'Onde está você?'

João Gilberto, desaparecido, mas presente no olhar de um estrangeiro

Filme sobre um dos 'pais' da Bossa Nova é inspirado em livro que narrou busca de um alemão para encontrar o intérprete em algum lugar do Rio de Janeiro. Ou nele mesmo

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Do LP ‘Chega de Saudade’, divisor de águas na música brasileira, a um repertório de polêmicas, nos palcos e na vida

São Paulo – Onde está você, João Gilberto? é um filme sobre a obsessão, ou sobre um mito cercado de lendas, a história de uma história. De um jornalista alemão, Marc Fischer, que anos atrás fez uma peregrinação pelo Rio de Janeiro e foi até Diamantina (MG) para saber mais sobre João Gilberto, o intérprete por excelência da Bossa Nova.

Fischer tinha um plano: ouvir João tocar Ho-ba-la-lá, uma de suas raras composições, gravada em 10 de novembro de 1958. O filme, cujo pré-lançamento ocorreu segunda (13) à noite, conta essa busca refazendo a busca: o próprio diretor do longa, o franco-suíço Georges Gachot, reconstrói passos de Fischer, fala com as mesmas pessoas. E também vai atrás de João.

Para conseguir chegar até o cantor, Marc Fischer contou com a ajuda de uma produtora carioca, Raquel Balassiano, que no livro é apresentada como Watson. Ele, claro, é Sherlock. A obra tem mesmo algo de detetivesco.

A dupla formada no Rio vai atrás de informações que levem até João Gilberto, custe o que custar. Lançado em 2011 (Companhia das Letras), o livro, a propósito, chama-se Ho-ba-la-lá. Naquele mesmo ano, em 2 de abril, Fischer suicidou-se em Berlim, três semanas antes de completar 41 anos.

No livro, Fischer se encontrou com várias pessoas ligadas a João Gilberto. Como a cantora Miúcha (ex-mulher, com quem ela teve a também cantora Bebel Gilberto), os músicos João Donato, Marcos Valle – duas das passagens mais divertidas da obra – e Roberto Menescal, com o produtor Otávio Terceiro, em passagens engraçadas e misteriosas, a jornalista Cláudia Faissol, com quem o intérprete teve uma filha. No filme, Gachot também sai pelo Rio e conversa com alguns deles novamente.

Marcos Valle, por exemplo, conta a mesma história sobre um telefonema de João, que nunca conheceu pessoalmente, mas muda o cenário (almoço no livro, festa no filme). O diretor teve acesso a material coletado pelo jornalista alemão, cedido pela família. E iniciou as filmagens, que duraram dois anos.

Além de artistas, falou com gente como o cozinheiro que durante 10 anos mandou refeições para ele – pedia sempre a mesma coisa, steak no sal grosso, mas passava uma hora no telefone perguntando sobre outros pratos. Ou o cabeleireiro que corta o cabelo do artista, que, ao saber de sua procedência, cantou para ele Eu vim da Bahia. João também é baiano, mas foi jovem para o Rio.

O longa será lançado no próximo dia 23 em circuito comercial. Saí na Suíça em 6 de setembro, na Alemanha e na Áustria em novembro e no Japão em 2019. Ontem à noite, Gachot e Raquel “Watson” conversaram com o público. Na plateia que lotou uma das salas do Reserva Cultural, estavam, entre outros, o pesquisador Zuza Homem de Mello, autor de livro sobre João Gilberto e de outras obras essenciais sobre música brasileira, e a cantora Mariana de Moraes, neta de Vinícius.

Ficção

Gachot, 55 anos, tem familiaridade com a música brasileira. Fez documentários sobre Maria Bethânia (2005), Nana Caymmi (2010) e o samba, conduzido por Martinho da Vila (2014). Onde está você, João Gilberto? não se incluí nessa classificação.

“É um filme ficcional”, diz o diretor. “Os dois (Fischer e Gachot) tinham a mesma certeza de que iriam encontrar João”, afirma Raquel, que conheceu o alemão dois anos antes do livro, quando ele veio ao Brasil preparar uma reportagem sobre “a verdadeira Tropa de Elite”, a respeito do Bope do Rio, tema de longa-metragem de grande repercussão.

Na época, ele manifestou vontade de trabalhar com algo relacionado à música brasileira e avisou que iria voltar. Ela duvidou, mas tempos depois se veria transformada em “investigadora” para assuntos relacionados a João Gilberto.

Gachot conta que foi a primeira vez em que aparece em um filme. “Isso é difícil para um diretor.” Ele segue boa parte dos passos de Fischer, anos antes. “Eu me identifiquei tanto com o personagem de Marc Fischer que fiquei com medo de ir mais à frente”, diz. No livro, e no filme, há quem fale de uma “maldição” envolvendo o artista, que poderia atingir as pessoas que tentam se aproximar.

João não aparece, está claro, mas é onipresente. Durante os 107 minutos do longa, são exibidos trechos de vídeos em que ele aparece cantando Desafinado, Menino do Rio, Chega de Saudade, faixa da dupla Tom Jobim-Vinícius de Moraes gravada por João em julho de 1958. O LP homônimo, divisor de águas da música brasileira, sairia no ano seguinte.

Assim como Fischer, o diretor vai até Diamantina, onde, nos anos 1950, João Gilberto morou durante alguns meses com a irmã – e, dentro de um pequeno banheiro, teria “descoberto” a sonoridade que deu fama a ele e pôs a Bossa Nova no cenário internacional a partir do mítico concerto do Carnegie Hall, em Nova York, em 1962. Donato conta que ele gostava de ensaiar no banheiro, por causa da sonoridade.

Letra, melodia, ritmo. “Ele (João Gilberto) está sempre jogando com esses três elementos”, comenta Gachot. “É por isso que cada interpretação dele é diferente.”

Com 87 anos, completados em junho, João Gilberto Prado Pereira de Oliveira não é visto há anos. O artista tem sido objeto de notícias desencontradas na imprensa, sobre sua saúde e possíveis divergências familiares, envolvido em disputas judiciais. “Tem boatos de que ele está interditado, com problemas de saúde muito graves. Mas isso não importa. A música dele não vai desaparecer”, disse um espectador durante a conversa de ontem.

O final do filme, com Gachot e Otávio Terceiro no Copacabana Palace, deixou a plateia curiosa. Afinal, é mesmo João Gilberto atrás de uma porta, cantando Ho-ba-la-lá? “Para mim, ele estava lá”, diz o diretor, mantendo o mistério. “Para a gente, ele estava ali, atrás daquela porta”, completa Raquel.