Diplomacia

Eleições colocarão em disputa duas visões divergentes sobre política externa

Para analistas, Dilma representa continuidade de diretriz 'ativa e altiva' estabelecida por Lula. Aécio e Marina pregam aproximação aos Estados Unidos e afastamento da América Latina

Sergio Lima/Folhapress

Dilma trouxe Unasul para dialogar com Brics em cúpula que criou banco de desenvolvimento

São Paulo – As pesquisas de intenção de voto apontam três presidenciáveis com chances de vencer as eleições de outubro, porém apenas dois modelos de política externa estarão em disputa nas urnas, dizem analistas ouvidos pela RBA. Um deles, encarnado por Dilma Rousseff (PT), sinaliza a continuidade dos princípios seguidos pelo Itamaraty há doze anos. Outra visão, que diverge parcialmente da diretriz “ativa e altiva” estabelecida pelo governo Lula, ganha espaço nos programas de Aécio Neves (PSDB) e de Marina Silva (PSB).

Antes do acidente aéreo, Eduardo Campos havia se pronunciado poucas vezes sobre os rumos que daria à diplomacia brasileira caso fosse eleito. Numa longa entrevista à revista Política Externa, por exemplo, reconheceu alguns avanços obtidos por Lula e Dilma, como o aumento da presença empresarial na América do Sul, mas pautou-se sobretudo por críticas à gestão petista das relações internacionais. E não trouxe nenhuma novidade em relação ao que seu rival propõe em intervenções públicas desde o ano passado.

“Lula e Dilma colocaram no centro da política externa as relações sul-sul, a integração latino-americana, o multilateralismo e um papel ativo na reforma do sistema internacional. Há também propostas de fazer escolhas diplomáticas em diálogo com diferentes setores da sociedade brasileira – e não apenas com a elite, como acontecia antes”, avalia Fátima Mello, membro da Fase e da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip). “Temos fortalecido coalizões para equilibrar as forças globais. E isso estará em jogo nas eleições.”

Para Sebastião Velasco, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Aécio e Marina representam uma vinculação maior às posições defendidas por Estados Unidos e Europa no cenário internacional – o que, diz, romperia com o modelo petista. “Um segundo mandato de Dilma deve aprofundar a afirmação nacional”, diferencia. “É uma diplomacia que se nega a aceitar discursos hipócritas das grandes potências, sobretudo no que diz respeito a intervenções militares para supostamente defender populações ameaçadas.”

Vazios

No esboço de seu plano de governo, a candidatura tucana afirma que o Brasil está “isolado” no cenário internacional e propõe “maior ação diplomática” do país em temas globais, como mudança climática, sustentabilidade, comércio exterior e direitos humanos, e em pautas mais recentes, como guerra cibernética, terrorismo e ampliação do Conselho de Segurança das Nações Unidas. As propostas de Aécio enfatizam a dimensão comercial da diplomacia em prejuízo da concertação política. E esbarram em fatos recentes.

Ao exigir maior empenho do país em mudança climática e sustentabilidade, por exemplo, o PSDB ignora que em 2012 o Brasil sediou a Conferência Rio+20 das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, além de ter desempenhado papel relevante, desde 2009, nas edições da Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança Climática e na 10ª Conferência das Partes das Nações Unidas na Convenção sobre Diversidade Biológica, que chegou a um acordo inédito para proteção da biodiversidade e recursos genéticos.

A partir de hoje (20) a RBA publica reportagens especiais sobre as eleições. Dentro da agenda que consideramos prioritária para o país, elegemos abrir os trabalhos com a reforma política, assunto que não é tratado como prioridade pelas campanhas. Numa disputa eleitoral em que empresas doadoras de partidos e candidatos jogam papel decisivo, entendemos que essa reforma é instrumento fundamental quando se pensa no surgimento de um modelo de Estado que atenda, de forma equilibrada, as necessidades e anseios da sociedade brasileira considerando a sua pluralidade.

Apesar de não ter conseguido desemperrar a Rodada de Doha, como vem tentando há anos, o país emplacou Roberto Azevêdo como diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Também elegeu o ex-ministro Paulo Vannuchi como membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA). E nomeou José Graziano, formulador do programa Fome Zero, como diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Em setembro do ano passado, Dilma discursou na abertura da 68ª Assembleia Geral da ONU criticando a espionagem norte-americana sobre a internet e as telecomunicações ao redor do mundo – motivo pelo qual, uma semana antes, havia cancelado visita oficial a Washington. As palavras da presidenta viabilizaram a Conferência Multissetorial Global sobre Governança na Internet (NetMundial), realizada em São Paulo em abril, e que lançou as bases para uma “constituição da internet”.

Divergências

Algumas diretrizes do programa tucano, porém, sugerem divergências mais claras em relação ao PT. Apesar disso, Aécio mistura entre suas propostas de mudança algumas ações que já vêm sendo adotadas pelo Itamaraty nos últimos doze anos. “Devem merecer atenção especial a Ásia, em função de seu peso crescente, os Estados Unidos e outros países desenvolvidos, ao mesmo tempo em que deverá ser ampliada e diversificada a relação com os países em desenvolvimento”, estabelece o programa do PSDB.

Com Lula, porém, o Brasil alçou a China à condição de seu maior parceiro comercial, posto até então ocupado pelos Estados Unidos. A relação com países em desenvolvimento é uma das grandes marcas do primeiro governo petista, que criou com potências emergentes dois grupos: IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Em julho, durante cúpula em Fortaleza, os BRICS fundaram um banco de desenvolvimento e um fundo de reservas para fazer frente ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI).

