Base social

Em cinco anos de voo solo, Marina equilibra dissidentes, novos e velhos aliados

Defesa de 'nova política' e ecologismo aglutinaram seguidores em torno da ex-ministra, mas filiação ao 'velho' PSB, mudanças de discurso e alianças estaduais acabaram afastando parte deles

Pedro Ladeira/Folhapress

Marina e apoiadores durante entrega do registro da Rede ao TSE: insucesso mudou rumos e afastou aliados

São Paulo – No caminho que percorreu entre a desfiliação do PT, em 2009, e os resultados das últimas pesquisas, que a colocam em segundo lugar na disputa pela presidência da República, Marina Silva esteve de mãos dadas com um grupo heterogêneo de pessoas. Algumas estão com ela desde que deixou o governo Lula. Outras seguiram a ex-ministra durante todo seu voo solo, mas decidiram abandoná-la às vésperas do pleito. E há quem tenha acabado de subir ao bonde. Nos últimos cinco anos, entre a crítica de dissidentes e o elogio de velhos e novos apoiadores, Marina adapta o discurso e tenta recompor forças sociais com vistas ao Palácio do Planalto.

À diferença de PT e PSDB, cujo eleitorado é mais facilmente mapeável, pode ser temerário definir por antecipação quem votará em Marina Silva. Nem mesmo membros e ex-membros da Rede Sustentabilidade, partido fundado pela ex-ministra em 2013, conseguem delimitar com precisão sua base social. “É uma fauna”, compara, sem viés crítico, o jornalista Bruno Torturra, ex-Mídia Ninja e idealizador do Estúdio Fluxo. Torturra assinou a ata de fundação da Rede, mas acabou se afastando por razões pessoais e divergências políticas. “São ambientalistas, jovens, ativistas desgarrados de outros partidos, empresários, evangélicos, enfim, um ecossistema.”

“Não saberia definir qual é a base social da Marina”, alega Ricardo Abramovay, professor da Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis (FEA) da Universidade de São Paulo (USP). Uma das sumidades nacionais em economia verde, Abramovay faz parte do grupo fundador da Rede Sustentabilidade na capital. E continua filiado ao grupo, apesar de não estar diretamente envolvido na campanha. “Só saberemos quem são seus eleitores depois do pleito. O fato de ser negra e ter origem pobre influencia bastante. Existe uma identidade popular com a candidata, mas é diferente do que ocorre com o lulismo.”

Para Joílson Cardoso, vice-presidente nacional da Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e secretário sindical do PSB, sigla que abriga a candidatura de Marina, ela consegue respaldo em todas as camadas sociais. “Uma mulher com a história dela, filha da floresta, analfabeta até os 16 anos, que conseguiu galgar espaços mostrando a força de sua fé na educação, é uma líder que tem o perfil dos brasileiros”, define o sindicalista, que abraçou as propostas da ex-ministra no ano passado, após adesão à candidatura de Eduardo Campos, morto num acidente aéreo em 13 de agosto. “O povo se identifica com Marina.”

Ibope e Datafolha apontam um mesmo perfil para os eleitores de Marina. Em geral, são jovens e adultos, de 16 a 40 anos, com ensino superior e rendimento mensal entre dois e dez salários mínimos. Estão concentrados nas grandes cidades do Sudeste e do Centro-Oeste. A maioria professa a fé evangélica e avalia como “ruim ou péssimo” o governo da presidenta Dilma Rousseff, candidata à reeleição pelo PT. Marina também tem apelo entre apartidários e simpatizantes do PMDB e do PSDB, além do PSB. “Há ainda pessoas ligadas à arte, cultura e universidade”, complementa Lia Zatz, exilada durante a ditadura e apoiadora de Marina desde 2010.

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Beto Albuquerque, o vice, é a ponte efetiva com o agronegócio e os partidos tradicionais. PMDB é inevitável, admite

O ex-líder petroleiro Luciano Zica detecta ainda “sentimentos antipetistas” entre os atuais correligionários de Marina. “Há pessoas que jamais gostaram do PT e estão aproveitando essa onda para se vingar”, considera. “O PT faltou com respeito a todos nós, é verdade, mas não vejo razões para ser antipetista.”

