Machadiano

Ousado, romance lança Capitu no centro da resolução do enigma policial

Com sua narrativa policial em 'O Legado de Capitu', sua nova obra, Flávio Aguiar dá ao casmurrento Bento Santiago um enigma a ser decifrado. E ao leitor, uma leitura rápida, voraz e difícil de largar

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No livro, Aguiar apresenta um rocambolesco mistério envolvendo crime, política e maçonaria. Só um especialista em Machado de Assis pode desvendar

Muitos são os que se voltaram e continuam se voltando a esta personagem e a seus famosos olhos de ressaca, bem como às questões cruciais envolvidas em Dom Casmurro, de que se destacam a suspeita de traição e o fato de a história ser contada por apenas um dos envolvidos, o Casmurro do título, recordando-se de sua juventude e de seu amor por Capitu. Como sabemos, é só através do olhar dele que conhecemos Maria Capitolina.

Em seu mais novo romance, O legado de Capitu (Boitempo/e-galáxia, 2017), o escritor Flávio Aguiar retoma a personagem de forma ousada e corajosa, com a segurança de quem tem um conhecimento verdadeiramente enciclopédico e sabe bem o que fazer com ele. Considero sua retomada ousada porque lança Capitu no centro da resolução do enigma de uma narrativa policial – o que, em princípio, nos colocaria para bem longe do romance machadiano. Mas só em princípio, já que o próprio romance de Aguiar nos traz uma chave importante nessa direção, ao mencionar o crítico norte-americano Peter Brooks e sua concepção de que toda boa narrativa traz, em verdade, uma história por debaixo daquela que aparentemente é contada, e de que, em consequência, uma das funções do leitor é desvelar essa história que está por baixo, encoberta.
 
A narrativa policial estaria assim no cerne da ficção, o que significa que até mesmo Dom Casmurro traz algo do gênero policial, e que nós como leitores somos desafiados a deslindar a história que estaria por detrás de tudo que Bentinho confessa em seu texto. O então casmurrento Bento Santiago procura inclusive, com sua narração, decifrar um enigma, mas tudo o que consegue é jogá-lo para nós, em virtude de sua incapacidade de decifrá-lo por completo e em definitivo, para alcançar a paz que desejaria para sua velhice.
 
E paz na velhice é tudo o que o protagonista do romance de Flávio Aguiar não deseja. Ao contrário, se em alguns momentos ele até se identifica ao velho Santiago, sabe que não é casmurro e que não quer reconstruir sua juventude para ocupar o lugar de uma vida vazia, e isso muito embora tencione buscar, na atual Berlim do século XXI, a Berlim libertária dos anos 1970. Tudo o que ele vai ter, contudo, vai ser o oposto da rememoração incessante de seu passado, pois repentinamente se vê mergulhado num presente repleto de ação e perigos, em que sua vida é colocada em risco. Ele é lançado (ou, melhor dizendo, deixa-se ser lançado) como isca no centro de uma investigação cuja finalidade é desbaratar uma quadrilha internacional que mexe com tudo que é ruim: tráfico de drogas e de pessoas, evasão fiscal, crimes disso e daquilo e que, para completar, é envolvida com neonazistas e provavelmente com velhos sobreviventes do nazismo.
 
A quadrilha, procurada por uma equipe policial de vários países, tem um braço que age no Brasil, através do deputado federal Júlio Cina. Por intermédio desse braço brasileiro, o autor consegue levar a narrativa, que já articulava o presente histórico alemão com seu passado ainda ardente e complexo, a articular-se com o presente histórico brasileiro – contemporâneo em sentido estrito, tendo em vista que O legado de Capitu, que foi lançado no início deste nosso ano de 2017, se passa na sequência da reeleição de Dilma, quando a oposição questionava a validade da eleição e começava a arreganhar seus dentes. É a esse cenário que somos transportados também, o que não deixa de fazer com que o livro, ao falar de nosso passado recentíssimo, fale muito do que estamos vivendo agora, já depois da presidenta deposta.
 
Mas e onde entra Capitu? Entra porque em meio a tudo isso há um mistério a se decifrar, de cuja solução depende a vida de uma pessoa, um ex-aluno do professor Edmundo Wolf – que é o nome de nosso protagonista. Esse aluno, Arruda, é um jornalista contratado pelo senador Reginaldo Ribeiro com a missão de decifrar duas mortes ligadas à família do senador. Primeiro a da mãe dele, muitos anos antes do presente da narrativa, uma morte violenta e nunca solucionada. Pouco tempo depois do crime, foi a vez do pai dele se suicidar, num suicídio nunca muito bem compreendido. O senador gostaria de ver finalmente explicadas essas mortes, especialmente porque estava sendo ameaçado pelo deputado Cina – membro do seu partido, mas de tendência rival –, que o chantageava com supostas revelações que manchariam a reputação do senador e impediriam seus planos de se eleger vice-presidente ou mesmo presidente do País.
 
O jornalista Arruda, ex-aluno de Wolf, fora contratado com essa tarefa de investigação, tendo partido para a Porto Alegre natal dos dois políticos. Mas, ao voltar para Brasília, simplesmente desaparecera, pouco depois de haver combinado por telefone uma reunião com o senador. As suspeitas recaíam todas sobre o deputado, mas ninguém sabia onde o jornalista estaria, nem mesmo se ele ainda estaria vivo. Não era possível acionar nenhuma das polícias, por conta das sabidas infiltrações existentes nelas, divididas em várias tendências e facções e seus correspondentes múltiplos interesses.
 
