Tempos sombrios

A violência e o ódio chegam ao divã, e analistas clamam por democracia

Depois de Bolsonaro usar entrevistas, palanques e redes sociais para ameaçar e humilhar, crescem as agressões físicas e verbais contra quem pensa diferente dos seguidores do “mito”

Reprodução parcial do quadro ‘O Grito’, de Edvard Munch (1893)

São Paulo – Até poucos meses atrás, colocar um adesivo no peito para manifestar uma ideia, andar de mãos dadas com alguém do mesmo sexo, ser feminista, manifestar sua opinião ou até mesmo amamentar o bebê em público podia render alguns olhares enviesados, mas o constrangimento não era exatamente uma regra, muito menos a violência.

Isso mudou, e para muito pior. Somam dezenas os relatos de pessoas que foram atacadas física ou verbalmente por seguidores do candidato do PSL à Presidência da República, Jair Bolsonaro. E não se trata de um acaso.

As agressões ou ameaças vêm sempre acompanhadas de frases como: “Aí, seu viadinho de merda, já viu as pesquisas? Vai aproveitando até o dia 28 pra andar de mãozinha dada, porque, quando o mito assumir, acabou essa putaria e você vai levar porrada até virar homem”. Ou: “Achou mesmo que era só sair gritando #elenão pra parar o bolsomito, feminazi??? Perdeu, escrota!! E daqui a pouco você vai ter motivo pra gritar de verdade!!!”

Esses são relatos feitos por pacientes da psicanalista Silvia Bellintani, de São Paulo. Pouco antes do primeiro turno das eleições, autorizada pelo jovem homossexual de 19 anos e pela garota hetero e feminista de 17 anos, Silvia publicou um apelo nas redes sociais: “Perceber o pavor desses dois adolescentes me virou do avesso e despertou uma indignação difícil de descrever; escutei os relatos com a visão nublada pela fúria que senti, seguida por um desejo quase incontrolável de proteger os dois”.

Ainda sob um cenário indefinido, a psicanalista reforçava. “Fico imaginando o que vem pela frente. A homofobia e a misoginia presentes nas ameaças sofridas por esses dois adolescentes são apenas duas amostras dentre tantas outras atrocidades que BOLSONARO, ESSE CRIMINOSO NAZIFASCISTA, incentiva e legitima”.

E segue em seu post, considerando não haver justificativa para essa escolha. “Se você vota nele, é CORRESPONSÁVEL: não apenas por essas, mas por todas as outras ameaças que ainda estão por vir”.

O terror contido nas palavras de Silvia Bellintani tomou os divãs de psicanalistas em todo o Brasil. E não só da parte de quem sente medo, mas também dos que sentem ódio.

A psicanalista Glaucia Segalla tem observado em pacientes transtornados de raiva. “A pauta política e as redes sociais potencializam e fortalecem uma agressividade que já havia”, relata Glaucia, que encaminhou à reportagem o Manifesto dos Psicanalistas Brasileiros pela Democracia (leia íntegra abaixo), preocupada em repercutir a posição dela e de outros colegas de profissão.

O texto, assinado por cerca de 40 sociedades psicanalíticas, escolas de psicanálise e associações de psicanalistas, frisa que Brasil se encontra em um momento crucial de sua história. “Nas próximas três semanas estaremos diante de uma escolha que moldará de forma contundente nosso horizonte. Estamos todos sendo convocados a definir de maneira clara que tipo de sociedade queremos ser”, afirmam os profissionais do divã.

O documento expressa imensa apreensão diante de um cenário que, de maneira flagrante, vem pondo em risco o Estado Democrático de Direito que com grande esforço conquistamos, e que vem sustentando a sociedade brasileira nos últimos trinta anos. Não podemos deixar que isso aconteça!”. 

Os profissionais lembram que a democracia é o único fiador de nosso futuro como nação, é único caminho em direção a uma sociedade livre, justa e fraterna. Para mantê-la é preciso sustentar o direito inalienável de livre expressão de ideias, e de associação – que se traduzem na diversidade política, cultural, religiosa e sexual, e no repúdio a toda forma de preconceito, opressão social, racial ou sexual”. E conclamam “todos os brasileiros a usarem conscientemente seu voto como um instrumento de defesa dos valores essenciais da democracia. O momento que vivemos não admite hesitação!”

 Palavras como balas perdidas

“Uma amiga estava amamentando seu filho, que tem menos de um ano, em uma padaria próxima à sua casa, quando passaram dois caras e um deles gritou, olhando pra ela: ‘Quando ele ganhar, essas vagabundas não vão mais poder fazer isso!’”

