PARALIMPÍADA

Foi no limite, mas o Brasil fez em Tóquio sua maior campanha em paralimpíadas

Delegação alcança mesmo recorde de medalhas da Rio-2016 e colocação mais alta, ao lado da de Londres-2012. Porém, total de ouros faz capital japonesa sediar o que nunca havia sido feito antes

Takuma Matsushita/CPB
Takuma Matsushita/CPB
Brasil fechou o quadro de medalhas na sétima colocação com 22 de ouro, 20 de prata e mais 30 de bronze, somando 72

Tóquio – Foi no último dia, na penúltima chance e no limite. Mas o Brasil conseguiu fazer em Tóquio a maior campanha da delegação paralímpica em todos os tempos. Fechou o quadro de medalhas na sétima colocação com 22 de ouro, 20 de prata e mais 30 de bronze, somando 72. O número total é igual ao da Rio-2016, os dois mais altos desde que os Jogos Paralímpicos começaram, em Roma-1960. A posição também é a mais alta e igual à alcançada em Londres-2012. Mas o total de vezes que os atletas brasileiros foram ao ponto mais alto do pódio nunca havia sido alcançado. Antes, eram 21 vezes, na capital inglesa nove anos atrás. E como não poderia deixar de ser, houve surpresas, positivas e, claro, negativas.

A derradeira medalha brasileira saiu na maratona da classe T46 com Alex Pires. Uma prata arrancada no que ele chamou de smart run. Nenhum grande segredo, apenas uma prova pensada onde a estratégia era largar com tranquilidade, sem empolgação, e crescer no final. Deu tão certo que ele chegou a vislumbrar o ouro, mas acabou segurando no final, até pela lembrança nada agradável da Rio-2016, quando era uns dos favoritos, mas teve de abandonar logo depois da metade justamente por não aguentar o ritmo. Caso a smart run não tivesse dado certo, ainda haveria uma chance com Vitor Tavares, no badminton, o último brasileiro a competir nos Jogos Paralímpicos de Tóquio, mas ele foi derrotado de virada pelo britânico Krysten Coombs na disputa do bronze.

(Ale Cabral/CPB)
Alex Pires com a última medalha brasileira em Tóquio (Ale Cabral/CPB)

Gol, goal e a redenção de Beth

Algumas medalhas conquistadas pelo Brasil foram muito emblemáticas. A começar pelo Futebol de 5, modalidade específica para deficientes visuais. Não que não fosse esperada, a seleção era mais do que favorita, pois nunca perdeu um jogo sequer e, portanto, chegou na capital japonesa como tetracampeã paralímpica, além de pentacampeã mundial. Mas a final foi contra a Argentina, time que ainda não havia sido derrotado pelo Brasil em jogos. Mais do que isso, nunca havia tomado sequer um gol. Eram três jogos, três 0 a 0. Pois Nonato, ao vivo para todo o país, vazou pela primeira vez a meta rival em um gol antológico que valeu o pentacampeonato. No mesmo Japão onde a seleção de futebol havia conquistado o penta da Copa do Mundo 19 anos antes. O experiente Nonato acabou como artilheiro da competição e, depois da final, narrou o próprio gol dentro da percepção que tem, como deficiente visual, dentro de quadra.

Ainda nos esportes de gol, destaque para a medalha de ouro do goalball, perseguida com tanta gana pelos atletas brasileiros desde que perderam a final em Londres-2012 para a Finlândia. Comandados por Romario Marques e suas quatro Paralimpíadas nas costas, o trio completado pelo melhor do mundo, Leomon Moreno, e o sucessor das duas lendas, Josemarcio Sousa, o Parazinho, foi muito superior a todos os rivais e colocou a dourada no peito após derrotar a China por 7 a 2 na final. Destaque também para as duas sapecadas que deram na Lituânia, até então campeã paralímpica, uma por 11 a 2 na estreia e outra por 9 a 5 na semifinal.

Entre as mulheres, como não enaltecer Elisabeth Gomes, a Beth Gomes, que aos 56 anos lançou o disco para lá do Deus me livre e conquistou o ouro no, obviamente, lançamento do disco após ser impedida de disputar a Rio-2016. Esperou cinco anos para poder competir e, no dia da prova, foi a última a entrar na área de lançamentos. Estava com tanta gana que garantiu a medalha de ouro logo na primeira tentativa. Na quinta, de seis, bateu o próprio recorde mundial e ali mesmo desabou em lágrimas numa das cenas mais comoventes dos Jogos. Mas teve mais. No sexto e último lançamento mandou o disco a assombrosos 17m62 para derrubar novamente o recorde mundial e, junto com a chuva que caía no Estádio Olímpico, lavar a alma com a consagração de uma luta contra a esclerose múltipla. “Digo sempre que a esclerose múltipla é minha amiga, caminha do meu lado, mas nunca vai me vencer.”

