Falsa segurança

O incentivo ao uso de armas de fogo e o temor de uma escalada da violência

Respostas simplistas para o problema da segurança pública podem resultar em um fracasso perigoso, no qual as vítimas serão os mais pobres

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Possuir uma arma, muitas vezes significa para o cidadão civil a morte

Rio de Janeiro – O número de episódios de violência verbal ou física ocorridos durante a campanha eleitoral deste ano no Brasil supera todas as campanhas realizadas desde a redemocratização do país em 1989. Na véspera do segundo turno das eleições, parte da sociedade não esconde o temor de que compromissos assumidos por Jair Bolsonaro – como “dar uma arma a todo cidadão de bem” ou “deixar que fazendeiros usem armas para evitar ocupações de terra” – provoquem uma escalada da violência em caso de vitória do candidato do PSL à Presidência da República.

O temor se justifica pelo viés autoritário cada vez mais incorporado pelos partidários de Bolsonaro, o que já resultou em diversos episódios de violência. Neste contexto, o perfil policialesco da campanha do candidato do PSL se enquadra na categoria do “nós” contra “eles”, sendo que “nós” são todos os integrantes de forças de segurança e pessoas dispostas a “dar no lombo da bandidagem”, como ele gosta de dizer. Já na categoria “eles”, o que se vê é uma perigosa – e muitas vezes deliberada – mistura que coloca no mesmo lugar os verdadeiros bandidos e pessoas ligadas aos movimentos sociais e às minorias, os militantes dos direitos humanos e os “vermelhos” em geral.

De acordo com um levantamento realizado pela agência de jornalismo investigativo Pública, até meados de outubro apoiadores de Bolsonaro já haviam realizado 50 ataques físicos em todo o país. O caso mais notório foi o bárbaro assassinato do mestre capoeirista Moa do Katendê, em Salvador, que levou 12 facadas em um bar após defender o voto em Fernando Haddad (PT).

O alerta de perseguição política foi dado pela ONU: “O discurso violento e inflamado durante essas eleições no Brasil, particularmente contra LGBTI, mulheres, afrodescendentes e pessoas com diferentes visões políticas é profundamente preocupante”, alertou, em nota pública, a porta-voz do Alto-Comitê de Direitos Humanos, Ravina Shamdasani.

O discurso de ódio alimentado muitas vezes pelo próprio Bolsonaro, que prometeu inclusive “fuzilar a petralhada”, também já foi alvo de condenação de especialistas em segurança pública: “Não é que alguém vá cometer um ato violento simplesmente porque o candidato falou. Mas, sem dúvida, suas manifestações potencializam a violência e podem encorajar seus correligionários a tomar determinadas atitudes”, diz o professor Marcos Alvarez, que é vice-coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Armas e estatísticas

Bolsonaro, em compromisso assumido junto ao deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), coordenador da “bancada da bala” na Câmara e cotado para assumir o ministério da Segurança Pública em seu eventual governo, prometeu empenho do Executivo na aprovação do projeto de lei que flexibiliza o Estatuto do Desarmamento. Por enquanto, tal proposta apenas serviu para inflar o valor das ações da fabricante brasileira de armas Taurus, mas, diante das estatísticas, a ideia de permitir um “derrame” de armas entre a população brasileira soa apavorante e, dado o perfil dos personagens envolvidos nesta propaganda, deixa a sensação de que a corda irá arrebentar do lado de pobres, fracos e inocentes.

Coincidência ou não, o Atlas da Violência elaborado em conjunto pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado este ano, mostra que ocorreram 62.517 homicídios por arma de fogo no Brasil em 2016, o que representou a mais alta taxa da história do país. Segundo os especialistas, o clima de instabilidade política e as ameaças ao Estatuto do Desarmamento podem ter contribuído para este recrudescimento que, como sempre, atingiu em cheio pretos e pardos, que são 71,5% das vítimas de homicídio, e os jovens (33.590 vítimas tinham entre 15 e 29 anos).

“Existe o temor de que, se for abandonado o Estatuto do Desarmamento, haja uma nova ‘corrida armamentista’ no país como a ocorrida nos anos 1980, quando havia um forte sentimento de autodefesa por parte do cidadão. Apesar de nunca ter sido implementado em sua plenitude, o Estatuto conseguiu ser responsável pela contenção do crescimento dos homicídios”, diz o pesquisador David Marques, do FBSP.

Possuir uma arma, muitas vezes significa para o cidadão civil a morte. Segundo um estudo divulgado pela própria indústria de armas internacional por intermédio da Rand Corporation, “o cidadão comum que sai à rua armado tem entre 60% e 70% de chance de morrer em caso de conflito”. O mesmo raciocínio vale para assaltos a residências e em muitos casos a vítima é assassinada com a própria arma.

Para o sociólogo Julio Waiselfisz, coordenador de Estudos da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), isso acontece principalmente por dois motivos. “Primeiro, porque o indivíduo honesto que sai armado à rua não sabe manejar muito bem uma arma de fogo, não é especialista. Segundo, porque ele geralmente carrega a arma no coldre ou no bolso do casaco e os bandidos fazem a abordagem já com a arma em punho”, diz.

Exemplo dos EUA

Nos Estados Unidos, que é tido pelo PSL como exemplo a ser seguido a ponto de sua bandeira merecer a continência de Bolsonaro, cerca de 40% dos cidadãos possuem arma de fogo e entre a população civil do país circulam inacreditáveis 270 milhões de unidades, de acordo com uma pesquisa feita pelo instituto Pew no ano passado. Lá, qualquer cidadão “de bem” pode adquirir uma arma, mas isso faz com que o país seja de longe aquele com o maior número de mortes por arma de fogo entre os desenvolvidos. Foram mais de 11 mil assassinatos registrados em 2016, e esta estatística não inclui a morte de criminosos por agentes de segurança, que são classificadas pelo FBI como “homicídios justificáveis”.

Mas, não é só isso. A posse de armas de fogo faz também que os EUA seja um dos campeões no número de suicídios, com 5,5 mil casos registrados em 2016. Outra peculiaridade da sociedade norte-americana associada à livre compra de armas pelos cidadãos “de bem” é a reincidência de massacres de inocentes. Segundo as estatísticas oficiais, desde 1982 já ocorreram mais de 90 incidentes de violência aleatória que provocaram a morte de pelo menos quatro pessoas em cada episódio.