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Para produtores e diretores negros, fazer cinema no Brasil ainda é ‘uma guerra’

Exemplo do problema é personificado em Viviane Ferreira, segunda cineasta negra a produzir um longa metragem no Brasil. 'A gente não tem referência', disse, no programa 'Entre Vistas', da TVT

Reprodução/TVT

Viviane Ferreira afirma que negros têm mais dificuldades em acessar recursos para fazer cinema

São Paulo – Um debate profundo sobre a realidade da produção audiovisual feita por negros no Brasil. Assim foi a participação da cineasta Viviane Ferreira no programaEntre Vistas, da TVT, na última terça-feira (7), apresentado pelo jornalista Juca Kfouri. Diretora dos documentários Dê sua ideia, debata, Festa da Mãe Negra e Marcha Noturna e Peregrinação, Viviane trouxe à tona mais uma faceta do racismo existente na sociedade brasileira: a dificuldade de pessoas negras fazerem cinema.

Seu próprio caso é exemplo desta realidade. Ela é apenas a segunda diretora negra a filmar um longa metragem. Ainda em fase de pré-produção, o filme Um dia com Jerusa será uma espécie de continuação de seu curta O dia de Jerusa, obra que participou do festival de Cannes, em 2014. Antes dela, Adélia Sampaio, em 1983, dirigiu Amor Maldito.

Na entrevista, Viviane Ferreira explica que a dificuldade começa no momento de afirmar ao país que o povo negro tem direito a contar sua própria história, de dialogar com “os nossos” de modo tranquilo e leve. “Todo negro que se lança na aventura de fazer cinema tem que vivenciar a disposição à guerra para continuar existindo”, afirma. Num país cuja maioria da população é negra, a situação adquire contornos mais dramáticos.

A diretora baiana acredita que, ao não se ver representada na produção cinematográfica, essa população negra perde o direito de sonhar e projetar o seu futuro. “A gente não tem referência. Se não construo na ficção personagens negros que se lançam ao desafio de ser presidente, não posso dizer ao menino negro que ele pode se enxergar como opção para um novo rumo do país.”

Um dos temas centrais do programa foi o obstáculo que diretores e produtores negros enfrentam para obter recursos financeiros para produzir cinema. Como exemplo simples dos entraves, Viviane Ferreira explica que, para conseguir patrocínio, os formulários de projetos e editais costumam requerer as referências do diretor. Neste ponto, a situação complica. “Se não é Fellini ou Bertolucci, é considerado como não entendedora de cinema. Porque Zózimo Bulbul e Adélia Sampaio não existem para quem legitima a existência cinematográfica do país”, critica.

Nascido no Rio de Janeiro em 1937 e morto em 2013, o ator Zózimo atuou em mais de 30 filmes, incluindo Cinco vezes Favela, marco do Cinema Novo, e Terra em Transe, clássico de Glauber Rocha. Como diretor, realizou três curtas, cinco médias e um longa metragem, todo com foco na cultura afro.

Segundo Viviane, essa ausência de “herança material” reconhecida pelas estruturas que comandam o cinema brasileiro emperra a disputa do recurso financeiro disponível. “Não há um conjunto de políticas e a compreensão que permita a pessoas negras superarem as dificuldades de acesso aos recursos para fazer cinema.”

Em certo momento, Juca Kfouri perguntou se, alguma vez, a diretora ouviu alguém lhe sugerir a presença de atores brancos num filme pensado para ser feito por negros. De acordo com a diretora, também presidenta da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), tal sugestão é bem comum.

“Não tenho nenhum desconforto em dizer que não cabe uma pessoa branca fazer cinema negro. É conflitante, porque estamos falando de uma experiência que nenhum corpo branco vai conseguir traduzir, porque não lhe pertence. Todo mundo sabe que um personagem que não é construído sem a sua devida complexidade não é um bom personagem”, justifica Viviane Ferreira, ciente da polêmica que envolve o tema. Entretanto, ressaltou defender a existência de “pontes”, desde que construídas com respeito à existência do outro.    

Cultura líquida

Criada em 2016, a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) tem como um dos seus principais objetivos desenvolver ações afirmativas junto ao setor público e privado envolvido com o audiovisual no país. Para a diretora, que deixou Salvador aos 19 anos e veio para São Paulo estudar cinema (hoje ela tem 33 anos), as ações afirmativas devem ir além do modelo de cota racial.

“Ação afirmativa é algo sistêmico e precisamos enfrentar esse debate”, diz, incluindo no conceito as escolhas para os cargos na Ancine, no Conselho Superior de Cinema, no Comitê Gestor do Fundo Setorial, além das secretarias de Cultura.

A burocracia para obter recursos de editais também agitou o programa Entre Vistas, que contou com a participação da cineasta Tata Amaral, e de Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Tata, assim como Viviane Ferreira, ponderaram que o nível de exigência burocrática acaba por excluir artistas e produtores que não têm uma grande estrutura por trás.

”Construir um filme não é tão objetivo como construir um prédio. Não dá para se ancorar num pensamento jurídico e econômico que exija, deste campo, a concretude que nos será impossível, porque a cultura é fluida. E não estou defendendo que não existam formas e regulamentos”, argumentou a diretora de O dia de Jerusa.

Para ela, a Ancine, responsável por gerir o maior volume de recursos do setor audiovisual, é extremamente conservadora e resistente às mudanças, pois entende um filme como um produto e não como uma “cultura fluida”. “A quem é interessante dizer que as mulheres negras não filmam neste país?”, questionou.  

Assista ao programa na íntegra:

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