ESTADO VIOLÊNCIA

Após 1º turno, policiais e milicianos aumentam ‘ofensivas’ no Rio

Votação expressiva de Bolsonaro na capital fluminense ecoa entre forças de segurança – inclusive as ilegais – que se sentem autorizadas a cometer ainda mais arbitrariedades contra moradores das favelas cariocas

Arquivo/Tânia Rêgo/Agência Brasil

Policiais nas favelas: quadro que começa a se formar já preocupa entidades de direitos humanos

Rio de Janeiro – Em permanente situação de insegurança pública, a população do Rio de Janeiro deu ao candidato a Presidente da República pelo PSL, Jair Bolsonaro, uma de suas maiores votações em capitais no primeiro turno das eleições de 2018, com 58,2% dos votos válidos. O discurso de Bolsonaro, centrado na promessa de “pegar pesado com a bandidagem“, como tantas vezes repetiu durante a campanha, parece ter aderido ao sentimento de urgência que tem o povo carioca nesta seara e sido a mola propulsora do desempenho do candidato em uma cidade literalmente dividida entre traficantes de drogas, milicianos e policiais muitas vezes corruptos e quase sempre mal preparados.

Ainda não se sabe qual resultado prático terá na vida do carioca a dubiedade de Bolsonaro, que promete a paz por meio do aumento da violência policial se chegar ao governo. O certo é que as propostas do candidato do PSL, como, por exemplo, a de conceder imunidade ao policial que matar durante a realização de uma operação, já ecoam entre as forças de segurança.

Em algumas favelas do Rio, o que se vê nestes dez dias seguintes à votação é uma ofensiva sem precedentes das milícias em áreas dominadas por traficantes. Em outras, o aumento da arbitrariedade de policiais militares contra moradores, com direito, segundo diversos relatos, a pé na porta, invasão de residências sem mandado judicial e revistas constrangedoras. O quadro que começa a se formar já preocupa entidades de direitos humanos que atuam nas comunidades e especialistas em segurança pública.

Divulgados na terça-feira (16) pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão subordinado ao governo estadual, os índices da criminalidade registrados em setembro no Rio apontam 108 casos de mortes decorrentes de intervenção policial, os chamados “autos de resistência”.

Esse número representa uma redução de 38% em relação a agosto, e o ISP os apresentou como destaque positivo. Mas, uma análise mais aprofundada dos dados oficiais mostra que de março a setembro deste ano, período que compreende sete dos oito meses já completados de intervenção federal no Rio, o número de mortes decorrentes de ação policial deu um salto de 45%, passando de 636 para 922 casos.

Milícia avança

Apesar da redução do número de mortes em autos de resistência no mês passado, desde o primeiro turno das eleições a mudança na postura de milicianos e policiais parece clara. O episódio que mais chamou atenção foi a invasão das favelas do Rola e de Antares, em Santa Cruz, zona oeste da cidade, por um grupo de cerca de 30 milicianos fortemente armados e vestidos com roupas idênticas à PM. O fato ocorreu apenas algumas horas após o encerramento da votação.

As duas favelas, únicas que ainda não estavam em poder da milícia que controla a região, foram palcos de diversos confrontos nos últimos meses. Na madrugada de segunda-feira (8), a milícia partiu para um “tudo ou nada” que incluiu invasões violentas de domicílio e um intenso tiroteio já no início da manhã, enquanto estudantes e trabalhadores se viam impedidos de sair de suas casas.

Os primeiros relatos dos moradores, acompanhados de imagens feitas com smartphones, acusavam a polícia pelas arbitrariedades, mas isso logo foi desmentido pela própria PM: “O que aconteceu é um absurdo e essas pessoas não são policiais militares. O que temos é um confronto entre milicianos e traficantes por disputa territorial”, disse o major Ivan Bláz, porta-voz da instituição, sem saber explicar o uso de roupas idênticas às da PM.

Segundo relatado pelo jornal O Globo, desde a ocupação das duas comunidades, milicianos circulam livremente pelas ruas de Santa Cruz com uma caminhonete onde está acoplada uma metralhadora calibre.50, uma arma de guerra. Ao mesmo tempo, os moradores do Rola e de Antares já receberam folhetos alertando que em breve será iniciada a cobrança de uma “taxa de segurança” a todas as residências e também estabelecimentos comerciais.

Pé na porta e roubo

Em comunidades onde há presença maior da PM por conta ainda da moribunda política de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), relatos apontam que, desde as eleições, os policiais adotaram uma postura mais agressiva. Na manhã de ontem (17), um homem foi morto no morro do São Carlos, região central do Rio, em decorrência da operação realizada por um grupo de 280 policiais, apoiados por um efetivo de 1,2 mil homens das Forças Armadas, para a retirada dos contêineres que formavam uma das três bases que a UPP tinha na comunidade e foi desativada.

Ontem (16), policiais da UPP do Morro do Adeus, que faz parte do Complexo do Alemão, zona norte do Rio, invadiram uma escola em meio a uma festa que comemorava o Dia das Crianças. Segundo relatos, policias atiraram em direção ao alto do morro, o que deu início a um confronto com os traficantes que assustou a comunidade: “Invadiram a escola usando capuzes e deixaram as crianças aterrorizadas. São covardes, xingaram as mães de piranha e vagabunda”, diz uma moradora, em áudio postado em uma rede social.

Outro indício de que a vitória parcial de Bolsonaro pode ter determinado a adoção de uma postura mais agressiva por parte das forças de segurança no Rio aparece em Vila Kennedy, favela da zona oeste controlada pelo tráfico e que sempre foi uma espécie de fetiche do Exército por sua proximidade com a Vila Militar.

Desde a manhã da última quinta-feira (11), a PM realiza operações quase diárias na comunidade com o apoio das forças Armadas e de veículos blindados. Segundo os relatos dos moradores, na madrugada desta quarta-feira (17) houve intensa troca de tiros, que partiram, inclusive, do helicóptero da PM. Um militar foi ferido de raspão.

Nos últimos dias também foram relatados abusos dos policiais em operações realizadas na Cidade de Deus e nos complexos do Lins e da Penha.

Testemunho

Morador da Vila Cruzeiro, também no Complexo do Alemão, há 30 anos, o zelador Antônio Ferreira conta que há dias em que prefere dormir no local de trabalho, em um condomínio próximo ao Maracanã: “Não está fácil para quem chega tarde do trabalho e quer subir o morro. Os ‘homens’ estão revistando com muito desrespeito e agressividade, dando tapas em adolescentes e apalpando mulheres”, conta.

Ferreira relata ainda que na semana passada policiais da UPP da Vila Cruzeiro atiraram contra o transformador em pelo menos duas ocasiões: “Fizeram de propósito, só para sacanear os traficantes, mas deixaram a comunidade toda sem energia e prejudicaram muita gente boa”.

Na terça-feira seguinte à eleição (9), o aplicativo Onde Tem Tiroteio relatou uma ofensiva da PM no Complexo do Alemão que durou o dia todo e resultou em 15 confrontos a bala entre policiais e traficantes. Segundo o jornal Voz das Comunidades, paralelamente à operação, capitaneada pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope), outros policiais militares invadiram casas sem autorização judicial, agrediram moradores e chegaram a roubar aparelhos eletrônicos e até mesmo uma garrafa de uísque. Um vídeo divulgado pelo jornal mostra um policial utilizando uma escada para entrar em uma casa pela janela, entre outras imagens.

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