Liberdade de escolha

Uniformes esportivos: a insurgência das mulheres contra o sexismo

Atletas contestam tradições e regulamentos desatualizados feitos por homens, buscando o reconhecimento por suas habilidades esportivas e combatendo estereótipos

Federação Norueguesa de Handebol de Praia
Federação Norueguesa de Handebol de Praia
A seleção da Noruega de handebol de praia utilizou bermuda, e não a parte de baixo de biquíni, em campeonato europeu da modalidade

São Paulo – Após décadas sem ter o controle dos próprios corpos em relação às vestimentas utilizadas em modalidades do esporte, as mulheres vêm se rebelando contra tradições e regras que não foram escritas por elas. Aos poucos, regulamentos desatualizados são contestados por atletas que pretendem ter autonomia para definir seus próprios uniformes e o reconhecimento por suas habilidades e méritos desportivos.

Um exemplo dessa “rebelião” ocorreu nos Jogos Olímpicos de Tóquio, quando a equipe feminina de ginástica da Alemanha optou por usar trajes de corpo inteiro em sua participação no evento. De acordo com as ginastas Sarah Voss, Pauline Schaefer-Betz, Elisabeth Seitz e Kim Bui, o objetivo foi promover a liberdade de escolha e encorajar as mulheres a usarem roupas que as deixem confortáveis.

Poucos dias antes do início dos Jogos, a equipe norueguesa de vôlei de praia feminino já havia se recusado a jogar com a parte de baixo do biquíni durante os torneios europeus, optando pela utilização de shorts justos. Receberam uma multa por violar uma exigência de vestuário, mas agregaram apoio dentro e fora do âmbito esportivo em todo o mundo.

A professora de Estudos do Movimento Humano (Saúde e Educação Física) e Artes Criativas da Charles Sturt University, Rachael Jefferson-Buchanan, falou à RBA, em entrevista concedida por e-mail, sobre como tem crescido essa contestação e de que forma o tema se relaciona ao machismo e ao sexismo presentes no dia a dia.

As relações de poder no esporte

Rachael aponta que, dentro da instituição do esporte, existem relações de poder de gênero que privilegiam o corpo masculino e noções de masculinidade. “Quando as mulheres são ‘autorizadas’ a entrar neste espaço de gênero como atletas, pode-se observar que em certas modalidades esportivas, como a ginástica e o nado artístico (ex-nado sincronizado), representações hiperfemininas (hetero) sexualizadas de atletas femininas são evidentes. Isso cria um espaço para atletas femininas que é cúmplice do instituto de esporte de gênero, classificando as atletas femininas como ‘outras’. Como tal, a atleta hiperfeminina nesses esportes é normalizada.”

No caso das modalidades mencionadas pela acadêmica, há regramentos evidentemente sexistas. O nado artístico e a ginástica rítmica têm apenas mulheres nas competições oficiais, enquanto os exercícios de solo na ginástica artística contam com música e coreografia somente na modalidade feminina. Além disso, os trajes e a maquiagem reforçam um estereótipo associado às esportistas.

“Cada federação esportiva internacional estabelece e aplica normas, controles e exclusões que se expressam no patriarcado e sobre como meninas e mulheres devem se apresentar; como seus cabelos devem ser arrumados, que maquiagem devem usar, o estilo, o ajuste e a cor de seus uniformes esportivos e muito mais. Isso cria uma grande pressão sobre as atletas do sexo feminino para cumprir as expectativas ‘femininas’, e isso pode ter um efeito adverso em sua identidade, sua expressão e até mesmo em sua saúde mental. Isso é especialmente desafiador para atletas do sexo feminino que não são heterossexuais e que não se enquadram no tipo de corpo esbelto tradicional (não excessivamente musculoso) que é associado a ser ‘feminino’.”

Nas Olimpíadas, foi possível verificar que nem todas as modalidades e federações seguiram a lógica patriarcal. No skate, por exemplo, uma fornecedora de material esportivo produziu 20 peças distintas para o uso por parte das comitivas de Brasil, Estados Unidos e França, respeitando a liberdade e o estilo de cada. Existem modalidades que permitem maior liberdade em termos de vestuário, como o skate, por exemplo. Isso poderia ser um parâmetro para outros esportes?