A grande “mudança” talvez diga respeito à ênfase que Aécio Neves coloca sobre as relações com Estados Unidos e “outros países desenvolvidos”, que não foram deixados de lado pelo diplomacia brasileira sob o PT, mas tiveram de dividir espaço com outros países do sul do mundo. Entre 2002 e 2014, 74 representações brasileiras foram inauguradas no mundo. Um maior atrelamento às posições norte-americanas se relaciona a outra divergência apresentada pelo PSDB: a postura brasileira na América Latina.

Aécio propõe um “reexame das políticas seguidas em integração regional para, com liderança do Brasil, restabelecer a primazia da liberalização comercial e o aprofundamento dos acordos vigentes e para, em relação ao Mercosul, paralisado e sem estratégia, recuperar seus objetivos iniciais e flexibilizar suas regras a fim de poder avançar nas negociações com terceiros países”. Aécio defende que o Brasil “não se curve” aos vizinhos, como disse no ano passado ao comentar a fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina da embaixada brasileira em La Paz.

Hegemonia

“Aécio também criticou a ‘passividade’ brasileira frente a nacionalização dos ativos da Petrobras na Bolívia e o protecionismo argentino contra empresas brasileiras”, aponta Felipe Amin Filomeno, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em artigo publicado pelo Outras Palavras. “Sob Lula e Dilma, o Brasil tem sido mais compreensivo e cooperativo com os vizinhos visando integração de longo prazo. Se demandarmos de imediato livre comércio e livre atuação das empresas brasileiras, que vantagens esses países veriam numa integração com o Brasil?”

O PSDB sugere que não se empenhará numa integração latino-americana que não se paute por acordos de livre-comércio – por isso a ideia de recuperar os “objetivos iniciais” do Mercosul, criado em 1991, quando Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai eram governados por presidentes neoliberais. Aécio também deseja que o bloco permita que seus membros negociem individualmente acordos bilaterais com outros países ou grupos, como os Estados Unidos e União Europeia. E propõe que o Brasil integre a Aliança do Pacífico, que reúne Peru, Chile, México e Colômbia.

“Não podemos criar falsos antagonismos”, disse o candidato tucano à revista Política Externa, afirmando que o país pode ser membro de ambas coalizões. “Não estamos numa corrida por modelos excludentes e devemos valorizar as dimensões do Atlântico e do Pacífico”, propõe. “A Aliança é o novo dado na equação integradora da região. Os países do Mercosul podem beneficiar-se da abertura que seus membros têm para a Ásia-Pacífico, motores de crescimento da economia mundial.”

“A princípio, não temos problema em discutir o ingresso na Aliança do Pacífico, mas o problema é que todos seus membros possuem tratados de livre comércio com os Estados Unidos e outros países, o que pode prejudicar e muito a produção nacional. É preciso ser cuidadoso”, pondera Kjeld Jakobsen, diretor da Fundação Perseu Abramo e consultor em política externa. “Não há qualquer justificativa para abandonar o Mercosul. Temos que fortalecê-lo, inclusive com o ingresso da Bolívia e do Equador.”

A Área de Livre Comércio das Américas (Alca), uma possibilidade durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), foi enterrada por Lula em 2005, que então se empenhou na criação de fóruns políticos regionais em gestação. O petista patrocinou a fundação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que aglutina todos os países do continente, inclusive Cuba, com a exceção de Estados Unidos e Canadá.

Opções

Aécio critica as relações do Brasil com o governo de Raúl Castro, que considera uma ditadura que mantém sua população na pobreza e persegue dissidentes políticos. A mesma avaliação faz da Venezuela sob o chavismo, onde, afirma, “os mecanismos democráticos estão muito debilitados”. O tucano afirma que uma defesa intransigente dos direitos humanos, tradicional no Itamaraty, deveria afastar os brasileiros de Havana e Caracas. No entanto, não condena o regime chinês por executar opositores ou não realizar eleições.

“A China é uma sociedade com cultura e organizações socioeconômicas diferentes e deve ser vista como tal, não para hostilizá-la, mas para melhor compreendê-la e com ela nos relacionarmos adequadamente”, afirma o candidato, que apenas menciona o país asiático para falar da importância de sua parceria econômica com o Brasil e de sua posição estratégica no mundo. Essa “dupla moral” é apenas um dos sinais de que Aécio não priorizará a relação com os países latino-americanos.

Artigos escritos pelo ex-embaixador do Brasil em Washington, Rubens Barbosa, um dos elaboradores do plano de governo tucano, apontam para a mesma direção. “O Brasil não pode continuar atrelado ao atraso”, defendeu, em texto intitulado “Mercosul indígena”, publicado pelo jornal O Globo, em que despreza como “ideológicas” as declarações políticas proferidas pelo bloco – as quais, ressalta, não dizem respeito ao “interesse brasileiro”.

Repetida exaustivamente por Aécio, a ideia de que a política externa tem se pautado por escolhas ideológicas ressoa em artigos de opinião publicados por veículos da imprensa tradicional. Na Folha de S. Paulo, o ex-embaixador Rubens Ricupero também fala da “ideologização da política sul-americana”, e o cientista político Sérgio Fausto, do Instituto FHC, diz que “preferências ideológicas” tem levado a sucessivos erros na condução da diplomacia – como priorizar as relações com o sul em detrimento do norte.

“Essa sim é uma afirmação extremamente ideológica, além de falaciosa, porque supõe que as outras escolhas não seriam ideológicas”, rebate Carlos Milani, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Em política externa existem questões perenes, como a defesa das fronteiras e proteção dos brasileiros no exterior. Mas os governos fundamentam as bases de sua diplomacia numa determinada visão de mundo e no que consideram como interesses nacionais, que são plurais e variam com os grupos que estão no poder.”