São muitos outros ouros que poderiam ser lembrados aqui. Os três de Maria Carlina Santiago na natação, a maior campeã brasileira nos Jogos Paralímpicos de Tóquio. A contundente vitória de Alana Maldonado no judô; Yelstin Jacques, que ganhou a primeira do atletismo na capital japonesa e, depois, a centésima brasileira na história dos Jogos. O cantado bi de Petrúcio Ferreira, o atleta paralímpico mais rápido do mundo, nos 100m rasos, ou o inesperado título de Nathan Torquato no taekwondo. São muitos, certamente cometi injustiças.

Os que não vieram

Se tivemos as alegrias, não dá para esquecer as tristezas dos Jogos Paralímpicos de Tóquio. Aquelas medalhas, não necessariamente de ouro, que eram nossas e escaparam por conta das ‘injustiças’ cometidas pelos deuses do esporte ou pelos homens mesmo. A mais doída, talvez, seja de Jerusa Geber nos 100m rasos da classe T11. Ela chegou para a apoteose. Tinha todos os títulos que poderia ter, era recordista mundial da prova, treinou até não poder mais para sacramentar a carreira com o ouro paralímpico e se aposentar. Estava tudo pronto, mas, após a largada, a corda que a une ao atleta-guia, aquele que corre junto com ela por ser deficiente visual, arrebentou no meio da prova e ela foi desclassificada. Três dias depois ganhou o bronze nos 200m, mas o coração ainda estava amargurado. “Aqui é minha última Paralimpíada e eu perdi o ouro, a chance da vida, por causa de uma cordinha frágil. Estragou o sonho da vida de uma atleta”, disse após os 200m, chorando copiosamente.

Os homens também cometeram suas injustiças. Thiago Paulino, no arremesso do peso na F57, foi vítima de uma das maiores de todos os tempos. Pra falar o português claro, foi surrupiado na calada da noite. Ele venceu a prova e teve o resultado homologado pelos árbitros de campo. Mas, doze horas depois, sentados em suas confortáveis salas, integrantes de uma instância decisória suprema acolheram um recurso estranhíssimo da delegação chinesa e simplesmente anularam, na canetada, todos os arremessos do brasileiro acima de 15m. Literalmente deram o ouro para o rival asiático que, sim, me recuso a colocar o nome. Sem explicar o motivo, ignorando imagens apresentadas em defesa do brasileiro e sem apresentar sequer uma imagem de qualquer irregularidade. Thiago Paulino, que estava no Estádio Olímpico para pegar o ouro – no atletismo, a cerimônia de premiação, por vezes, é no dia seguinte à prova – teve de engolir o ódio e ir pegar o bronze no pódio. Lá, não cansou de protestar. “O mundo sabe quem é o verdadeiro campeão”.

Houve também a triste perda da lenda do judô Antônio Tenório, tetracampeão paralímpico e dono de seis medalhas, uma para cada edição que havia participado antes de chegar aos Jogos Paralímpicos de Tóquio. Antes de desembarcar na capital japonesa, precisou vencer a covid-19. Aos 50 anos e poucas semanas antes de competir, chegou a ficar 18 dias internado, teve 80% do pulmão comprometido e precisou de ventilação. Nos tatames, foi superado só na semifinal. Sem problemas, ainda tinha a chance da medalha de bronze, seria a sétima da carreira, e ele ia vencendo a luta contra o uzbeque Sharif Khalilon. Eis que no último segundo, isso mesmo, no último segundo, cometeu um erro e foi surpreendido pelo rival. A luta foi para o tempo extra e, lá, o brasileiro acabou superado. Após o combate, Tenório tinha todas as desculpas do mundo ao seu dispor, mas, campeão que é, reconheceu o erro.

E assim foram os Jogos Paralímpicos de Tóquio. Jogo a jogo, luta a luta, corrida a corrida, contando mais uma história do esporte mundial. Cheio de vitórias espetaculares, derrotas doídas, companheirismo entre vencedores e vencidos, injustiças que não cabem no mundo do ideal esportivo. Agora é fim de festa, a próxima só daqui a três anos, em Paris-2024, mas o paradesporto não pode esperar tanto para acontecer. Nas próximas semanas, nos próximos dias, os atletas vão voltar a seus clubes, associações, para treinar e competir, sem o glamour que os Jogos oferecem. Mas são os mesmos, com a mesma capacidade, mesma técnica, mesma gana. Cabe a nós não os deixar sozinho por tanto tempo.

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