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Entre altos e baixos, Dilma retoma na reta final linhas da política externa de Lula

Sucedendo a líder carismático, presidenta é menos ativa na integração regional e perde protagonismo em cenário de crise, mas marca pontos na relação com os Brics e contra denúncias de espionagem

Roberto Stuckert Fº / Presidência da República

Dilma em reunião do Mercosul: política externa sem avanços significativos em relação ao período Lula

São Paulo – Até as vozes mais entusiastas da política externa “ativa e altiva” imposta ao Itamaraty pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva admitem que sua sucessora, Dilma Rousseff, rebaixou o perfil da diplomacia brasileira nos últimos anos. Analistas concordam que houve “recuo” no nível de nossas relações exteriores, em grande medida provocado pela própria personalidade da presidenta. Por outro lado, ponderam que Dilma tomou “decisões corretas” ao longo de seu mandato, obteve “conquistas importantes” e, embora com altos e baixos, acabou garantindo a continuidade das diretrizes adotadas pela chancelaria em 2003. O prolongamento da crise econômica, arrematam, foi uma grande pedra no sapato da presidenta em seu percurso internacional.

“As pessoas são outras, o mundo é outro e o país é outro”, resume Sebastião Velasco, professor da Universidade de Campinas (Unicamp), lembrando do peso exercido pela figura única do ex-sindicalista nas negociações globais. “Era um líder político e popular gigantesco, mundialmente reconhecido muito antes de assumir a Presidência.” Ao ascender ao Planalto, Lula ainda teve a felicidade de convidar o embaixador Celso Amorim para dirigir o Ministério de Relações Exteriores. “Havia uma complementaridade muito grande entre o presidente, o chanceler e a visão soberanista da diplomacia preconizada pelo PT”, pontua Kjeld Jakobsen, diretor da Fundação Perseu Abramo e consultor em relações internacionais. “Lula foi extremamente ativo, com envolvimento pessoal muito grande. Dilma não tem o mesmo perfil.”

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De fato, como pontuou em artigo Oliver Stuenkel, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, qualquer sucessor teria dificuldades em emular a gestão “profundamente personalizada” da dupla Lula-Amorim. “Amorim é um diplomata, um articulador e um comunicador de primeira grandeza. Tais atributos não podem ser transferidos para outras pessoas”, complementa Velasco. “Essa parceria também expressava internacionalmente as mudanças que estavam ocorrendo no Brasil”, continua o analista da Unicamp, lembrando o crescimento econômico e as políticas sociais implementadas pelo petista, que acabaram reduzindo a pobreza no país. “Isso nos garantiu uma projeção inédita.”

Os aclamados ativismo e altivez da dupla Lula-Amorim foram bastante comemorados por alguns analistas, que avaliaram a postura do primeiro governo petista como um impulso crucial à construção de uma nova ordem mundial multipolar: com menos influência de Estados Unidos e Europa, e mais espaço para os países emergentes. “Nos últimos dez anos, a voz mais forte do Brasil contribuiu para enriquecer e contrabalançar o debate global”, anota Stuenkel. O professor da FGV-SP sustenta sua opinião citando o maior protagonismo de Brasília no Conselho de Segurança da ONU, onde passou a requisitar um assento permanente, a liderança do país nas forças de paz das Nações Unidas no Haiti, a atenção prioritária à relação com países latino-americanos e africanos e as tentativas de conseguir um acordo para controlar as pesquisas nucleares no Irã.

O que alguns analisam como vitórias da diplomacia brasileira, justamente graças ao interesse de Lula e Amorim em “se meter” nos temas globais, outros criticam como exageros imperdoáveis. Para o jurista e diplomata Rubens Ricupero, a diplomacia lulista pecava por “excesso de protagonismo, iniciativas temerárias em áreas distantes das prioridades do país, silêncio em relação a regimes violadores de direitos humanos e inspiração ideológica”. Em artigo na Folha de S. Paulo, Ricupero elogia Dilma por haver “corrigido” estes aspectos da diplomacia brasileira, que classifica como “erros” da gestão anterior. “É mérito da presidente o retorno à defesa dos direitos humanos em situações como a do Irã”, pontua, “mas resta intacta a ideologização da política sul-americana”.