Zica foi por duas vezes vereador em Campinas (SP) e deputado federal por três mandatos, tudo pelo partido de Lula, além de trabalhar como secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente durante a gestão de Marina quando ainda estava no barco petista. Abandonou partido e governo junto com a candidata, a acompanhou no PV e na Rede Sustentabilidade. Só deixou de segui-la quando soube da filiação ao PSB. “Ainda nutro muito carinho por ela, mas foi um grande erro.”

Escolhas

Como seguidor de Marina, Zica brigou em 2009 e 2013 para que ela não se filiasse a nenhum partido político tradicional. Foi voto vencido nas duas oportunidades. Na primeira, se manteve fiel. Na segunda, desembarcou. “Embora jovem, Campos é símbolo da mais velha política brasileira. E o PSB também”, avalia.

A adesão ao PSB ocorreu depois que a Rede Sustentabilidade não angariou o número de assinaturas necessário para obter o registro como partido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Inicialmente, a ex-senadora deixou claro que ficaria na sigla de Campos apenas durante a campanha, e que depois voltaria para o projeto da Rede. Nas últimas semanas, porém, mantém discurso incerto a respeito dos rumos que tomará em 2015.

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Campos e o PSB: apoiadores se dividem sobre entrada em partido da ‘velha política’

“Na Rede, estávamos em processo de tomar decisões horizontalmente”, conta Zica, “mas a primeira grande decisão do partido foi tomada verticalmente, de madrugada, por Marina e um grupinho de pessoas.” Ex-coordenador da Rede Sustentabilidade em São Paulo, Zica lembra que foi “informado” sobre a filiação ao PSB pela imprensa. “Cheguei à triste constatação de que partidos são mesmo muito centralistas e pouco democráticos.”

A adesão de Marina à candidatura de Eduardo Campos, ano passado, ainda divide opiniões entre dissidentes e aliados da ex-ministra. Quem continua com ela acredita que Marina foi “obrigada” a se filiar ao PSB depois que a Justiça Eleitoral negou o registro da Rede. “Vi muitas assinaturas rejeitadas indevidamente. Coletamos 900 mil, o dobro do necessário. Foi um baque. Então, ela teve que tomar uma decisão de sobrevivência”, explica Célio Turino, ex-secretário de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura durante a gestão de Gilberto Gil. “Quem olhasse pra Marina sabia que ela tomaria uma atitude inusitada, de defesa.”

Após passar pelo PT e pelo PCdoB e votar em Dilma Rousseff em 2010, Turino foi porta-voz da Rede em São Paulo e hoje é um dos coordenadores do capítulo sobre cultura do plano de governo de Marina. “Ao aderir à candidatura de Campos, ela fez o que aprendeu com Chico Mendes: o empate. Na Amazônia, eles juntavam pessoas e impediam o desmatamento de uma determinada área”, compara, lembrando o passado seringueiro da ex-ministra e revelando que ela vinha conseguindo mudar a opinião do então líder do PSB. “Eduardo estava em transformação de diálogo com ela. Depois, vieram os acasos. Ela deveria estar no avião – o que não significa que foi deus…”

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Alckmin, um dos representantes da ‘velha política’ que a candidata do PSB evita: como não dialogar com um governador?

Em encontro com artistas em São Paulo, organizado por Turino, Marina voltou a explicar as razões que a levaram à aderir ao “velho” partido. “Aos 55 anos, com 30 anos de militância e 26% nas pesquisas, eu não poderia me omitir da disputa eleitoral”, justificou, elencando “virtudes” da figura e da gestão de Campos como governador de Pernambuco. “Percebi em Eduardo um homem de condição social diferente da minha, que sofreria menos preconceito do que eu. E que estava revendo suas convicções desenvolvimentistas. Além disso, ele e o PSB foram até o Supremo Tribunal Federal (STF) para defender meu direito de ter um partido.”

