Especial Bolívia: é impossível entender o que quer o Peru com demanda em Haia, dizem analistas

Ao mesmo tempo, governo de Alan García espera julgamento na Corte Internacional de Haia sobre revisão de limites marítimos com o vizinho

Ao fundo, a cidade de Arica, que durante quatro décadas ficou sem definição sobre qual país pertencia, e, à esquerda, o porto da cidade (Foto: Rede Brasil Atual)

Nos últimos meses, as relações entre Peru e Bolívia viveram um dos momentos mais tensos da história. As trocas de farpas entre Alan García e Evo Morales ganharam novos contornos a cada dia. Apenas na última semana os episódios deram sinais de arrefecimento com a reunião entre o ministro de Defesa boliviano, Walker San Miguel, e o comandante Conjunto das Forças Armadas peruanas, general Francisco Contreras.

À parte visões de mundo distintas, os dois presidentes comandam países com uma relação historicamente oscilante, ora tendendo à parceria, ora encaminhando-se para o conflito verbal e até para tensões militares. No contato entre Bolívia e Peru, há um terceiro convidado, o Chile, responsável por perdas territoriais implicadas aos dois primeiros no fim do século XIX, e que, no governo de Michele Bachelet, ostenta boa relação com Evo Morales.

Nos últimos anos, esse diálogo rendeu avanços nas discussões para que a Bolívia reconquiste uma saída soberana ao mar. Quem tomou essa saída foi o próprio Chile, ao vencer a Guerra do Pacífico (1879-1883) e tomar da Bolívia uma série de portos no Pacífico, entre os quais Antofagasta, que se transformaria numa das principais vias de escoamento de produtos chilenos. Foi mais uma das perdas territoriais sofridas pelo país ao longo da história (ver infográfico).

Infográfico: Julia Lima/Rede Brasil Atual

Peso das perdas

Loreto Correa Vera, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago do Chile (Usach), lembra de disputas por território que tiveram importância menor, como a do estado do Acre para o Brasil – que não comprometeu a qualidade amazônica –, a do Chaco com o Paraguai, além de questões com a Argentina e o Peru.

“A questão maior não é quantitativamente, mas qualitativamente”, diferencia Loreto Correa Vera. “No caso do Chile, a perda foi de sua qualidade marítima e, por aqui (no Chile), a percepção a respeito da limitação que isso significa para os bolivianos nunca esteve presente. Talvez seja esse o maior problema.”

Ao longo do século XX, com relações pendulares com Chile e Peru, a Bolívia alternou o fluxo de escoamento entre os dois países. Com os chilenos, há algum tempo existe um acordo de direitos alfandegários especiais, mas isso não resolve o problema: os portos do país de Bachelet estão entregues à iniciativa privada, o que torna caro para as empresas bolivianas manter os produtos em Arica até o embarque, por exemplo.

Recentemente, o ministro de Relações Exteriores chileno, Mariano Fernández, declarou em entrevista ao LatitudeSulque há um diálogo organizado com a Bolívia e que houve avanço para o aproveitamento do rio Silala. “Eu não posso prognosticar que resultados teremos nos próximos tempos, mas digo que os passos são significativos porque o tema do Silala foi muito complexo”, pondera Fernández. “Seguimos avançando e vemos que o presidente Morales e a presidente Bachelet estão se entendendo muito bem, e as equipes de subsecretários melhor ainda”, completa.

O mesmo rio fazia parte das conversas na década de 70, quando, depois de desentendimentos, os dois países cortaram relações diplomáticas oficiais, algo que não foi restabelecido até hoje.

Peru na conversa

Ainda que Bachelet e Morales tenham boas relações, o terceiro convidado tem poder de veto no tema marítimo. O Peru já usou essa prerrogativa em outras vezes e, agora, colocou um obstáculo a mais na relação ao questionar a fronteira marítima com o Chile no ano passado junto à Corte Internacional de Justiça de Haia. Também derrotado na guerra do Pacífico, o país entrou em acordo com o vizinho apenas em 1929, quando foi assinado um primeiro documento que teria desdobramentos em tratados de 1952 e 1954.

O governo de Alan García contesta a elaboração dos textos, argumentando que o tratado de 1929 deixa dúvidas e que os dois seguintes são apenas acordos sobre a atividade pesqueira. Do outro lado, Bachelet destaca que não restam dúvidas sobre a efetividade dos acordos e que a fronteira marítima está definida. Há dois tópicos em discussão: o ponto a partir do qual se estabelece a fronteira e, a partir deste ponto, qual o trajeto do paralelo que fixa o limite entre os dois países. A área em disputa tem pouco menos de 38 mil quilômetros quadrados, mas a conversa é antiga.

Para Wagner Menezes, presidente da Academia Brasileira de Direito Internacional, a controvérsia mancha os acordos feitos ao longo dos últimos anos para a integração da América do Sul. O professor da Universidade de São Paulo (USP) destaca que o Peru tem boas chances de sair vencedor, em parte porque há um precedente para o caso – em outubro de 2007, Honduras conquistou da Nicarágua o direito sobre quatro ilhas do Caribe. Neste momento, ele acredita que a revisão dos acordos seja o fato mais saudável para a relação entre os três países.

“Hoje se fala muito em integração da América Latina, temos várias instituições, organizações internacionais que atuam no continente, mas essa discussão já deveríamos ter superado para o fim da promoção definitiva do processo de integração que todos desejam”, destaca Menezes. “Considero fundamental a saída para o mar pela Bolívia através de um acordo diplomático como mecanismo de alavancar o processo de integração”, esclarece.

Loreto Correa Vera pensa que, ao longo da história, o Chile foi ingênuo nos acordos que assinou com o vizinho e que, hoje, é legal que o governo de García considere os tratados de 1952 e 1954 como regulamentos sobre atividades pesqueiras. “O que não se entende claramente é o que pretende o Peru com tudo isso. Não fica claro se é puramente a recuperação de uma porção marítima, não fica claro se é uma tentativa de fortalecer o governo de Alan García, não fica claro se é uma tentativa de prejudicar as negociações chileno-bolivianas. De qualquer maneira, estremece a relação trilateral”, destaca.

Para Evo Morales, está claro que García quer atrasar as negociações para uma saída marítima boliviana. Além desse fator, outro problema surgiu nos últimos meses na escalada de acusações de lado a lado. O Peru concedeu asilo político a três ex-ministros do governo Gonzalo Sánchez de Losada que respondem a processo pela morte de 67 civis durante os protestos de outubro de 2003. Lembrando que o asilo é um artifício muito mais comum na América Latina do que em outras regiões devido às sucessivas crises políticas, Wagner Menezes considera que a medida pode ser contestada pelo governo boliviano na Corte Internacional de Justiça, como ameaça Morales.

Para Loreto Correa Vera, o presidente da Bolívia tem tido uma relação bastante razoável nas negociações com o Chile pela saída marítima ao reconhecer que será difícil negociar em ano de eleições presidenciais – pela primeira vez em 20 anos, a Concertación, coalizão governista, pode sair derrotada. A pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Usach aponta que, apesar da paciência, não há qualquer condição de esperar que os bolivianos aceitem uma negativa nas atuais negociações. Na última reunião, o Chile admitiu a possibilidade de ceder uma saída ao mar ao norte de Arica, mas apontou que para isso teria que consultar o Peru.

Nas eleições chilenas, a questão da saída marítima com a Bolívia possivelmente não terá qualquer peso além do fator diplomático. Em qualquer votação boliviana, seja de direita, seja de esquerda, o candidato que quiser vencer precisa colocar em seu programa de gestão a negociação com o vizinho.

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