uma greve famosa, em 1984. Guariba acostumou-se a receber migrantes do interior do Maranhão, um dos Estados campeões em denúncias de trabalho escravo. Padre Antônio relata que o trabalhador preferiria continuar em São Paulo, porque em outras regiões as condições são mais insalubres e os ganhos, menores. Mas a falta de qualificação e de escolaridade o empurra para onde existir trabalho. “É o grande drama da mão de obra rural do Brasil.”

As malvadezas nos canaviais

 

Trabalhadores esperam condução: a luta começa cedo (Foto: Lucas Mamede)Em 2008, o Ministério Público do Trabalho criou o Plano Nacional de Promoção do Trabalho Decente no Setor Sucroalcooleiro, com o objetivo de impedir que a expansão do setor se desse em condições de trabalho desumanas. Coordenador de forças-tarefa em Alagoas, na Bahia e no Rio Grande do Norte, o procurador Rodrigo Raphael Rodrigues de Alencar, do MPT alagoano, afirma que as fiscalizações precisam voltar a se intensificar. “A atividade é quase sub-humana” – diz. 

Nas fiscalizações de usinas em 2008 e 2009, que resultaram em dezenas de termos de ajustamento de conduta (TACs) e ações civis públicas, os casos mais comuns eram falta de exame médico, transporte irregular, ausência de instalações sanitárias e de abrigo para refeições – até para se tomar um gole de água potável.
Outra situação comum é o tempo de percurso até o campo. As horas in itinere, consideradas horas de trabalho, nem sempre são pagas. “Às vezes são duas horas até o canavial” – observa Alencar. O procurador também defende a contratação por prazo indeterminado, para garantir direito a seguro-desemprego ao final da safra.

Ritmo insano

  • 17 flexões de tronco por minuto
  • 54 golpes de facão por minuto
  • 12 toneladas de cana cortadas e carregadas por dia
  • Percurso de nove quilômetros/dia
  • Perda de oito litros de água na jornada diária









Fonte: Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo

O trabalho pelo país


A jornada de trabalho, em Ribeirão Preto, que era de 12 horas, agora é das 7 h às 16 h e o

pessoal é registrado em carteira – acabou-se com o “gato”, agenciador de mão de obra. Itens como água gelada e lugar para sentar e almoçar deixaram a pauta de discussão. 

Jornada começa às 7h (Foto: Lucas Mamede)

 Em Pernambuco, a Fetape, Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado, também avalia que o acordo coletivo trouxe avanços. Além de abrigo e alojamento, o salário passou a R$ 547, há a contratação formal após cinco dias de trabalho e ampliou-se o tempo de afastamento remunerado para internação hospitalar.

Em Goiás, 40 mil trabalhadores cobram reajuste de 34,7% no piso salarial, que é de R$ 606,77. A Federação de Goiás quer alimentação, requalificação profissional e fim do trabalho precário e escravo. 

Perfil do trabalhador


  • O número de trabalhadores nos canaviais caiu de 625.016, em 1981, para 542.588, em 2009
  • Um terço tem de 20 a 30 anos
  • 60% têm de 20 a 40 anos
  • A escolaridade média é de 4,5 anos






Fonte: Grupo de extensão em Mercado do trabalho (GEMT)/Esalq-USP

Máquina de suor

 

O número de empregados no setor sucroalcooleiro paulista deve encolher de 260 mil, em 2006-2007, para 146 mil em 2020-2021. Enquanto a indústria vai ganhar 20 mil empregados, indo de 55 mil para 75 mil, e a colheita mecânica passará de 15 mil para 71 mil, os trabalhadores
na colheita manual cairão de 190 mil para zero.

O Brasil responde por um terço da cana mundial (Foto: Willian da Silva)

Em 2009, o Brasil já respondia por um terço da produção mundial de cana-de-açúcar, mas as condições de trabalho eram ruins. A mecanização se acelerava por razões ambientais e econômicas e a perda de empregos era a consequência negativa dessa automação. Na época, o então presidente Lula dizia que o trabalho insalubre no campo devia ser cada vez menos feito pelo homem. O desafio era onde colocar esses trabalhadores.

