contra opressões

Coletivos e movimentos de torcedores pautam política e futebol nos estádios

Nos últimos anos tem crescido o número de organizações que buscam fazer a disputa ideológica nas arquibancadas. Torcidas em Pernambuco e São Paulo estão na vanguarda deste movimento

Divulgação/Portão 10

Organizadas, mulheres exercem protagonismo na torcida do Santa Cruz, em Pernambuco

Brasil de Fato – É comum escutar que religião, futebol e política não se discutem. Ou que o futebol aliena politicamente a população. Mas Brasil afora, milhares de torcedores discordam dessas afirmações e se desafiam a politizar o espaço do estádio de futebol. Nas arquibancadas, cresce o número de grupos, coletivos, torcidas e movimentos que pautam a inclusão social no futebol, a luta contra opressões e se organizam para confrontar as tentativas de elitização do esporte.

Em Pernambuco, as arquibancadas do Arruda estão na vanguarda desse movimento. Em 2012 surgiu o Movimento Popular Coral (MPC), unindo torcedores preocupados com a elitização do futebol e do próprio Santa Cruz. Membro do MPC, o advogado Rodrigo Fittipaldi afirma que a principal pauta do movimento é a inclusão do torcedor pobre na vida do clube. “Queremos a participação política do torcedor mais humilde, que representa a grande maioria da torcida tricolor. Queremos que seja garantido o acesso de todos os torcedores ao esporte”, afirma Fittipaldi.

O advogado aponta contradições entre a história do clube e a forma que o Tricolor é gerido atualmente. “O Santa Cruz é o ‘clube do povo’, do pobre, do favelado, fundado no centro do Recife, na Boa Vista, por onze meninos que batiam pelada na rua e decidiram fundar um clube, sem nenhum financiamento, e que se tornou esse clube gigante. Mas o que vemos hoje é que quem decide são pessoas, em sua grande maioria, com melhores condições de vida, com certos privilégios dentro do clube”, reclama.

O estatuto do clube, diz o torcedor, afirma que “só uma certa qualidade” de sócios tem direito a voto. “O torcedor que só pode pagar a taxa mínima para se associar não tem direito a participar das decisões”, lamenta. Desde 2012 esta é a principal bandeira do Movimento Popular Coral. “Queremos um plano de sócios inclusivo e participação política desse torcedor, para que ele possa viver o clube. O Santa Cruz é composto majoritariamente por torcedores humildes. Foi este torcedor que fundou e ergueu o clube, não pode ficar de fora da vida política”, opina.

Além da popularização do futebol e do clube, o MPC também afirma compromissos com o combate ao racismo, ao machismo, homofobia e xenofobia. Por isso, avalia Fittipaldi, “o MPC é um movimento político de esquerda, por conta de seus ideais de inclusão e de combate a todo tipo de preconceito”. E o torcedor tricolor reivindica a própria história do clube do Arruda como inspiração para a torcida. “O Santa Cruz é um clube historicamente inclusivo, o primeiro do estado a aceitar jogadores negros, o que é também um ato político”, afirma o advogado.

O primeiro escudo do Tricolor foi desenhado, em 1914, por Teófilo Batista de Carvalho, jovem negro apelidado de “Lacraia”. Ele foi um dos fundadores do clube, mas seu nome não consta na ata de fundação porque estava estudando para entrar na escola de engenharia e não se fez presente na reunião de fundação. Lacraia atuou com a camisa do Santa Cruz e chegou a ser capitão e técnico do time simultaneamente.

Em 2016 nasce o Movimento Coralinas, reivindicando o feminismo e a valorização das mulheres na construção do clube, passando pelas arquibancadas e reivindicando investimento no futebol feminino, modalidade extinta no clube. “Um exemplo recente é sobre as camisas oficiais, que foram lançadas só no modelo masculino. Só fabricaram o modelo feminino meses depois, fruto de pedido nosso”, diz a jornalista Maiara Melo, membro das Coralinas. “Queremos tornar o Arruda um ambiente menos tóxico para as torcedoras e queremos levar a mulher para o estádio”, afirma. Uma das pautas delas é acabar com os cânticos de estádio que denigrem a imagem das mulheres e da população LGBT.

Já em 2017 surge o Coletivo Democracia Santacruzense, querendo modificações na democracia interna do clube, das federações, da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e da Fifa. “O torcedor é parte fundamental, é a mola econômica de toda a estrutura do futebol, mas nunca é ouvindo ou consultado sobre nada”, afirma Esequias Pierre, tricolor e professor de história. O Coletivo também contesta a atual distribuição desigual das cotas de TV pagas aos clubes e, para além do futebol, quer a democratização dos meios de comunicação. Em atos públicos da esquerda, não raro podemos encontrar a bandeira tricolor.

Tanto MPC, como Coralinas e o Coletivo não se denominam torcidas, mas movimentos políticos de torcedores tricolores.