Dilma fica no meio do caminho entre críticas de opositores, que pregam uma mudança de rumos, e de uma parcela dos correligionários, que esperava uma intensificação da postura adotada por Lula. Uns lamentam que a presidenta não recorra ainda mais a Estados Unidos, União Europeia e Ásia, epicentros econômicos do planeta. Outros a criticam por haver tratado a América Latina de maneira diferente. “A integração regional saiu da agenda, foi colocada para debaixo do tapete”, atesta Adhemar Mineiro, consultor da Rede Brasileira para a Integração dos Povos (Rebrip). “Não avançamos. E tenho dúvidas de que, caso seja reeleita, Dilma colocará vontade política na região.”

Alguns episódios mostram a menor atenção da presidenta com os temas sul-americanos, postura que tem como um de seus principais signos a fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina da embaixada brasileira em La Paz. As cúpulas com presidentes da região tampouco foram constantes com Dilma. Simbolicamente, a passagem-relâmpago da presidenta pelo velório do venezuelano Hugo Chávez, e sua ausência na cerimônia fúnebre, única entre os chefes de Estado latino-americanos, chamaram a atenção. A demora do Brasil em prestar solidariedade a Evo Morales quando o boliviano teve seu avião retido e revistado na Áustria, após suspeitas de que estaria trazendo Edward Snowden, prófugo da justiça norte-americana, também.

“O Itamaraty, porém, desempenhou papel importante na crise paraguaia”, contrapõe Velasco, destacando o empenho do então chanceler Antonio Patriota em viajar a Assunção e, com outros ministros de Relações Exteriores, procurar uma saída pacífica e institucional para o “golpe parlamentar” sofrido pelo presidente Fernando Lugo em 2012. A emergência se deu em meio às negociações da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, interrompida durante algumas horas para que se cuidasse do caso na nação vizinha.

A participação do Brasil no caso não está isenta de críticas, uma vez que Dilma – junto com Cristina Fernández de Kirchner, da Argentina, e José Mujica, do Uruguai – aproveitou a ocasião para incluir a Venezuela no Mercosul. O Congresso paraguaio não aprovava a presença de Caracas no bloco. Com a suspensão temporária do país, já que a ordem democrática havia sido rompida com a queda do presidente, os sócios aproveitaram para colocar os venezuelanos para dentro.

“Quando houve crise na Venezuela, Dilma investiu na construção de uma solução coordenada regionalmente”, complementa Fátima Mello, membro da ONG Fase, recordando a onda de manifestações contra o presidente Nicolás Maduro nas ruas das principais cidades do país. “Foi essencial, porque a América do Sul mostrou-se forte e coesa, com capacidade de concertação para se defender de ingerências externas.” O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-executivo do Itamaraty entre 2003 e 2009, com Lula e Amorim, avalia a gestão dilmista como uma espécie de meio-termo entre empenho pessoal insuficientes e decisões políticas corretas. “As posições de Dilma são corretas, mas sua militância, insuficiente”, avalia. “Há acerto na substância, mas o desempenho está aquém do que seria interessante.”

Apesar das críticas, vários analistas entendem que Dilma enfrentou um cenário internacional adverso. “No mandato de Lula, a economia internacional era mais positiva, os países emergentes cresciam a taxas expressivas e os preços das commodities estavam mais altos. Tudo isso permitiu que Brasília fizesse seus programas sociais, colhesse bons resultados e aumentasse seu prestígio internacional”, compara Fátima Mello. “Dilma assume depois da crise de 2008, que se prolongou mais do que se previa. O cenário impõe outra pauta, mais defensiva. Isso contribuiu para que tivesse menos iniciativa política.”

O professor Oliver Stuenkel, da FGV-SP, concorda que a economia colocou pedras no caminho diplomático da presidenta, forçando-a a se dedicar a temas domésticos e afastando o Brasil das grandes discussões globais em que se engajara na época de Lula. Mas questiona: “De que adianta um país que só está disposto a ajudar na solução dos grandes desafios globais quando a economia vai bem?”, contrapõe. “A crise não justifica o recuo do Brasil.”