“Marina se encontrou com o PSB através da liderança de Campos”, reforça Joílson Cardoso, que secretariou “orgulhoso” a reunião da executiva nacional do partido que fez de Marina candidata após o acidente aéreo. “A crítica de Marina à velha política também era feita por Eduardo, para quem os pactos de governabilidade estavam mofados. Se tem José Sarney, Renan Calheiros e Fernando Collor, não podemos confiar”, continua. “O presidencialismo prevê coalizões, mas criticamos alianças com pessoas desse naipe. Temos que estabelecer o novo.”

Ao longo do ano passado, com vistas à presidência, Campos trabalhou para ter no PSB figuras como o piauiense Heráclito Fortes e o catarinense Jorge Bornhausen, ambos ex-PFL e DEM, notórios pela oposição virulenta ao governo Lula. “Adesões são bem-vindas. E são consequência de alianças regionais”, justifica Joílson Cardoso. “Não estamos condenando os ‘velhos’ líderes, até porque alguns estão conectados com a ‘nova política’. Os que estão nos apoiando não vão nos dirigir. Heráclito e Bornhausen estão circunscritos a seus estados.”

“No início, a filiação ao PSB me pareceu um pragmatismo que não combinava com o discurso”, pondera Bruno Torturra, que deixou a Rede antes do episódio. “Então percebi que não era exatamente oportunismo. Ela tinha razão quando resolveu não se ausentar das eleições. Sua presença trouxe temas importantes para o debate.” Lia Zatz, para quem a manobra primeiramente causou surpresa, e depois lhe pareceu sagaz, compartilha da opinião. “Não depõe contra a nova política, porque Marina também terá que fazer alianças”, opina. “A questão é com quem.”

Alianças

Marina e o PSB não farão alianças somente para governar, caso vençam as eleições. Já estão fazendo durante a campanha – e não apenas com “os melhores”, como costuma repetir em seus discursos, citando José Serra (PSDB), Eduardo Suplicy (PT), Pedro Simon (PMDB), Cristovam Buarque (PDT), além dos ex-presidentes Lula e FHC. A candidata esconde, mas a coligação apoia Geraldo Alckmin (PSDB) em São Paulo, Beto Richa (PSDB) no Paraná, e Lindbergh Farias (PT) no Rio de Janeiro.

Na última semana, seu vice, Beto Albuquerque (PSB), admitiu que é necessário dialogar com o PMDB em busca da tão famosa governabilidade – e se encontrou com o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, também ligado aos peemedebistas, para negociar acordos sobre desmatamento e reforma agrária.

Ao ser questionada a respeito, Marina não comentou a reunião de seu companheiro de chapa com Rodrigues e não falou sobre a aliança com o PMDB. Ela não se deixa fotografar ao lado dos candidatos estaduais que considera integrantes da “velha política” e tampouco permite que sua imagem seja veiculada junto a deles. Quando Eduardo Campos ainda era vivo, teve que mediar tensões entre Marina Silva e Márcio França, deputado do PSB que concorre a vice-governador com Alckmin. O retrato da ex-ministra vinha sendo impresso ao lado do tucano em alguns banners. Ela não gostou – e vetou.

“É realmente um horror”, reconhece Ricardo Abramovay, ao comentar a ocultada aliança com o cacique paulista do PSDB. “Mas, se ganharmos as eleições, vamos passar por muitas situações assim.” O economista se agarra à esperança de que a ascensão de Marina ao Planalto promova um “realinhamento” de forças no Congresso. Isso evitaria que a futura presidenta se veja obrigada a costurar acordos com entulhos políticos. “É claro que algum tipo de barganha terá que ser feita. O grande desafio é saber o quanto você entrega da sua alma. Não sei como será, mas o que é feito hoje é inaceitável.”

