Brasil limita integração regional, diz analista

Para analista dos impactos brasileiros na América Latina, governo Lula deseja conexão com mercados ricos, e não a integração com os países da região

Hugo Chávez e Fernando Lugo, do Paraguai, durante reunião da Unasul no ano passado (Foto: Antônio Cruz. Agência Brasil)

O presidente Lula encontra-se nesta terça-feira (26) com Hugo Chávez em Salvador para discutir novamente a demora do Congresso brasileiro em aprovar o ingresso da Venezuela no Mercosul. Os dois, novamente, vão assinar acordos de integração em diversas áreas, como saúde, transportes e política industrial. O encontro ocorre trimestralmente entre os presidentes.

Nos últimos meses, Cristina Kirchner e Lula tiveram ao menos cinco reuniões devido às questões tarifárias. Acordou-se a elevação de impostos em alguns setores, um passo atrás na integração de um já estancado Mercosul.

Para Eduardo Gudynas, analista do CLAES D3E, um centro de pesquisas sobre desenvolvimento sustentável na América Latina com sede em Montevidéu, é muito importante diferenciar integração e interconexão quando se fala de América do Sul. Gudynas, que também coordena o Observatório Brasil, especializado em analisar o impacto brasileiro e de duas empresas nos demais países da região, considera que o governo Lula está olhando para Pequim, Washington e Bruxelas (sede da União Europeia) quando banca obras de infraestrutura no continente.

Atualmente, o BNDES é um dos grandes financiadores da Iirsa, a principal iniciativa neste aspecto em andamento na América do Sul. Lançada no governo de Fernando Henrique Cardoso, a Iirsa tem conexões diretas com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e vários de seus projetos enfrentam contestações por impactos ambientais. Em cada trabalho que financia no exterior, o banco exige que ao menos uma empresa brasileira seja contratada – Camargo Corrêa, Odebrecht e Queiroz Galvão registram, ao longo dos últimos anos, forte expansão de seus negócios em outros países. Para Gudynas, em alguns aspectos o BNDES parece mesmo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento ou com o Banco Mundial.
Confira a seguir a entrevista concedida pelo analista.

RBA – O governo Lula consagrou o princípio da política do Itamaraty de universalismo e autonomia. No entanto, há muitas mudanças no que diz respeito ao governo Fernando Henrique Cardoso. Quais as diferenças na atuação do Brasil em relação a América do Sul? Pode-se dizer que o país chegou a um papel de protagonista?

Na verdade, há mais semelhanças entre a política externa do governo anterior e a gestão de Lula sob a coordenação de Celso Amorim e de Marco Aurélio Garcia. Insiste-se muito em que existem diferenças substanciais mas, se examinamos as medidas concretas, não há evidência para afirmar isso. A ênfase em uma articulação sul-americana, no lugar de uma visão latino-americana, começou com FHC.

Foi ele quem convocou a primeira cúpula de presidentes sul-americanos e iniciou todo esse processo. Também formalizou a proposta de integração em infraestrutura conhecida como Iirsa [Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana]. O governo Lula continuou esse caminho e o aprofundou. Da mesma maneira, tanto a administração Lula quanto FHC se opuseram a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), sobretudo por razões comerciais (e não ideológicas). Apoiaram um eixo com Buenos Aires e se lançaram a acordos com outros países do [hemisfério] Sul, na África, no Oriente Médio, na Ásia.

É certo que, dentro do Brasil, se fala muito da imagem de protagonismo internacional do país. Mas, mais uma vez, é necessário ver os feitos, e não as declarações de imprensa: as propostas ou tentativas do Brasil de conseguir apoio para um presidente brasileiro no BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] não tiveram sucesso, tampouco para conseguir a secretaria da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe]. O candidato do Brasil para a Organização Mundial de Comércio não recebeu apoio sul-americano e isso culminou na perda da candidatura do Sul. A insistência do Brasil por um assento no Conselho de Segurança da ONU não é apoiada por muitos países da região. E assim por diante. Um exame mais rigoroso, menos apaixonado, indica que o Brasil é, junto ao México, referência-chave da América Latina. Seu protagonismo é sobretudo regional.

RBA – A queda da Argentina nos anos 90 e início dos 2000 é determinante para que o Brasil fique como protagonista?