Quem foi então recrutado para decifrar o enigma? O professor Wolf. Afinal, Arruda deixou um recado secreto, antes de desaparecer, direcionado a seu antigo professor. Um recado que envolve Capitu, ou o que Arruda chama de “O legado de Capitu”. É da solução dessa charada – e Arruda trabalha como charadista para vários jornais internacionais – que depende a vida de seu ex-aluno, bem como a descoberta do mistério envolvido naquelas mortes, além da desmontagem e prisão da quadrilha internacional, que possuía um de seus líderes máximos morando no prédio do professor, em Berlim.
 
O professor Wolf, portanto, está no centro dos episódios, sendo de se destacar que, construindo-se como um romance policial, O legado de Capitu não criou um tipo de personagem que é tão usual nessa ficção, o detetive ou investigador. O que temos é um professor universitário especialista em romances policiais, já aposentado, e que, com seus conhecimentos literários, pode solucionar o enigma e salvar a vida de um antigo aluno. Essa escolha de Flávio me pareceu não só original, como perfeita. Afinal, o que seria melhor, ao escrever um romance policial que dialoga com uma das maiores obras de nossa literatura, e com uma de suas personagens mais enigmáticas, do que um personagem que é um crítico literário, ou seja, um especialista em literatura, e que terá de resolver tudo com seus conhecimentos sobre a matéria? Jogada de mestre.
 
Claro que Wolf terá ajuda. E essa ajuda parte dos lugares mais inesperados também. A começar pela figura que lhe traz todo o problema: Aroeira, um antigo policial que jogou bola com Wolf na juventude de ambos, em Porto Alegre, sob a batuta de outro professor de literatura, o Paco, militante das esquerdas como quase todos que se reuniam em volta da bola no campinho atrás do colégio Júlio de Castilhos. Mas, misteriosamente, Paco havia aceitado a presença de Aroeira e de vários outros policias para jogar no time contrário, e isso em tempos de ditadura militar. Agora, Aroeira ressurge dizendo-se agente da Abin, nossa agência de inteligência que sucedeu ao SNI. Ou seja, apesar desse agente ter o nome de uma canção de Geraldo Vandré que fala de luta do povo contra os patrões, Aroeira esteve desde sempre do outro lado. Mas será que os lados são tão nítidos assim?
 
Mais do que a ajuda de Aroeira, que é quem lhe põe na roda da confusão, Wolf terá o auxílio da polícia alemã (também com suas várias rixas internas, originadas ainda da antiga divisão entre Alemanha Ocidental e Oriental) e de mais várias polícias e órgãos de inteligência internacionais – um auxílio que às vezes semelha ser justamente o oposto disso. Mas, dentre esses homens todos, uma boa surpresa para Wolf: uma linda mulher, Zuleika, que se apaixona por ele (e vice-versa) e que não era exatamente membro de nenhum daqueles serviços secretos, mas apenas uma tradutora e ex-professora de português para estrangeiros. Alguém, em consequência, do universo da linguagem.
 
Wolf terá ainda uma ajuda fundamental, vinda de um grande amigo, Tarciso, o poeta e tradutor que não optou pela carreira acadêmica e que escolheu quase nunca sair de sua Porto Alegre, em oposição ao viajante Wolf. O professor o compara ao irmão mais velho de Sherlock Holmes, que era quem o famoso detetive considerava como o gênio verdadeiro da família, Mycroft Holmes. É não só nos conhecimentos de literatura de Tarciso que Wolf confia, mas sobretudo em sua capacidade de compreensão e interpretação.
 
Temos ainda no romance outro ingrediente: o protagonista não tem o nome de seu autor, mas tem seu sobrenome do meio, o incomum Wolf. E o prenome do protagonista é nada mais que Edmundo, como o de Edmond Dantès, o famoso conde de Monte Cristo. E, como seu inspirador, vê-se no meio de aventuras por diversos territórios, passando por Berlim, São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Paris. Edmundo é de Porto Alegre, como Flávio, mora em Berlim, como Flávio, mas pela segunda vez, pois se exilou lá durante a ditadura, em contraposição a Flávio, que ficou no Brasil, ainda que, como seu criador, não tenha participado da luta armada. Diferentemente do escritor, porém, Edmundo era especialista em romances policiais.

No entanto tinha um colega na mesma universidade que Flávio lecionou por anos, a USP, e este colega sim era especializado em literatura brasileira como o autor. Seu nome? Flávio Aguiar. É apenas um personagem mencionado no romance, mas que compõe esse jogo de espelhos presente em O legado de Capitu, em que uma coisa espelha a outra sem que se consiga direito saber a resposta. Se é que ela há, ou se é que é possível chegar até ela. Em nossa realidade política, por exemplo, há alguma verdade definitiva? Há alguma resolução de nossos enigmas? Flávio fala de nosso destino como povo, como nação, interrogando, por meio de um intricado jogo de suspense e mistério, quem somos e como tudo é tão fluido em nossa realidade.
 
O romance se encerra (quase) como um happy end, como é parte da convenção do gênero policial, mas há um indício de enigma que não se resolve e que será retomado pelo autor, como dizem as suas palavras finais: “Continua no próximo romance”. Excelente para nós, que terminamos o livro querendo mesmo muito mais. Como boa narrativa policial que é, O legado de Capitu faz que não queiramos largar de suas páginas virtuais, lendo as suas três partes numa rapidez devoradora. E faz ainda que se instaure aquela espécie de segunda percepção diante da realidade que a boa ficção de mistério traz, aquela que faz que desconfiemos de nossa realidade, nos múltiplos sentidos dessa palavra, e sintamos certo receio de qualquer estalido leve na calada da noite. Confesso que em alguns momentos optei por acender as luzes de casa.
 
Marina Ruivo é doutora e mestre em Letras pela USP, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos da USP e autora de Geração armada: literatura e resistência em Angola e no Brasil (Alameda, 2015).

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