À medida em que têm surgido dificuldades, como nos últimos dias, aparecem também sinais de que o apelo à “nova política” enfraquece frente às necessidades eleitorais. Marina autorizou impressão de santinhos em que aparece ao lado de Alckmin, segundo o jornal Folha de S. Paulo. E, em Santa Catarina, subiu no palanque do candidato ao Senado Paulo Bornhausen, filho de Jorge Bornhausen, senador biônico durante a ditadura e ferrenho opositor do PT e de Lula.

As preocupações em torno da governabilidade de Marina têm assumido dois matizes. Um deles, exibido pelo programa televisivo do PT, tenta colar na candidata uma imagem de aventureirismo e instabilidade comparável aos destinos de Jânio Quadros, cuja misteriosa renúncia, em 1961, abriu espaço para o golpe militar, e Fernando Collor, que, pregando um governo de união nacional, “sem esquerda nem direita”, foi defenestrado em 1992. Outra análise, porém, lembra que o sistema político brasileiro demanda formação de maiorias no Congresso – e nutre dúvidas de como Marina, apenas com os “melhores”, poderá obtê-la.

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Com Marcos Palmeira e Gilberto Gil durante ato no Rio, entre novos e velhos admiradores

“Seria algo parecido com o governo Itamar Franco”, responde Célio Turino, invocando o já falecido ex-presidente, vice de Collor, que assumiu o Planalto após o impeachment e exerceu um mandato tampão entre 1992 e 1994. “Itamar, que apareceu por acaso, construiu governabilidade indicando ministros. Como Marina é uma negociadora experiente e se comprometeu com apenas uma gestão de quatro anos, isso favorecerá o diálogo com todas as forças. Nossa nomeação de cargos não será negociada partidariamente, mas com base na competência das pessoas. Não vamos ceder pedaços do governo. Quem não aceitar essas regras, vai pra oposição.”

Eleitores

Turino acredita que os parlamentares que insistirem em fazer oposição a Marina apenas porque não conseguiram cargos na administração sofrerão desgastes inevitáveis com o eleitorado. “Terão que dar as caras e explicar por que estão travando projetos importantes para o país”, prevê. Joílson Cardoso, da CTB, também aposta na “sensibilidade” do Congresso à opinião pública. “Se Marina vencer, o povo estará dando o recado de que quer renovação nas práticas políticas”, aponta, ao descartar previsões pessimistas sobre a composição do próximo parlamento. “Nossa esperança é que os eleitores escolham candidatos comprometidos com essa mudança.”

Bruno Torturra acredita que Marina é infeliz ao utilizar a expressão “governar com os bons”, mas diz compreender a mensagem que tenta transmitir. “Existe uma polarização entre PT e PSDB que impede o avanço de pautas importantes em segurança pública e direitos civis, por exemplo, e que possuem apoiadores espalhados por vários partidos”, analisa, citando o caso da legalização das drogas. “Não digo que Marina seja a solução para o problema, mas, se não criarmos pontes entre os quadros que ficam isolados em suas siglas, continuaremos reféns de políticos fisiológicos.”

Para o jornalista, a candidata do PSB encarna “complexidades” que deveriam ser analisadas com mais interesse e menos medo. “Ela é evangélica, o que me desperta preocupação, mas não é justo igualá-la a Silas Malafaia. Marina é uma crente, não uma pastora”, compara. “Ela não está na TV em nome da Bíblia, mas de suas bandeiras políticas. Enquanto isso, Dilma, uma materialista histórica, cerra filas com o bispo Edir Macedo e dá a Comissão de Direitos Humanos da Câmara ao pastor Marco Feliciano (PSC). O espaço político está mais tridimensional hoje em dia.”

Apesar de todas as contradições – as aparentes e as submersas –, Ricardo Abramovay destaca o que considera a “grande vantagem” de Marina Silva sobre os demais candidatos: “Seu programa é o único que reconhece que precisamos transitar da civilização do consumismo para uma civilização em que a economia se coloque a serviço da colaboração social, dos bens comuns e dos serviços ecossistêmicos”, compara. “Como traduzir isso na prática? Não é chegar à presidência e parar o pré-sal. Não tem fórmula. Mas Marina pelo menos sinaliza uma transição.”