Carinhoso

Uma flauta para restaurar. O dono era Pixinguinha

Músico se emociona ao trabalhar com instrumento que pertenceu a um dos gênios da canção brasileira, cujo acervo está no Instituto Moreira Salles

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Pixinguinha: vasta obra inclui o choro ‘Um a Zero’, marco da história esportiva brasileira, prestes a completar 100 anos

São Paulo – No começo do ano, Franklin Correa, mais conhecido como Franklin da Flauta, estava em sua oficina com a responsabilidade de restaurar um instrumento. A tarefa não era incomum para um profissional com larga experiência, mas tornou-se especial pelo antigo dono daquela flauta: Alfredo da Rocha Vianna Filho, que o público se acostumou a chamar de Pixinguinha.

Sobre ele, o pesquisador Ary Vasconcelos comentou certa vez: “Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas, se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido. Escreva depressa: Pixinguinha“. Muitos anos depois, instigado por um jornalista, Ary reforçou a frase. “Eu assinaria isso de novo. Se há um músico brasileiro, é Pixinguinha. E era um homem simples, sem banca.”

O trabalho de Franklin foi para o Instituto Moreira Salles (IMS), que preserva o arquivo pessoal de Pixinguinha desde 2000. São documentos, troféus, recortes de jornal, fotos, um inestimável acervo de mil conjuntos de partituras, roupas… E a flauta, uma L. Billoro italiana do início do século 20, como ele observa. “Honrado e emocionado”, diz o músico, sobre a obra de restauro, que durou aproximadamente dois meses e meio.

“A parte mais difícil foi escolher o que mantinha e o que reparava, pra não perder características históricas importantes e recuperar a funcionalidade”, conta Franklin. “Os cuidados especiais foram decorrentes de desgastes e reparos mal feitos – não havia recursos como hoje.”

Perto de completar 70 anos, Franklin começou a tocar em 1963. Profissionalmente, dois anos depois. “Comecei no jazz, minha referência era, é e sempre será Eric Dolphy”, diz, citando um dos grandes nomes da música norte-americana, que morreu em 1964, com apenas 36 anos. O flautista brasileiro lembra que começou a tocar choro “pra valer” aos 30 anos. “Aí, Pixinguinha foi, é e será sempre ‘a referência’.”

Ele recorda de uma apresentação de Baden Powell no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, em 1968, citando a mais conhecida obra de Pixinguinha. “Carinhoso foi o choro que escolhi, a pedido do Baden, para solar no show dele. Era a música que eu ouvia desde que tinha nascido. E é o verdadeiro Hino Nacional, né? Todas as gerações sabem de cor.”

Franklin da Flauta
Flauta de Pixinguinha: últimas gravações foram feitas nos anos 1940, mas ele não parou de tocar

Nascido em 1897 no Rio, Pixinguinha tem obra vasta. Outra de suas canções clássicas, prestes a completar 100 anos, é um marco, inclusive, da história esportiva do Brasil: o choro Um a Zero, composto após a conquista do primeiro título sul-americano de futebol, depois de uma suada vitória contra o Uruguai, com um gol de Friedenreich, o Pelé da primeira metade do século passado. No acervo do IMS, encontram-se nada menos que 46 gravações dessa composição.

Foi também em 1919, em abril, que os Oito Batutas tocaram pela primeira vez. O conjunto foi organizado por Pixinguinha, a convite do gerente do tradicional Cine Palais, para se apresentar na sala de espera, concorrendo com outra sala, quando os cinemas incluíam música ao vivo em sua programação. Em 1997, centenário de nascimento do compositor, o também músico Paulo Moura lançou um disco em homenagem ao grupo. Para ele, com Pixinguinha – que conheceu no final dos anos 1940 – “nascia o som da alma brasileira”.

 Arranjador

“Uma das coisas que vamos tentar mostrar no site é que Pixinguinha já nasceu com alma, talento e criatividade de arranjador. Ele foi arranjador a vida inteira, em todos os grupos dos quais participou ou dirigiu, e isso é muito forte na carreira dele, quase tão forte quanto o trabalho de compositor, que é magnífico”, diz na página do IMS a diretora musical Bia Paes Leme. “Infelizmente os arranjos que ele fez para discos não existem, porque ninguém guardava nada. Música gravada é partitura jogada fora, ainda hoje. A sorte é que as apresentações eram feitas para o rádio, ao vivo, e durante cinco anos ele escreveu cerca de 300 arranjos para esse programa. Como os ouvintes pediam para repetir algumas músicas, ele guardava tudo, ainda bem.”

O site abrigado na página do IMS é www.pixinguinha.com.br.

Em 7 de junho de 1972, Pixinguinha sofreu um duro golpe, com a morte de sua companheira, Betty. Enquanto ela estava internada, o próprio músico sofreu um princípio de infarto e ficou no mesmo hospital. Para não deixar Betty preocupada, ao visitá-la trocava o pijama por um terno. 

Dois sábados antes do carnaval de 1973, em 17 de fevereiro, Pixinguinha pôs o terno para ir ao batizado do filho de um amigo. Levava de presente uma partitura manuscrita de Carinhoso. Morreu no altar, vítima de infarto, na igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Perto dali, a tradicional Banda de Ipanema saía para um desfile pré-carnavalesco, até que a notícia se espalha, e seus integrantes fazem uma homenagem ao músico que acabava de partir.

Segundo Franklin, Chorei e Os Cinco Companheiros foram as duas últimas faixas gravadas em flauta, em 1940, por Pixinguinha, que posteriormente passou a usar mais o saxofone. “Mas ele deve tê-la usado, e muito, não profissionalmente, talvez até a década de 1960.”