A queda da Argentina em 2001-02 foi muito intensa. Mas devemos recordar que o Brasil teve a crise do real poucos anos antes. Como eu dizia, o protagonismo brasileiro é sobretudo regional, mas tem uma diferença fundamental com relação a outras nações da região: no Brasil existe uma discussão e uma tentativa de alcançar um papel-chave em nível global. Essa intenção, essa pretensão não existe nos demais países. O Brasil quer ser um protagonista global.

RBA – Javier Santiso, diretor da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, fala das “multilatinas”, as multinacionais latinas, comandadas por Brasil e México. A atuação dessas empresas na América do Sul e na África é o sinal de um movimento que pode vir a ser imperialista?

O conceito de “multilatinas” é muito antigo. Anos atrás se observa uma expansão sobretudo de empresas mexicanas e chilenas nos países e, em menor grau, colombianas e venezuelanas. A presença de companhias brasileiras é mais recente. A diferença mais importante no caso do Brasil é que essa expansão conta com o apoio e o financiamento do Estado. O BNDES financia a chamada “internacionalização” das empresas do Brasil. Neste momento, não se pode dizer que isso representa uma forma de imperialismo, pois ainda que existam muitos jogos de poder, não há pressões de força militar. Na realidade, o problema maior está dentro do Brasil e leva a analisar se é legítimo que o governo financie com enormes quantidades de dinheiro a expansão de umas poucas empresas nos países vizinhos.

Essa expansão do capital brasileiro desvia recursos que poderiam ser usados em programas sociais, educativos ou de habitação dentro do Brasil para financiar, por exemplo, obras da Odebrecht ou da Camargo Corrêa em países vizinhos.
Ainda assim, é importante advertir que o Brasil poderia liderar esse grande apoio financeiro do BNDES pelos extraordinários ingressos da exportação que teve nestes anos. Com a crise global, essa situação vantajosa perde força.

RBA – A ação do governo Lula frente a outros governos da região segue uma lógica. Ainda assim, quando há interesses de uma empresa brasileira que se veja afetada em seus negócios, as condutas do governo Lula são distintas. Para citar três exemplos: Evo Morales e Petrobras; Fernando Lugo e Itaipu; Rafael Correa e Odebrecht. Gostaria que o senhor comentasse o porquê dessas diferenças.

Em primeiro lugar, a expansão internacional das empresas do Brasil teve um salto importante com os governos FHC. Em segundo lugar, o governo Lula desencadeou um novo momento pelo papel do BNDES em financiar essas empresas no exterior, e inclusive por comprar dívidas dessas empresas ou dar dinheiro para suas fusões – como foi o caso da JBS Friboi com a Swift. Portanto, o governo Lula defende esses empreendimentos já que está defendendo seu próprio capital.

Em terceiro lugar, mais uma vez existem mais semelhanças que diferenças. O caso de Itaipu representa uma negociação de governo a governo com o Paraguai, o caso da Petrobras é semi-estatal, e Odebrecht é privada, mas em todos eles existe uma cobertura, um apoio e uma defesa desde Brasília. É muito importante assinalar de maneira positiva que o governo Lula não cedeu à pressão de grupos muito conservadores, por exemplo no caso da disputa com a Bolívia, e permitiu que seguisse adiante o processo boliviano de tomada de controle do petróleo e do gás.

“Os projetos de conexão que promove a iniciativa, e dos quais o Brasil participa, estão orientados a saídas exportadoras para os mercados globais, e não têm por finalidade a integração com os vizinhos. Em outras palavras, Brasília está olhando para Pequim, Bruxelas ou Washington, já que ali estão seus mercados de destino”

RBA – Em relação à Iirsa, há diversos projetos com problemas ambientais. Quais foram as mudanças promovidas na Iirsa para que os governos de esquerda da região a aceitassem? Trata-se de um projeto que coloca definitivamente o Brasil como o grande interlocutor econômico da América do Sul?

Os governos de esquerda não mudaram as bases substanciais da Iirsa. De fato, até aprofundaram. Seria muito arriscado dizer que a Iirsa significa que o Brasil é o “grande” interlocutor econômico da América do Sul.

Os projetos de conexão que promove a iniciativa, e dos quais o Brasil participa, estão orientados a saídas exportadoras para os mercados globais, e não têm por finalidade a integração com os vizinhos. Em outras palavras, Brasília está olhando para Pequim, Bruxelas ou Washington, já que ali estão seus mercados de destino.

