Ambiente ruim

Antes de completar dois anos, Rede entra em nova crise com apoio de Marina a Aécio

Marina já havia constrangido militantes ao se filiar ao PSB, ano passado, para disputar eleições. Aliança com tucano provoca renúncias entre lideranças do partido, que cobram coerência

vagner campos/fotos públicas

Acenos de Marina balançaram a Rede em São Paulo, onde ao menos sete membros da executiva renunciaram aos cargos

São Paulo – “Não há alegria com essa decisão. Nem entre os que concordam com ela”, observa Célio Turino, fundador e ex-porta-voz da Rede Sustentabilidade em São Paulo. “Se falta alegria, é porque algo não foi bem feito.” Um dos responsáveis pelo plano de governo de Marina Silva e articulador de sua candidatura junto à comunidade cultural, Turino resolveu assinar um manifesto contrário ao apoio da ex-presidenciável a Aécio Neves (PSDB) no segundo turno das eleições.

Anunciada no último domingo (12), a aproximação entre Marina e o tucano não foi necessariamente uma surpresa para os correligionários. Ainda assim, provocou uma nova crise existencial na Rede – talvez a mais séria em seus vinte meses de vida. Por mais que a cúpula do partido tente minimizá-las, a aliança de ocasião provocou efeitos práticos. Uma delas é a carta-protesto assinada por Turino e outros 43 membros do Elo Nacional e da Executiva Nacional da Rede.

Leia também:

Intitulado “A favor da nova política”, o texto ataca as candidaturas de Aécio Neves e Dilma Rousseff (PT), lembrando que, uma vez eleitos, ambos “realizarão um governo que se servirá do velho padrão do fisiologismo e do patrimonialismo travestido de ‘garantia da governabilidade’ para preservar um modelo baseado nos pilares intocáveis da concentração de renda e da exploração irracional dos recursos naturais”.

E continua, atestando que “os projetos em disputa mantêm em seu DNA a cultura da velha política, da corrupção, da promoção dos interesses do mercado em detrimento dos direitos sociais”. Por isso, os signatários condenam a aliança de principal sua liderança, Marina Silva, com o candidato do PSDB. “Constitui-se grave erro político”, concluem, defendendo a neutralidade durante o segundo turno. “Manteremos nossa independência da polarização PT x PSDB.”

Os acenos da ex-ministra do Meio Ambiente também balançaram a Rede em São Paulo, onde ao menos sete membros da Executiva Estadual renunciaram aos cargos de coordenação, comunicação, finanças e organização do partido. “Não me sinto motivado e bem com meus princípios para estar nessa função tendo, de alguma maneira, mesmo indireta, a imagem da Rede vinculada à do PSDB”, explica Emílio Franco Júnior, que acaba de renunciar à coordenadoria de comunicação do partido em São Paulo. “Isso vai contra nossa proposta.”

Minoria

O descontentamento, porém, é minoritário. Membros da cúpula da Rede que orbitam a figura de Marina Silva fazem questão de lembrar que a maioria apoia a decisão da ex-candidata. “Há uma discordância interna muito pontual”, insiste Bazileu Margarido, membro da Executiva Nacional e tesoureiro da campanha, lembrando que as instâncias decisórias da Rede orientaram os militantes a votarem branco, nulo ou em Aécio Neves. Em Dilma, jamais. “Marina se manifestou dentro dessa decisão.”

Tanto quem concorda como quem discorda do aceno ao tucano acredita estar sendo coerente com os princípios da Rede. Os críticos, porém, recordam o discurso de Marina Silva durante o primeiro turno para apontar as contradições implícitas numa declaração de apoio a Aécio Neves.

Na campanha, Marina repetiu à exaustão os malefícios da polarização PT x PSDB, que toma conta da disputa presidencial desde 1994, condenou as práticas partidárias de tucanos e petistas, defendeu uma “nova política”, mostrou-se ao eleitorado como terceira via, disse que jamais subiria no palanque do PSDB e escondeu o quanto pôde a aliança com o candidato peessedebista ao governo de São Paulo, Geraldo Alckmin, proibindo a divulgação de sua imagem ao lado do tucano até às vésperas da eleição.

“Não consigo participar de um partido que tem um discurso e, de repente, o discurso muda”, critica Valfredo Pires, ex-coordenador executivo da Rede em São Paulo. “Não posso mais participar da direção do partido com essa incoerência. Se fomos sempre contra a divisão de poder entre PT e PSDB, apoiar Dilma ou Aécio deveria ser impensável.”

