Especialistas criticam ‘bolhas’ para isolar turistas na Copa da África do Sul

Professores reunidos em São Paulo pedem que o mesmo seja evitado pelo Brasil evite ocultar suas mazelas na Copa de 2014

São Paulo – A intenção declarada do governo da África do Sul e do Comitê Organizador da Copa do Mundo de formar espécies de bolhas de segurança para os turistas que decidam visitar o país durante o torneio desagrada pesquisadores e analistas.

Professores das áreas de futebol, antropologia e história africana entendem que o melhor é que um país assuma seus problemas e trate de atacar as suas causas, deixando de lado a ideia de uma separação que, durante alguns dias, vai gerar zonas artificiais.

O argumento principal da realização da Copa, a princípio, seria levar o futebol a um determinado povo. No geral, tem havido uma divisão entre as edições que têm como função disseminar a modalidade, ganhando novos adeptos e novos mercados, e as edições que visam a premiar um país apaixonado por futebol.

Seria este o caso da África do Sul. Mas, com preços de ingressos absolutamente inacessíveis para a maior parte da população local e com a separação entre áreas turísticas e áreas “normais”, o mais provável é que o povo sul-africano assista ao Mundial a partir de telões instalados em algumas praças.

O modelo adotado pela nação africana corresponde àquela que tem sido a linha de exigências da Fifa para o país-sede – exigências que, por sinal, crescem edição após edição. Inicialmente, os organizadores tinham intenção de priorizar a construção de estádios em áreas de baixa renda, numa tentativa de fazer com que as obras de infraestrutura beneficiassem os setores mais carentes da população. Mas a Fifa rapidamente impôs que as arenas fossem removidas para locais que não gerassem qualquer impacto negativo para a imagem do país e, principalmente, do Mundial.

“Não se pode pegar a Alemanha como parâmetro e exigir de África do Sul e de Brasil que reproduzam uma Copa nos moldes de uma nação de primeiro mundo. É a oportunidade de colocar em questão esse modelo de Copa que a Fifa organiza. É em benefício de quem? Quem fica com esse lucro?”, questiona José Paulo Florenzano, professor do Departamento de Antropologia da PUC de São Paulo.

Ao mesmo tempo, a África do Sul pode servir como espelho para o Brasil, uma vez que há muitas semelhanças entre os dois países. Apesar disso, o Comitê Organizador da Copa de 2014 tem apontado que há mais diferenças do que características em comum e que o Brasil tem muito mais capacidade de organizar o torneio.

A fala do presidente da CBF, Ricardo Teixeira, à revista Piauí deste mês, dá uma pista de como se enxerga, daqui, o país africano: “Lá, é outro clima, outra organização política, outra maneira de lidar com as coisas, e a Fifa sabe disso.”

Para especialistas, reunidos nessa segunda-feira (24) em São Paulo, este não é o caminho. Olhar a África, como um todo, desde um patamar preconceituoso que não aceita outros modelos de desenvolvimento e de cultura não é o que se pode chamar de respeito às diferenças.

Flávio de Campos, do Departamento de História e Geografia da USP, entende que a sociedade brasileira tem aceitado uma maneira perigosa de olhar a cidadania, como se a plena realização da mesma fosse o direito do consumidor – e, neste aspecto, estabelece-se uma hierarquia na qual os europeus dominam e os africanos estão no nível mais baixo da pirâmide.

Essa visão, que se pode chamar de eurocêntrica, leva à negação dos problemas e à conivência com a construção de estruturas que permitem isolar o turista estrangeiro da realidade do país. O medo de passar por uma vergonha internacional, que conduz à construção de uma ‘Copa-biombo’, deveria desaparecer, na opinião do professor. “Há um olhar muito preconceituoso que trata da realização da Copa do Mundo como um certo exame probatório de demonstração da capacidade do nível civilizatório.”

Realização

Apesar dessa questão e dos problemas que a sociedade brasileira tanto teme, como superfaturamento das obras, os especialistas entendem que não se trata de deixar de lado os países mais pobres ou os emergentes na hora de escolher a sede de um Mundial.

Leila Leite Hernandez, professora de História da África na USP, entende que há inúmeros fatores que levam aos enormes níveis de violência na África do Sul e que a Copa pode ser a oportunidade para dar mais atenção ao tema. “É o modo de se iniciar um processo que se desdobre posteriormente em geração de empregos, melhoria dos serviços de saúde etc. É também a confirmação da possibilidade de que as copas podem ocorrer sob certas dificuldades”, afirma.

A sociedade civil organizada tem na Copa um momento de expor ao mundo os problemas pelos quais passa. O torneio de 1978, na Argentina, não serviu apenas para dar o título aos donos da casa, mas também para que os familiares de vítimas da ditadura militar (1976-83) chamassem atenção de organismos de imprensa e de defesa dos direitos humanos para as violações que estavam em curso no país.

Flávio de Campos entende que a Copa seria uma bela oportunidade de pensar em um modelo de administração esportiva que promovesse inclusão social. Ciente de que isso não será tratado, ele critica o modelo de Mundial ‘de serviços’ criado pela Fifa, privilegiando as receitas, o atendimento ao consumo e ao turismo, em detrimento da geração de benefícios permanentes para a população local e da festividade como evento cultural. “No caso do Brasil, deixar todo comando na mão de uma entidade oligárquica, viciada do ponto de vista político, que mantém um certo presidente em seu comando há mais de vinte anos, é extremamente preocupante”, avalia, ao falar da CBF.

A confederação administrada por Ricardo Teixeira praticamente abriu mão de verbas públicas. Funcionando como corporação privada, ela não precisa passar por certos procedimentos de controle dispensados às estatais.

Leia também

Últimas notícias