“O skate fez sua estreia nas Olimpíadas de Tóquio e tende a ter atletas mais jovens competindo, já que não há exigência de idade mínima – ao contrário das ginastas que devem ter 16 anos ou mais. Os três vencedores de medalhas no skate foram todos adolescentes na categoria feminina: Momiji Nishiya, 13 anos (ouro); Rayssa Leal, 13 anos (prata); Funa Nakayama, 16 anos (bronze). Na maioria dos outros esportes, as federações internacionais decidem qual é o traje adequado para cada grupo de gênero”, pontua Rachael.

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Ela afirma que as regras de código de vestimenta contemplam práticas de longa data sobre o que é aceitável para atletas femininos e masculinos. “Uma vez que essas convenções do código de vestimenta são analisadas, fica claro que elas são meramente ‘tradições’, e não existem para satisfazer os objetivos principais de um uniforme esportivo, como identidade, senso de unidade de equipe, segurança, justiça, conforto e desempenho”, explica. “A fim de modernizar os códigos de vestimenta para mulheres do esporte, é imperativo que elas sejam parte integrante do futuro processo de tomada de decisão e que sejam ouvidas. Em um nível de elite, aquilo com que as atletas femininas se sentem confortáveis quando se vestem ao competir deve ser a prioridade.”

Serena Williams, as ginastas alemãs e o uso do hijab

Um exemplo de atleta que usou a força de sua imagem para mudar regras em relação ao uso de uniforme em competições é a tenista estadunidense Serena Williams, que foi capaz de forçar a modificação de uma norma de vestuário das mais antigas do esporte.

Serena Williams no torneio de Roland Garros, em 2020 (Corinne Dubreuil/FFT/Fotos Públicas)

“No tênis, que foi um dos primeiros eventos olímpicos em que as mulheres puderam participar, foi apenas em 2019 que a Associação Feminina de Tênis modernizou o código de vestimenta de suas jogadoras para permitir leggings e shorts de compressão até o meio da coxa. Essa mudança ocorreu após as objeções do presidente da Federação Francesa de Tênis ao macacão de corpo inteiro usado pela estrela americana do tênis Serena Williams no Aberto da França naquele mesmo ano”, destaca a professora.

Antes, a tenista Anne White, também dos Estados Unidos, havia chamado a atenção depois de competir em sua estreia no tradicional torneio de Wimbledon, em 1985, com um macacão branco e polainas. Após o jogo ter sido suspenso por conta da chuva, o árbitro do torneio Alan Mills “sugeriu” que ela usasse outra roupa no dia seguinte, o que ela fez. Serena mostrou que os tempos estão mudando.

De acordo com Rachael, ao analisar os códigos de vestimenta para esportes femininos em profundidade e descobrir o que é ou não permitido, existem algumas áreas que podem ser consideradas “cinzentas”, onde a tradição se cristaliza em forma de uma norma não-escrita. “Um bom exemplo disso é a equipe de ginástica feminina alemã que vestiu macacões no início deste ano no Campeonato Europeu de Ginástica Artística na Suíça – seu código de vestimenta apenas exigia ‘design elegante’. Ginastas de pés descalços são vistas com mais frequência, então, quando os macacões foram usados por três ginastas, houve um surto de interesse da mídia. Elas explicaram que escolheram usar macacões para se sentirem mais seguras (à luz dos recentes escândalos de abuso sexual) e mais à vontade durante as apresentações.”

É importante destacar o contexto da ginástica artística feminina em Tóquio. Forma os primeiros Jogos Olímpicos desde que o ex-médico da seleção nacional de ginástica dos EUA Larry Nassar foi para a prisão com uma pena de 176 anos por abusar sexualmente de centenas de ginastas. A partir do episódio e também em testemunhos no processo que o condenou, muitas atletas descreveram como a cultura da modalidade permitia o abuso e também estimulava a objetificação e sexualização de garotos e garotas.

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Mas as mulheres no esporte também foram censuradas em sua liberdade de escolha em outros aspectos. “As muçulmanas também foram excluídas dos esportes devido a suas decisões sobre uniformes religiosos, com as regras draconianas do código de vestimenta no futebol que as proibia de usarem seus hijabs, vistos como expressão de ‘simbolismo religioso’ pela Fifa. Mas como esta era uma área cinzenta para que eles aplicassem legalmente, então citaram razões de ‘saúde e segurança'”.

