Tantos mares

Brasileiros cantam cravos portugueses nos 45 anos da revolução

Na véspera do aniversário da revolução que acabou com décadas de regime autoritário, evento em São Paulo lembra obras 'radicais' dos anos 1970

CC0 wikimedia commons

São Paulo – Às 20h em ponto, os primeiros versos fazem silenciar o público. A atriz Mariana Mayor recita a Cantiga sem Maneiras:

Às vezes,
me ponho a pensar
na vida das trabalhadeiras,
e nas canseiras
com que ganhamos a fome e o pão

(…)

Às vezes,
cheguei a acreditar
que a nova democracia
acabaria
com o fascismo e a exploração

O autor da composição, o português José Mario Branco, nascido na cidade do Porto, estava para completar 32 anos quando veio a chamada Revolução dos Cravos, que nesta quinta-feira (25) completa 45 anos. Ontem à noite, o músico brasileiro Paulo Torres, o Paulinho Tó – que, por sinal, tem 32 anos – reuniu clássicos daquele período, obras dos “cantores de intervenção”, que aqui seriam chamados “de protesto”: além de Branco, Zeca Afonso e Fausto Bordalo Dias, ou simplesmente Fausto – que também ontem à noite cantou na Praça do Comércio, região central de Lisboa, em celebração do aniversário da revolução que pôs fim a quatro décadas de autoritarismo. O show de Fausto integra uma série de atividades organizadas durante este mês.

Batizado de Cantos da Revolução dos Cravos, o evento dirigido por Paulinho Tó foi realizado no Centro Universitário Maria Antônia, na rua de mesmo nome que sempre será lembrada por conflitos entre estudantes em 1968, na ditadura brasileira. Além das obras dos autores portugueses (confira a relação ao final do texto), obras do próprio cantor paulista (De cara no asfalto, Black Bloc, Eu vou e Maré), uma pérola de Gilberto Gil e Capinam (Viramundo, composta em 1967) e a esperada Tanto Mar, de Chico Buarque, na versão censurada pelo regime em 1974 e na liberada em 1978, já com algum desalento pelos rumos do movimento.

Já murcharam tua festa, pá 
Mas certamente 
Esqueceram uma semente nalgum canto de jardim

“É um material incrível e muito pouco conhecido no Brasil”, diz Paulinho, que divide o palco com os músicos Camila Silva e André Bedurê, as atrizes Sara Mello Neiva, Érika Rocha e Mariana Mayor, que atua e também faz a direção cênica. A maioria é bastante jovem. Apenas André tem mais de 50 – nasceu justamente em 1964. Entre as músicas, são lidos e dramatizados trechos de peças teatrais e depoimentos. O cantor conta que o grupo chegou a pensar se era o caso de apresentar essas canções, “radicais”, no atual momento. “A gente deveria fazer isso justamente para olhar para a história.”

Ele teve contato recente com as composições identificadas com o período anterior e posterior à Revolução dos Cravos. Passou alguns meses em Portugal, acompanhando sua companheira, Mariana, que ganhara uma bolsa de estudos. E foi sendo apresentado a esses autores. No caso de Branco e de Fausto, apresentado inclusive pessoalmente.

Depois de quatro músicas dos autores portugueses, Paulinho Tó canta uma composição própria, do álbum lançado em 2016. De cara no asfalto também traz uma crítica direta, e poderia ter sido composta nos dias atuais. 

Alguém caiu
De cara no asfalto
Caiu e ficou
Eu vi lá do alto

(…)

Podia ter sido um raio
Enfarto, tifo, o caralho
Mas foi bala, mano, bala
Foi bala de homem fardado

A obra seguinte é Mudam-se os Tempos, de Branco, composta no exílio, segundo Paulinho.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades

“Uma coisa muito bonita desse repertório é esse componente de utopia”, diz Paulinho Tó, antes de interpretar Por este Rio Acima, de Fausto, para em seguida apresentar os “utopistas” Gil e Capinam em sua Viramundo.

Mas inda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão 

A última canção da noite, antes do bis, não poderia ser outra: Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso, tornou-se um “hino” da revolução de 1974. Grande parte do público acompanha. Na repetição de Tanto Mar, a pedidos, a plateia canta com entusiasmo e bate palmas.

“Eles trouxeram as canções populares e deram outra roupagem, mais moderna, para o momento”, comenta Paulinho já depois da apresentação. Ele diz que pretende gravar esse repertório.

O compositor observa que muito daquele momento de resistência musical aconteceu em contraposição ao fado, o conhecido gênero português, patrimônio imaterial da humanidade desde 2011, que naquele período, nos anos 1970, estava, corretamente ou não, identificado com o salazarismo. Gerações posteriores de alguma maneira reconciliaram-se com o gênero, formando uma nova safra de intérpretes. Mas ontem, na Maria Antônia e na Praça do Comércio, o momento era de lembrar canções que representaram o inconformismo e a utopia.

 

Músicas cantadas ontem: 

Cantiga sem Maneiras, José Mario Branco

Ajuste de Contas, Fausto

O Varredor, Fausto

Os Vampiros, Zeca Afonso

Mudam-se os Tempos, José Mario Branco

Maio Maduro Maio, Zeca Afonso

Por este Rio Acima, Fausto

Canto para Letrado, Fausto

Grândola, Vila Morena, Zeca Afonso

 

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