Memórias do Brasil

Mia Couto: as dores de duas terras e o alento de Guimarães Rosa

Escritor moçambicano quase desistiu de viajar, após ciclone que devastou seu país, mas trouxe 'um abraço solidário' por Mariana, Brumadinho e Rio. E lamentou a ameaça de apagar a 'memória da ditadura'

Reprodução Facebook

Mia Couto no palco: leitura de Guimarães, um de seus mestres, que ele considera ‘o retrato mais fiel deste país’

São Paulo – Meninas de Cordisburgo (MG), Alice, Júlia e Manuelli deixam o palco após narrarem trechos de Grande Sertão: Veredas, entra Mia Couto, para falar sobre a influência de Guimarães Rosa e as dores e laços culturais que unem seu país, Moçambique, e o Brasil. Elas são do Grupo Miguilim, de jovens contadores de histórias formados há duas décadas na cidade mineira por, entre outros, Dôra Guimarães, que acompanha as três. Logo no início, Mia, aparência abatida, fala do ciclone que devastou seu país, sua cidade (Beira), e o deixou “órfão da minha infância”. Pensou em desistir da viagem, mas explica em seguida os motivos que o fizeram vir, depois que um amigo o incentivou a trazer um abraço aos brasileiros, que também vivem momentos difíceis. 

“E é isso que estou fazendo: trazendo um abraço solidário de Moçambique por Brumadinho, Mariana e agora pelo Rio de Janeiro”, afirma o escritor, para em seguida fazer referência ao momento político do Brasil. “Um abraço à diversidade de sua gente, à integridade de sua história – essa história que tantas vezes já foi amputada das memórias da escravatura e do racismo, amputada do genocídio dos índios e da violência contra as mulheres. E que agora está na iminência de ser amputada mais uma vez apagando aquilo que é memória da ditadura”, acrescentou, sendo longamente aplaudido.

O evento na noite desta terça-feira (9) foi de curta duração – aproximadamente 45 minutos, entre as falas das meninas e a narração de Mia Couto, que no final leu um texto dele e do também escritor José Eduardo Agualusa, de Angola, sobre as ameaças à democracia no Brasil (confira ao final). Promovida pela Companhia das Letras e com direção de Bia Lessa, a atividade lotou o Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Os 700 ingressos tinham de ser retirados a partir das 11h. Na plateia, se espalham muitos “devotos” de Guimarães Rosa, que se reúnem em São Paulo para rodas de leitura e vão todos os anos a Cordisburgo para a chamada Semana Roseana, dedicada à obra do escritor.

Mia fala da popularidade de Jorge Amado e conta que Guimarães Rosa é um de seus mestres e referência para outros escritores africanos. Iniciou-se com uma “fotocópia” do conto A Terceira Margem do Rio. Depois, entregou alguma dificuldade ao começar a ler Grande Sertão: Veredas, lançado em 1956, quando Brasília começou a ser construída, conforme lembrou o moçambicano.

“Posso dizer que foi na prosa de Guimarães que encontrei o retrato mais fiel deste país”, afirmou. “Rosa me volta a ensinar que aquela minha cidade não era apenas um lugar, era uma entidade viva que me tinha contado histórias. Como o sertão de Rosa, a minha cidade é mais da palavra do que da terra, e os nossos lugares de afeto são sempre mais da linguagem do que da geografia.” Foi também o escritor mineiro que mostrou a possibilidade de diálogo entre os diferentes, lembrou, destacando o uso da cultura urbana com a cultura oral sertaneja.

No final, Mia Couto faz novas referências políticas, citando morte de líderes populares, invasão de terras indígenas e abusos “que agora têm novos mandantes”. Ele lembra ainda da ação de soldados do Exército no Rio de Janeiro, domingo (7), que resultou na morte do músico Evaldo Rosa. Segundo o escritor, disparar 80 tiros contra uma família inocente “pode ser uma manifestação de uma outra lei que se quer fazer à margem de toda a lei”.

 

Leia o texto de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, de 2018:

O Brasil nasceu de um passado de escravatura, violência racial e genocídio. Essas marcas estão ainda vivas. Apesar de tudo, o Brasil é um lugar de afetos profundos e de integração daquilo que parece estranho e diverso. Durante anos o Brasil foi, para nós, uma escola de vivência e de sensibilidades.
No Brasil recolhemos vozes que, afinal, eram as nossas. No Brasil fizemos eternos amigos e no Brasil encontramos, enfim, a nossa segunda pátria. O Brasil e os brasileiros inspiraram profundamente a nossa escrita, não existem palavras para dizer o quanto somos devedores do universo criativo da grande nação brasileira.
Não fomos apenas nós que encontramos no Brasil essa fonte de ensinamento. Angolanos e moçambicanos buscam no Brasil essa luz de quem há mais tempo faz seguir em frente.
É com grande temor que vemos que esse Brasil pode estar em risco de desaparecer. A tolerância está sendo substituída pelo ódio, o gosto de escutar o outro e o desejo de integrar a diferença parecem viver os seus últimos dias. Temos a crença de que nenhum pretenso salvador da pátria substitui o exercício da democracia e das instituições brasileiras. Estamos certos de que, como diz a canção, o Brasil reconhece a queda, se levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.
Seguimos atentos, apoiando a liberdade, o amor pela diversidade, o respeito pelo outro. Estamos com o Brasil que aprendemos a amar e que não queremos perder.
Não ao ódio, sim à democracia!
Sim à democracia, não ao ódio!

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