A frase faz parte de “um movimento de circulação de breves relatos do que tem sido escutado nas ruas do país sobre os efeitos nefastos que a ameaça do fascismo é capaz de provocar”, proposto por psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise.

São histórias cada vez mais comuns, mas tão desprovidas de sentido que só encontram respaldo nas frases disparadas por anos a fio pelo candidato que há 28 anos na vida política só fez tecer uma colcha de retalhos de preconceitos, ameaças, incentivo à violência. Um dos relatos apresentados pela Escola Brasileira dá conta de uma longa conversa na qual alguém tentava argumentar contra o que representa a candidatura do capitão. “O alguém perde os argumentos e enuncia a verdade velada. ‘Ah, quer saber, foda-se se ele defende a tortura. Comunista pode ser torturado!’”

Ou uma mãe que conta, preocupada: “Minha filha, ontem, na saída da escola, foi abordada por um cara, que, por conta do adesivo do Haddad, que ela trazia colado na camisa, mandou essa: ‘Fica esperta que eu sou do exército Bolsonaro que esfola comunista’”.

Para os profissionais da Escola Brasileira de Psicanálise, “quando o valor das palavras é banalizado, a ponto de o pior poder ser dito por um candidato à presidência da República, como se fossem apenas palavras ao ar, perdemos a noção de que estamos escrevendo, com elas, nossa história. Perdemos a noção de que palavras se cravam na história, nos ouvidos e nos corpos de um país. Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar. E nunca se sabe ao certo, de antemão, onde será. Não será sem consequências nos fazermos de surdos para o pior. Escutemos, pois”.
________

Manifesto dos psicanalistas brasileiros pela democracia

O Brasil se encontra num momento crucial de sua história. Nas próximas três semanas estaremos diante de uma escolha que moldará de forma contundente nosso horizonte. Estamos todos sendo convocados a definir de maneira clara que tipo de sociedade queremos ser.

As entidades que assinam este Manifesto – Sociedades psicanalíticas, Escolas de Psicanálise e Associações de psicanalistas – vêm a público manifestar sua imensa apreensão diante de um cenário que, de maneira flagrante, vem pondo em risco o Estado Democrático de Direito que com grande esforço conquistamos, e que vem sustentando a sociedade brasileira nos últimos trinta anos.  Não podemos deixar que isso aconteça! 

A democracia é o único fiador de nosso futuro como nação, é o único caminho em direção a uma sociedade livre, justa e fraterna. Para mantê-la é preciso sustentar o direito inalienável de livre expressão de ideias, e de associação – que se traduzem na diversidade política, cultural, religiosa e sexual, e no repúdio a toda forma de preconceito, opressão social, racial ou sexual. É necessário apostar na construção de uma sociedade que busque de forma permanente reduzir a abjeta desigualdade econômica que ainda nos caracteriza.

Por isso, instamos todos os brasileiros a usarem conscientemente seu voto como um instrumento de defesa dos valores essenciais da democracia. O momento que vivemos não admite hesitação!

Brasil, 10 de Outubro de 2018

Assinam o presente Manifesto:

Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras:

ALEPH – Escola de Psicanálise 

Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA

CEPdePA – Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre

Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro – CPRJ

Corpo Freudiano do Rio de Janeiro Escola de Psicanálise

Departamento de Psicanálise – SEDES SAPIENTIAE

Departamento Formação em Psicanálise – SEDES SAPIENTIAE

Escola Brasileira de Psicanálise – EBP

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – EPFCL/BRASIL

Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro

Escola Letra Freudiana

Federação Brasileira de Psicanálise – FEBRAPSI

Laço Analítico/Escola de Psicanálise  – LAEP 

Práxis Lacaniana/Formação em Escola – Niterói

Sigmund Freud Associação Psicanalítica

Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro  – SPCRJ

Tempo Freudiano Associação Psicanalítica

Associação Psicanalítica de Nova Friburgo

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG

Círculo Psicanalítico de Pernambuco – CPP

Coletivo Psicanalistas pela Democracia

Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos – EBEP

Fórum do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro

Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo

Laboratório de Estudos de Psicanálise da Infância e da Educação – IPUSP/USP

Laboratório de Pesquisa em Psicanalise, arte e politica – LAPPAP/UFRGS

Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica

Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade da PUC-SP

Núcleo de Psicanálise – HCFM- USP=

Programa de Mestrado Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas do IP/UERJ

Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ

Programa de Pós-graduação em Psicanálise, clínica e cultura da UFRGS

Rede Interamericana de Psicanálise e Política – REDIPPOL

Rede Internacional Coletivo Amarrações: políticas com adolescentes

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – SBPSP

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro – SBPRJ

Toro – Escola de Psicanálise (Maceió)

Leia também

Últimas notícias