Orçamento

Bolsonaro pretende ‘matar’ direitos da Constituição por ‘asfixia econômica’

Com teto e sem piso, desvinculação total do orçamento proposta por Paulo Guedes deve reduzir drasticamente a aplicação de recursos em saúde e educação, aprofundando cortes do governo Temer

Jorge Hely/FramePhoto/Folhapress

Proposta de Bolsonaro de zerar o déficit em dois anos deve levar desequilíbrio a milhões de pessoas

São Paulo – Para acabar com o déficit no orçamento da União, além da venda de estatais e terrenos públicos, o principal economista do candidato a presidente Jair Bolsonaro (PSL), Paulo Guedes, defende a desvinculação total na aplicação de recursos federais, ideia conhecida como “Orçamento Base Zero”, conforme consta no seu programa de governo. De acordo com a proposta, a discussão sobre a alocação de recursos que um ministério vai usar deve começar do zero, e não com base no que foi gasto no ano anterior, como é feito hoje.

Na prática, trata-se de uma proposta que aprofunda a política de cortes aplicada durante o governo Temer – da chamada Ponte Para o Futuro – e deve representar a morte “por asfixia financeira” dos direitos sociais previstos na Constituição de 1988. O texto constitucional determina que saúde e educação, entre outros, são direitos do cidadão e dever do Estado.

“Significa acabar com o breve ciclo da cidadania social no Brasil, iniciado em 1988. É basicamente isso. Vão acabar com a cidadania por asfixia financeira. Há tempos as elites brasileiras dizem que com os direitos sociais de 1988, o país ficaria ingovernável. Depois passaram a dizer que as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento, o que é a mesma coisa”, analisa o professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) Eduardo Fagnani.

Segundo ele, as investidas contra os direitos sociais existem desde que a Constituição foi implementada. “É um projeto antigo. A elite brasileira – econômica, política e midiática – é antidemocrática e antissocial. Jamais aceitaram a Carta de 1988, um marco no processo civilizatório brasileiro, porque foi a primeira vez em 500 anos que o país passou a ter ao mesmo tempo direitos sociais, civis e políticos.”

Após o governo Temer instituir um “teto de gastos“, em 2017, os valores foram congelados, corrigidos a cada ano apenas pela inflação. Com Bolsonaro, “a ideia é transformar o orçamento numa geleia geral. O governo e os parlamentares vão poder utilizar os recursos onde desejarem”, diz o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) João Sicsú. Segundo ele, a desvinculação total vai acarretar na “redução dos serviços públicos pelo Estado e o direcionamento desses recursos para favorecimento de banqueiros, multinacionais, latifundiários e milionários de todo tipo.”

Para Sicsú, que foi diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2007 e 2011, a ideia é diminuir a prestação de serviços na saúde e na educação para abrir espaço à iniciativa privada. “O que pretendem é reduzir os recursos, enquanto a população vai continuar crescendo. Portanto, a quantidade de recursos por indivíduo nessas áreas vai cair drasticamente.  Alcança o objetivo deles (Bolsonaro, Guedes e equipe), que é o Estado deixar de prestar esse tipo de serviço. As pessoas não terão mais alternativa, a não ser não ter o serviço ou buscar no setor privado.”

Desequilíbrio

O professor da UFRJ destaca a relação proposta de desvinculação com a promessa de Guedes de zerar o déficit, estabelecido pelo governo Temer em R$ 159 bilhões em 2018, em apenas dois anos. A meta é tida como pouco crível por inúmeros economistas, mas Sicsú diz que, caso seja levado a cabo o fim da obrigatoriedade de gastos mínimos, os recursos da União ficariam livres para serem destinados ao pagamento da dívida pública. No plano de governo de Bolsonaro, consta que “não haverá mais dinheiro carimbado para pessoa, grupo político ou entidade com interesses especiais”, abrindo caminho para essa possibilidade.

“A base para o equilíbrio no orçamento tem que ser a dinamização da economia, e não o corte de gastos. Com cortes, a gente fica correndo sempre atrás do problema e nunca alcança. Corta o gasto, aumenta o desemprego, cai a arrecadação. Por outro lado, se tirar grande parte da população do orçamento, também dá certo”, ironiza Sicsú. “Basta deixar milhões de pessoas sem saúde e educação, e você equilibra o orçamento. Deixa essas pessoas completamente desequilibradas, mas o orçamento equilibra.”

Ele critica ainda a insistente metáfora utilizada pela mídia tradicional que compara as contas públicas com o orçamento doméstico, com o mantra de que não é possível gastar mais do que se arrecada, e portanto, o governo, assim como o pai de família, deveria executar cortes para ficar no azul. “O que ninguém diz é que nenhum pai de família deixa de alimentar os filhos para pagar juros do banco. O que o pai de família faz é deixar de pagar o banco.”