Em 2010, a Unica, associação dos empresários do sertor, lançou o RenovAção, um projeto de requalificação, com um módulo dentro da usina e outro na comunidade. Antes da atual safra, metade dos trabalhadores que passaram pelo projeto exercia outra atividade. “A máquina precisa de 18 homens e essas profissões, como soldador especializado de colheitadeiras, não existiam” – diz Maria Luiza Barbosa, assessora da entidade.  Mas a mesma colheitadeira que cria 18 funções dispensa 80 cortadores. “O impacto negativo sobre o emprego em São Paulo não é maior devido à expansão da produção” – diz a professora Marcia Azanha Ferraz Dias Moraes, do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP. “O etanol virou produto de exportação e não há como vender um produto ligado ao trabalho escravo ou à degradação do meio ambiente” – afirma ela.

Rota Maranhão–São Paulo

 

Cidade de 30 mil habitantes no Maranhão, a 300 quilômetros da capital, São Luís, TimbirasColheita: retrato de mulher (Foto: Lucas Mamede) fornece mão de obra para as usinas de cana. “Três em quatro famílias têm um membro migrando para a cana, para a construção civil ou para a soja” – observa o professor Marcelo Sampaio Carneiro, coordenador da pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). 

A pedido da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ele entrevistou 114 famílias de 2005 a 2008, que tinham como destino Goiás (31,18%), São Paulo (30%) e o Pará (6,45%). Outras regiões do Maranhão receberam 19,35% dos trabalhadores – especialmente o município de Campestre do Maranhão, onde fica a destilaria Cayman. A cultura da cana foi a ocupação mencionada em mais da metade (54%) dos casos. Quase 61% tinham de 20 a 29 anos (um terço, de 20 a 24), 54% eram casados e 84%, homens.

Lições de uma greve 

A migração é forçada pela falta de oportunidades no local, onde predomina a cultura do arrendamento, mas que sofre a expansão da soja e do eucalipto, reduzindo os agricultores familiares. “Uma área de latifúndio tradicional” – define Marcelo Carneiro. Segundo o pesquisador, seria mais fácil fazer reforma agrária no local, já que o preço do hectare não é elevado e manteria o trabalhador na região.

Em 1984, os cortadores de cana e colhedores de laranja de Guariba deflagraram uma greve marcada por conflitos violentos. A revolta contra as más condições de trabalho foi o início de um (Foto: Lucas Mamede)
lento processo de melhorias, que acabou com a “era do gato” na região. Afora a usina de São Martinho, lá só se trabalhava para terceiros. “Era um período sem negociação coletiva, sem direito sequer a água gelada” – diz o presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba, Wilson Rodrigues da Silva. 

“Não havia registro nem horário pra nada. Transporte era no pau de arara, em caminhões abertos. Os óculos de proteção vieram mais tarde, como luvas e caneleiras. O pessoal machucava a vista, sofria corte, trabalhava de tênis” – enumera Antônio Mariano, 66 anos, 44 safras. Colher 17 toneladas de cana num dia permitiu fazer um bom pé de meia? “Consegui esta casinha e criei sete filhos” – diz Antônio, que passa o tempo num velho sofá no quintal.

Será o fim das queimadas em Bebedouro?

 
A Câmara Municipal de Bebedouro aprovou o projeto de lei do Poder Executivo que proíbe a queima da palha da cana-de-açúcar na cidade. O projeto prevê a queima da palha da cana apenas em locais em que o acesso de máquinas seja muito difícil ou que coloquem em risco a segurança de seus condutores. 

Mesmo nesses casos, será indispensável a solicitação de autorização ao Departamento Municipal de Meio Ambiente, a quem caberá a fiscalização juntamente com a Cetesb e o Ministério Público. Se depender, portanto, da legislação local não haverá mais as queimadas que sujam a cidade e emitem gases, produzem o efeito estufa e deterioram a qualidade do ar que respiramos. O problema é que isso, infelizmente, não depende de lei.

Atualmente, a queima da palha da cana é proibida nos arredores da cidade, mas ela acontece com frequência. Na última rua do Jardim União, por exemplo, sente-se o calor das labaredas. Além da lei é necessário o bom senso dos donos das usinas e a fiscalização do Poder Público e da população para fazer valer o seu direito.

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