Em São Paulo, a torcida Palmeiras Antifascista concedeu entrevista ao Brasil de Fato, mas pediu para que não tivesse publicados nomes de torcedores. Segundo a torcida, seus ideais comuns pertencem à esfera ideológica de esquerda. “Também reivindicamos a tradição antifascista de combate ao sistema capitalista e a suas mazelas, como por exemplo opressões como o machismo, a homofobia, o racismo e a xenofobia”, diz a Palmeiras Antifascista.

Política e Futebol

Questionado se política e futebol se misturam, Esequias Pierre afirma que desde a origem do futebol a política se faz presente nos clubes e arquibancadas. “Eles sempre estiveram lá organizados, dirigem o futebol e os clubes. Os conservadores estão lá, a polícia que mata e oprime também. Nos organizar é fundamental para continuar existindo e resistindo. É a forma que encontramos de nos defender e nos posicionar”, avalia.

Já a torcida palmeirense afirma que a crença de que o estádio é um espaço de disputa política é a razão de existir da Palmeiras Antifascista. “Ainda que lentamente as pautas políticas têm adentrado os estádios. A Gaviões engajada contra (Fernando) Capez e as torcidas do Paysandu-PE e do Rio Claro-SP declarando-se abertamente contra a homofobia. É um avanço”, comemora.

A organização palmeirense se propõe a levar para dentro do estádio o debate político, seja ele relacionado diretamente ao futebol ou não. “Acreditamos que o futebol é uma importante esfera de organização da classe trabalhadora, por isso reivindicamos esse espaço e levamos nossas ideias progressistas em relação à sociedade. Queremos disputar ideologicamente esse espaço que é tão influenciado pelo preconceito e pelo conservadorismo”, afirma a Palmeiras Antifascista, que diz ter boa receptividade por parte dos alviverdes tanto nos estádios, como nas redes sociais e nas ruas.

A torcida diz ter membros de diferentes correntes dentro da esquerda, mas se unificam em torno do amor ao Palmeiras, do combate às formas de preconceito dentro e fora das arquibancadas e pelo sentimento de que o futebol precisa voltar a ser um esporte popular e acessível a todos. “É preciso o esforço de todos na luta contra a elitização do futebol. No mundo todo isso tem colocado os trabalhadores longe do espetáculo. É notável que tem sido prioridade a lógica do dinheiro e do capitalismo, até mesmo entre os torcedores. Mas nós acreditamos que é necessário resgatar algumas raízes, como o amor pelo clube, seja ele grande ou pequeno”, diz a torcida palmeirense.

O movimento de torcidas de esquerda no Brasil tem inspirações em torcidas da Alemanha e Itália com ideais libertários ou comunistas, mas que acabam generalizadas como torcidas antifascistas. Nesse sentido, o Coletivo Democracia Corinthiana tem um importante legado para as organizações de torcedores de esquerda no Brasil. No Nordeste há também o Ultras Resistência Coral (URC), do Ferroviário-CE; a Brigada Marighela, do Vitória-BA. Há ainda o Movimento Povo Clube (MPC), no Internacional-RS, torcidas com ideais antifascistas, libertários e/ou de esquerda nas arquibancadas de Grêmio-RS, Atlético-MG, Cruzeiro-MG, Flamengo-RJ, Botafogo-RJ, Santos-SP, Juventus-SP e outros.

Importante citar também a corinthiana Gaviões da Fiel, que somou forças com Sócrates, na década de 1980, na luta pela democratização do futebol e pela redemocratização do Brasil, através do movimento Diretas Já. Ainda hoje a Gaviões vez ou outra se posiciona sobre alguns temas. Em 2016 fez uma forte campanha contra o deputado Fernando Capez (PSDB), suspeito de envolvimento no desvio de verba que seriam para a compra de merenda escolar em São Paulo.

Torcidas Organizadas Tradicionais

O membro do Coletivo Democracia Santacruzense defende que as torcidas organizadas mais tradicionais têm sofrido um processo de marginalização que não respeita as décadas de história que têm. “Eles têm um legado a ser defendido, além de terem, como nós, o direito de organização”, opina. Muitos membros do CDS, segundo Pierre, pertencem ou já pertenceram às torcidas organizadas. Estas, na avaliação do professor de história, “representam uma gama enorme de pessoas e grupos” e, por isso, têm mais dificuldade de se unificar em torno de pautas para fora do futebol.

Para Pierre, as “TOs” tradicionais devem continuar por um bom tempo como referências organizativas para a juventude. “Os jovens têm desejo de organização, pertencimento, contestação e combatividade. E as TOs continuam sendo uma maneira de interagir com nossos clubes, com nossas comunidades e com o futebol”, avalia, completando que nas últimas duas décadas a cultura torcedora tem sofrido uma massiva marginalização.

Segundo Fittipaldi, o MPC deve caminhar lado a lado com as organizadas, já que têm muitas pautas em comum, além de membros do MPC também integrarem torcidas organizadas. “O MPC tem uma pauta popular, pedimos a volta da festa nos estádios, a volta das bandeiras de mastros, os piscas, os fogos e papel picado – que por incrível que pareça até isso é proibido aqui em Pernambuco”.

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