Preconceito

Em livro, Nei Lopes une ‘sociedades marcadas pelo racismo’

Compositor e pesquisador carioca lança 'O preto que falava iídiche', que narra um encontro entre comunidades negra e judaica na Praça Onze. Em lançamento, ele comentou polêmica sobre Fabiana Cozza

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Aos 76 anos, autor carioca já lançou 35 livros e assina alguns sambas que se tornaram clássicos

São Paulo – O compositor, escritor e pesquisador Nei Lopes, com seu novo livro, O preto que falava iídiche ,(Record, 255 págs.), lançado nesta quinta-feira (7) em São Paulo, busca fazer “um paralelo entre duas sociedades marcadas pelo racismo”. É a história de Nozinho na Praça Onze carioca, um lugar marcado pela presença de várias comunidades, não só a negra, como lembra Nei, autor de várias obras dedicadas à cultura africana e à música, como o Dicionário da história social do samba

Ele entrou no universo do samba “a contragosto da minha família”, recorda. “Minha mãe dizia: eles lá e nós aqui”, conta Nei Lopes, 76 anos completados em maio, criado em Irajá, área suburbana da zona norte do Rio de Janeiro, onde o pai comprou um terreno em 1927 – Nei foi o último de 13 filhos. “Hoje, só tem eu na prole”. Pequeno, conheceu uma senhora que era “banqueteira”, como se dizia antigamente, trabalhando para casas abastadas do Rio, e ligada à Portela. “Esse ambiente me fascinou muito cedo”, diz Nei, que anos depois se aproximaria do Salgueiro, participando pela primeira vez do carnaval em 1963, justamente quando a escola de samba da Tijuca, também na zona norte, provocou uma pequena revolução no desfile com o enredo Xica da Silva.

Um ano antes, ele entrou na Faculdade Nacional de Direito. “Eu achava que queria ser advogado. Tanto que fui, por um período curto”, lembra, lamentando situações parecidas com as atuais, como morosidade e parcialidade. “Senti isso como profissional”, afirma. Nei passou a compor jingles para então virar compositor. Em parceria com Wilson Moreira, assina clássicos como Senhora liberdade (gravada por Zezé Motta) Goiabada Cascão (Beth Carvalho) e Gostoso veneno (Alcione), entre outros. 

“Os primeiros livros de ficção que eu publiquei tinham o universo do samba como ambiente central”, diz Nei Lopes, citando Caros crioulos e Vinte contos e uns trocados (Deste, ele diz: “Gosto muito, muito mesmo”) e falando da “pungência” e dos dramas relacionados ao tema. “Sei de casos que aconteceram que às vezes penso que eu sonhei.”

Histórias diversas

Nesta nova obra – já são 35 –, o samba “não está presente, mas ele se anuncia”, diz o autor. A Praça Onze é conhecida como um berço do samba carioca. Lá, “havia um rapazinho que trabalhava para um pequeno industrial da comunidade judaica, que não conseguia falar uma palavra de português”. 

“Do relacionamento apaixonado, fortuito e proibido do preto inteligentíssimo Nozinho, que falava até iídiche, com a bela e branca judia Rachel, ele (Nei) nos conduz do ambiente de uma Praça Onze que testemunhava a invenção do samba a uma África que viu desde os judeus se libertarem da escravidão no Egito até a escravização dos povos negros e o mítico amor da rainha de Sabá e de Salomão, antecipando, na Etiópia, Rachel e Nozinho no Rio”, escreve, na introdução, o jornalista Hugo Sukman.

“Evidentemente que são duas histórias muito diversas”, observa Nei Lopes, referindo-se aos povos negro e judaico. Para ele, “a autoestima do povo afrodescendente é mínima, por conta de uma abolição irresponsável, enquanto a comunidade judaica tem outra percepção de si mesma”, mantendo seus costumes. Nei aponta uma desunião entre os negros “que já veio da época (da escravidão) e foi insuflada pelos europeus”.

Mesmo assim, ele acredita que até os anos 1980, principalmente, as entidades do movimento negro conseguiram “certa resposta” às suas reivindicações. “A gente está num momento em que tudo isso está retrocedendo de forma violenta”, diz. Nei afirma ainda já ter acredito no pan-africanismo: “As circunstâncias internacionais são todas desfavoráveis”.

Durante conversa de lançamento do livro, na Livraria da Vila, o pesquisador comentou o recente episódio envolvendo a cantora Fabiana Cozza, que desistiu de interpretar dona Ivone Lara em um musical após ataques em redes sociais por ser considerada “branca demais” para o papel, em polêmica envolvendo o chamado colorismo. “Quando se chegou a uma classificação abrangente do ponto de vista político, os pretos e os pardos são os negros, para mim foi um avanço importante. Acho que foi um tiro no pé, falta de sentido estratégico.”

Sobre esse caso, ele escreveu artigo para a revista Época, publicado na edição atual, defendendo Fabiana.

“Em relação a sua personificação de Dona Ivone Lara no teatro, ouso dizer que não sei, ainda, de cantora brasileira mais capacitada para tal. Não só pela absoluta identificação artística com a personagem, quanto, de certa forma, pelo chamado physique du rôle — a aparência física apropriada para o papel.

Mas a pretendida correção política dos tempos atuais entendeu, com alguma dose de razão, que não era bem assim. Pena! Perdeu o teatro, perdeu a música, e, lamentavelmente, ganharam aqueles que, hoje cada vez mais, fazem cair por terra todos os avanços sociais em favor do povo brasileiro que, em meu entender, foram conquistados da década de 1980 até aqui.”