Princípios

O Estatuto da Rede também é citado para criticar a aliança com Aécio. “Temos como princípios fundantes a cultura de paz, a sustentabilidade e a democracia direta”, enumera Célio Turino, explicando que as propostas, os aliados e a história de Aécio Neves não dialogam com o cerne ideológico do partido. “A lógica fundamental do tucano é o financismo, o dinheiro acima da vida, que tem sido repudiada no mundo inteiro desde a crise de 2008 e só tem trazido desgraça em termos de direitos humanos, bem-estar social e sustentabilidade.”

Turino também argumenta que Aécio se contrapõe à cultura de paz defendida pela Rede. “O pensamento e o conjunto das forças políticas que apoiam o tucano estão alinhados à bancada da bala, do armamentismo, da redução da maioridade penal”, pontua, sublinhando que a Rede não aceita doações de fabricantes de armas. “Não dá para falar de cultura de paz ao lado de quem defende uma das polícias que mais matam no mundo, como a PM de São Paulo.”

Finalmente, Turino pondera que o partido se construiu a partir de uma ideia favorável à agroecologia, à agricultura familiar e à demarcação de terras indígenas e quilombolas – objetivos que não se refletem nas propostas de Aécio Neves. “Com Ronaldo Caiado (DEM-GO), com a bancada ruralista, com um candidato que não firmou compromisso pela erradicação do trabalho análogo à escravidão, que compreende as jornadas extenuantes e as condições degradantes, não estamos seguindo nossos princípios.”

Contra a dissidência, membros da cúpula da Rede ponderam que Aécio Neves assumiu alguns compromissos com Marina Silva antes de que a ex-candidata declarasse voto no tucano. O partido, aliás, compara a carta assinada por Aécio em Pernambuco, no último sábado (11), à Carta ao Povo Brasileiro publicada por Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. Só que ao contrário: se o então candidato do PT buscava acalmar os mercados, temerosos com sua iminente vitória, o tucano, preferido dos financistas, pretendeu firmar compromissos sociais e ambientais.

“Aécio fez uma inflexão importante, colocando-se ao lado de propostas como investimento de 10% do orçamento bruto da União em saúde, fim da reeleição e manutenção da política de ganhos reais do salário mínimo”, argumenta Bazileu Margarido, enumerando propostas defendidas pela campanha marinista. “Tomamos a posição que consideramos mais acertada nesse momento.”

Compromissos

A carta assinada por Aécio assume vagamente algumas ideias defendidas por Marina – inclusive as que vão na contramão das propostas apregoadas pelo tucano durante toda a campanha. Maioridade penal, por exemplo, que, por vezes travestida de aumento do período de internação de menores, esteve presente tanto nos discursos do presidenciável como nos dos candidatos do PSDB em São Paulo: José Serra, eleito senador, e Geraldo Alckmin, reeleito governador.

Em sua “carta aos brasileiros”, porém, o tucano promete encontrar soluções generosas para a juventude. “Entendo que podemos, juntos, evitar que os problemas relacionados aos jovens sejam encarados apenas sob a ótica da punição.” Aécio também se compromete com a preservação da natureza, demarcação de terras indígenas e reforma agrária.

Mas, em agosto, durante sabatina na Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), havia se comprometido com a criação de um superministério da Agricultura que englobasse as pastas do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário. Por fim, o tucano se manifesta pelo fim da reeleição, desconsiderando que foi o partido dele, no governo Fernando Henrique Cardoso, que instituiu esse direito aos presidentes, governadores e prefeitos do país.

“Não são acenos concretos”, desqualifica Turino, fundador da Rede, secundado por outras vozes descontentes. “Não acho que as promessas serão cumpridas”, pondera Valfredo Pires, ex-coordenador executivo em São Paulo. “Não são compromissos da agenda do PSDB, não consigo confiar na carta ao olhar para o governo paulista.”

Ex-coordenador de comunicação da Rede, Emílio Franco Júnior lembra que, em vinte anos à frente do governo estadual, os resultados tucanos são ruins. “Há pouco diálogo com os movimentos sociais, crise hídrica por falta de investimentos, repressão policial excessiva, panes constantes no metrô e nos trens, denúncias de corrupção, problemas na aprovação automática nas escolas e pedágios com preços injustificáveis.”

Alternância

Ainda assim, a cúpula do partido parece satisfeita com os gestos de Aécio Neves. “A história vai registrar se as promessas são verdadeiras”, espera Walter Feldman, porta-voz nacional da Rede Sustentabilidade e braço direito de Marina Silva. “Só não podíamos ficar omissos neste segundo turno quando as urnas mandavam um recado de que queriam mudança.”

Ex-deputado estadual e federal pelo PSDB paulista, Feldman é um dos maiores defensores da aliança com Aécio. “Isso não compromete o futuro político nem da Marina nem da Rede. Comprometeria se não tivéssemos assumido posição”, contraria. “Segundo turno foi criado para que as forças políticas escolham o lado mais adequado. Hoje, o mais importante é garantir a alternância de poder. A alternância, em si, já simboliza um avanço para a democracia, independentemente do resultado.”