De fato, apelar para a proibição usando o argumento do “simbolismo religioso” é algo que cai por terra quando se observa, por exemplo, jogadores homens expressando sua religiosidade na comemoração ou por meio de tatuagens, faixas e mensagens em celebrações de títulos ou entrega de medalhas no futebol.

A proibição acabou propiciando momentos dramáticos. A escritora e ativista Shireen Ahmed lembra, em artigo publicado no periódico britânico The Guardian, uma partida de qualificação olímpica disputada em 2011, entre Jordânia e Irã. A seleção feminina iraniana foi proibida de jogar por causa de seus hijabs e as jogadoras tiveram que deixar o campo, adiando o sonho de disputar os Jogos de Londres do ano seguinte. “Este não foi um caso de mulheres muçulmanas sendo oprimidas por sua fé, foi um caso sério de mulheres sendo excluídas por regras draconianas, impregnadas de islamofobia e ignorância de gênero, criadas por homens”, aponta.

“Depois de muita discussão e redesenho das coberturas para a cabeça, a proibição do hijab da Fifa foi revogada alguns anos depois. Esta última história destaca a interseção de gênero e etnia em relação aos corpos das mulheres esportivas e como eles são regulados pelas organizações esportivas”, destaca Rachael.

Cobertura da mídia e sexismo

O machismo e o sexismo também são reforçados pela cobertura midiática em todo o planeta. Em 2018, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) divulgou uma campanha de áudio mostrando o tratamento desigual no trabalho da mídia especializada. Levantamento feito pela entidade à época mostrava que apenas 4% da cobertura midiática relacionada a esportes se referiam a mulheres e muitas vezes a referência era à aparência física e à vida pessoal , ao invés de habilidades atléticas.

A elas também eram atribuídas palavras como “idosa”, “mais velha”, “grávida”, “casada” e “solteira”, termos comuns nas descrições de mulheres, mas não de homens. Por outro lado, aos atletas masculinos eram associados adjetivos como “mais rápido”, “forte”, “grande”, “real” e “ótimo”.

“Há um grande foco nas aparências das mulheres do esporte, e comentaristas esportivos (que são em sua maioria homens) reforçaram isso, com a discussão sobre suas roupas e cabelos sendo comuns. Muitas vezes há descrições condescendentes delas também, junto com a objetificação sexual – é uma mistura poderosa que serve para rebaixar as mulheres e suas habilidades esportivas. Contrasta com comentários sobre desportistas homens, que se concentram predominantemente em suas proezas atléticas. Também há uma escassez de cobertura dos esportes femininos pela mídia, destacando como elas permanecem marginalizadas em nossa sociedade contemporânea”, aponta Rachael.

A responsabilidade dos veículos de comunicação, contudo, não se esgota apenas na cobertura jornalística. Muitas vezes é nas redes sociais que são publicados livremente comentários que reforçam a misoginia, com postagens que caracterizam até mesmo abusos e ameaças contra atletas mulheres.

“A discriminação sexual nasce na instituição patriarcal do esporte e, se não for combatida ali, jamais será diminuída – ou melhor ainda – erradicada. Portanto, é papel de todos desafiar o sexismo e a misoginia, mas particularmente de dentro da instituição e em todos os níveis (por exemplo, treinamento de mulheres e homens, salários de atletas femininos e masculinos, tipo e número de eventos esportivos oferecidos a mulheres e homens, cobertura de esportes femininos e masculinos)”, afirma a professora.

Ela cita uma pesquisa realizada em 2020, a BBC Elite British Sportswomen, mostrando que 65% das entrevistadas sofriam com o sexismo, mas apenas 10% relataram. Números que pioraram desde que o mesmo levantamento foi realizado cinco anos antes. “As mulheres explicaram na pesquisa que suas oportunidades de seleção de equipe/evento seriam prejudicadas se falassem contra o sexismo. Isso cria uma cultura de silêncio e permite que a discriminação persista nas sombras do esporte”, conta, destacando que isso se reproduz também nas redes sociais. “Proprietários de redes de mídia social como Facebook, Instagram e Twitter precisam construir espaços seguros e respeitosos para as mulheres do esporte, bloqueando pessoas que são odiosas e misóginas e relatando casos graves às autoridades competentes, e também devem aumentar sua cobertura de esportes femininos e oferecer postagens que promovam a igualdade no esporte.”


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