Não podemos confundir interconexão, como uma ponte internacional, com a integração com os vizinhos. São conceitos muito diferentes.

RBA – Ainda sobre Iirsa, a atuação do BNDES na iniciativa é maléfica aos demais países?

O BNDES não é, em si, maléfico, financia projetos de empresas brasileiras ou empreendimentos nos quais as empresas brasileiras sejam parte. O problema é que não tem um mecanismo de acesso à informação adequado e se discute se seus procedimentos de avaliação social e ambiental são bons. Nesse sentido, o papel do BNDES parece muito com o do Banco Mundial ou do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

“Venezuela na Alba promove e apoia projetos comuns sobre seu petróleo (…) Compartilha-se um recurso estratégico. O Brasil nunca aceitou esse mecanismo. A Petrobras não divide nada e, pelo contrário, tenta expandir-se sobre os países vizinhos”

RBA – Depois da falência da Alca, dá-se início a dois projetos de integração continental: União Sul-americana de Nações (Unasul) e Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). Esses projetos chegam a ser opostos? Os interesses de um podem entrar em conflito com o outro? Qual tem ações mais concretas?

Essa pergunta contempla vários dos mitos que surgem nos últimos tempos. Por um lado, a Unasul não nasce depois da queda da Alca. Na verdade, Unasul é o novo nome da Comunidade Sul-Americana de Nações, criada em 2004 e que por sua vez é a continuação do processo de cúpulas sul-americanas iniciado em 2000, por FHC. A Alca fecha-se no fim de 2005.

A Unasul, ainda que tenha o nome “união de nações”, é na realidade um foro político e, por agora, não representa um processo de integração. É, sobretudo, uma mesa de discussão de temas comuns. Os objetivos de integração estavam presentes na Comunidade Sul-americana de Nações e em especial o elemento-chave de assimetria entre os países. Mas, como isso requer gerar as chamadas “políticas comuns”, o Brasil rejeitou. As políticas comuns exigem que se coordene a produção industrial ou agropecuária. Por exemplo, um automóvel pode ser produzido nas fábricas paulistas, mas a caixa de câmbio deveria ser boliviana e, a carroceria, peruana, e para isso é necessária uma coordenação produtiva. Esse é o caminho da União Europeia com suas políticas comuns. O Brasil sempre rejeitou isso, já que significa aceitar a supranacionalidade. Portanto, a integração regional não avança mais, já que nunca pode passar ao passo seguinte: a supranacionalidade.

A Alba é um acordo-macro. Também não se pode dizer que seja um projeto de integração, mas parece muito com acordos recíprocos de ajuda e complementação econômica. Há uma diferença fundamental com o projeto brasileiro que pode ser ilustrada com um exemplo: a Venezuela na Alba promove e apoia projetos comuns sobre seu petróleo, em que as empresas estatais de países como Equador ou Uruguai podem investir em explorar os campos de petróleo dentro da Venezuela. Compartilha-se um recurso estratégico. O Brasil nunca aceitou esse mecanismo. A Petrobras não divide nada e, pelo contrário, tenta expandir-se sobre os países vizinhos.

RBA – Por que os blocos regionais sul-americanos não conseguiram a criação de organismos supranacionais como na União Europeia? Com isso, fica-se dependendo muito da vontade dos presidentes?

A aceitação de acordos supranacionais estava madura no Mercosul até o fim da década de 90. A crise do real, e logo a crise Argentina, impediram isso. Uma nova oportunidade teve lugar até 2007 sob o boom exportador em todos os países do Mercosul. Mas o problema é que o Brasil não aceita a supranacionalidade devido a ideia de que isso limita sua soberania nacional. Essa é a visão do Itamaraty e é compartilhada por gente nova, como Marco Aurélio Garcia. Então, o Brasil propõe que os países se vinculem por acordos intergovernamentais. Como não há regras comuns, sempre há disputas e isso explica a crise atual do Mercosul e também a razão pela qual a Unasul é, sobretudo, um foro político. Para resolver as disputas, apela-se a uma lógica em que o Brasil dá um jeitinho para lidar com algumas das reivindicações pontuais dos vizinhos.

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