Apesar de não defender com tanto afinco a troca de comando político em São Paulo, Feldman, que é médico, diagnostica que o PT está padecendo de uma certa “síndrome de intoxicação do poder” que isolado o partido da realidade. Daí que não havia como não escolher o PSDB. “Se mantivéssemos a neutralidade, estaríamos na linha perigosíssima da pureza fatal”, argumenta, desconsiderando que Marina Silva, então filiada ao PV, se manteve neutra no segundo turno após acabar em terceiro lugar na corrida presidencial de 2010. “Não podíamos nos isolar, buscando uma pureza que não existe. Estar fora do jogo, agora, seria dizer que as duas opções são iguais.”

O argumento alternancista defendido pela cúpula da Rede não convence as demais lideranças do partido. “Não podemos buscar uma alternância de poder a qualquer custo”, rebate Valfredo Pires.

Para Emílio Franco, a alternância é necessária, mas tem que ser qualificada. “Se o segundo turno fosse Dilma contra Levy Fidelix (PRTB), iríamos apoiá-lo em nome da alternância de poder?”, provoca. “Pela qualidade dos membros da Rede, sei que o apoio não se baseia apenas no alternancismo, mas eles estão usando esse argumento como uma das justificativas centrais para se juntar ao PSDB.”

Semelhanças

Pese às diferenças entre os programa de Marina e Aécio, alguns militantes do partido reconhecem semelhanças. Uma delas é o antipetismo, que – todos concordam – se fortaleceu dentro da Rede após a dura campanha de desconstrução movida por Dilma Rousseff contra a ex-ministra durante o primeiro turno.

“Mas nosso apoio iria para Aécio independentemente das mentiras e dos ataques do PT”, adianta Feldman, sustentando uma tese defendida pelo cientista político mineiro Rudá Ricci: “Marina ingressou no PSB, ano passado, depois de Eduardo Campos ter fechado um acordo com Aécio ”, afirma, lembrando que informações sobre o trato do tucano com o ex-governador pernambucano, falecido em 13 agosto, vazaram em cartas de renúncia de líderes da Rede em Minas Gerais. “Isso fazia com que Marina, desde o início, estivesse alinhada com o candidato do PSDB.”

De acordo com alguns correligionários, escolhas econômicas e trabalhistas do programa de governo da ex-senadora também apontavam nessa direção.

“Havia muitos ‘cacos’ que nunca foram devidamente discutidos nem representavam nosso ideário, como a autonomia do Banco Central, a redução do crédito para habitação e financiamento rural, além de posições sobre a exploração do pré-sal”, enumera Célio Turino, lembrando que a candidata gastou mais tempo se defendendo das escolhas ultraliberais do que fazendo propostas sobre sustentabilidade – até então sua grande marca.

“A ideia de transformar a Justiça do Trabalho numa instância arbitral e a flexibilização das leis trabalhistas nos espantaram”, relata Turino.No começo, nos pareceu um erro de redação. Mas o movimento de Marina para Aécio é uma confirmação de que aqueles cacos não estavam acidentalmente no programa.”

Consequências

Os militantes da Rede também estão divididos entre as consequências das recentes escolhas de Marina. Enquanto a ex-candidata e seu círculo mais próximo rechaçam a tese de que os princípios da nova política ficaram manchados, os críticos estão em dúvida entre permanecer ou sair do partido.

Alguns cogitam seguir o anti-exemplo de Marina e abandonar a neutralidade no segundo turno – só que para o outro lado. Internamente, o clima está ruim. Os críticos da aproximação com Aécio dizem receber mensagens ora ofensivas ora elogiosas dos companheiros pela internet. “É o que se espera de uma decisão política”, diz Valfredo Pires, que ainda não sabe se continua no partido. “Apoiar Aécio destrói a história da Rede. Espero que Marina saiba o que está fazendo, porque eu não sei.”

Emílio Franco Júnior concorda que o partido ficará manchado pela decisão, mas ainda tem esperanças. “Há muita gente boa na Rede, temos propostas consistentes para radicalização da democracia”, diz. “Não é possível fazer uma nova política ao lado de Aécio Neves, mas isso não quer dizer que deixaremos de perseguir esse objetivo.”

Otimista, Célio Turino não deixa de acreditar na transformação das práticas políticas brasileiras. “O mundo inteiro deseja o nascimento de algo novo. Sei que vai surgir um rearranjo de forças, uma maneira mais horizontal de fazer política”, salienta, com algumas ressalvas. A partir de agora, isso talvez seja mais difícil com Marina Silva.