Para Stuenkel, a retração do Itamaraty não é ruim apenas para o Brasil, mas para toda comunidade internacional. “Num mundo cada vez mais multipolar, a dominação do diálogo internacional pelos países mais ricos é contraproducente à elaboração de soluções sustentáveis em questões prementes como mudança climática, volatilidade financeira, direitos humanos e proliferação nuclear”, analisa. “Recuar não é uma opção.”

Pese às críticas, a diplomacia dilmista não passará em branco. Duas grandes marcas da presidenta em política externa foram as denúncias de espionagem norte-americana na 68ª Assembleia Geral das Nações Unidas e a criação do banco de desenvolvimento e do fundo de reservas dos Brics, atitudes que alcançaram um raro consenso no país.

Alguns torceram o nariz quando a presidenta cancelou visita oficial a Washington, no ano passado, depois de exigir – e não receber – um pedido formal de desculpas de Barack Obama após revelações de que arquivos da Petrobras e comunicações governamentais brasileiras haviam sido bisbilhotadas pela Agência de Segurança Nacional (NSA) norte-americana. Dilma esperava ainda garantias de que a espionagem não se repetiria, o que tampouco ocorreu.

Não se pode dizer que, diante do constrangimento, Dilma não tenha se esforçado para conseguir um acordo com os Estados Unidos. Antes de cancelar sua viagem a Washington, a presidenta conversou pessoalmente com Obama na Cúpula do G20 em São Petersburgo, na Rússia, na tentativa de convencê-lo a resolver a questão – o que dependia só dele. Também mandou várias vezes seu chanceler, Luiz Alberto Figueiredo, para diálogos bilaterais na Casa Branca, dos quais voltou sempre de mãos vazias. Diante da intransigência, Dilma não teve remédio a não ser postergar a visita – e aproveitar a Assembleia da ONU, em Nova York, para denunciar os Estados Unidos.

Com algumas negociações posteriores, a manifestação de repúdio de Dilma materializou a Conferência Multissetorial Global sobre Governança na Internet (NetMundial), realizada em São Paulo em abril. O encontro – inédito – reuniu representantes de governos, empresas, universidades, sociedade civil e técnicos para discutir direitos e deveres de pessoas e instituições na rede mundial de computadores. E foi festejado por figurões do setor, como o criador da web, Tim Berners-Lee, com o início da elaboração de uma futura Constituição da internet que poderá, talvez, retirar dos Estados Unidos a potestade sobre a administração da rede.

Mais recentemente, a política externa de Dilma voltou às manchetes quando o Itamaraty publicou nota condenando os ataques de Israel à Faixa de Gaza. O Brasil esperou que o Conselho de Direitos Humanos da ONU tecesse críticas à desproporcionalidade da Operação Margem Protetora, que pretendeu destruir alvos do Hamas no território palestino, mas acabou matando uma quantidade enorme de civis. Ao marcar posições no conflito, Dilma pode haver sinalizado de que voltará a fazer com que a voz do país seja ouvida em questões complicadas do cenário internacional. Para alguns analistas, isso é fundamental para que o Brasil consiga um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

“Não dá pra assumir essa vaga sem assumir posição consistente no Oriente Médio, por exemplo”, explica Salem Nasser, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. “Com Lula, tínhamos atitudes que antecipavam decisões internacionais, como o acordo com o Irã. Não sei se é só militância que falta a Dilma. Talvez tenhamos atingido certos limites, que se expressam em nossa baixa capacidade de gerenciamento de complexidades e tomada de grande decisões em política externa.”

Se o que falta é empenho da presidenta ou competência do corpo diplomático, que tentou – e não conseguiu – dar passos maiores que as pernas durante a gestão Lula-Amorim, o fato é que a diplomacia de Dilma não parece agradar por completo. Nem mesmo um dos mentores das diretrizes petistas, como Samuel Pinheiro Guimarães, que anota: “Dilma poderia ter feito uma política externa mais ativa e altiva do que tem feito.”