100 anos

Com autores de teorias pós-coloniais, Paulo Freire deixou legado para educação antirracista

Centenário do educador é celebrado em diversos eventos. Entre seus legados, pesquisadora mergulha nas obras e revela possíveis contribuições do educador para a “reafricanização” do currículo e métodos escolares

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Paulo Freire disse que morreria feliz com o Brasil cheio de marchas: A dos que não têm escola, dos reprovados, dos que querem amar e não podem, que recusam a obediência servil e dos que se rebelam

São Paulo – A extensão das celebrações dos 100 anos de Paulo Freire dão apenas uma pequena amostra da importância do educador, morto em 2 de maio de 1997, aos 75 anos. Natural de Recife, ele é o intelectual brasileiro mais conhecido e lido no mundo. Um de seus livros, Pedagogia do Oprimido, escrito durante seu exílio no Chile e publicado em 1968, é até hoje considerado referência global. Além de ser também o terceiro texto mais citado das ciências humanas, segundo levantamento do pesquisador Elliot Green, da Escola de Economia de Londres. 

Em seu legado para o pensamento pedagógico, político e emancipador, Paulo Freire ainda contribuiu para a experiência de alfabetização de adultos no Brasil. Como quando, em 1963, ensinou um grupo de estudantes de Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, a aprender a ler e escrever em apenas 40 horas. O método do educador consagrou sua proposta de alfabetização popular e o que dizia sobre o sujeito que se emancipa “encontrar a sua própria palavra”. 

Influência decolonial

Foi nessa mesma chave que a doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) Crislei Custódio encontrou também ensinamentos de Paulo Freire para uma educação antirracista. Tão necessária em um país, como o Brasil, onde a discriminação racial contra pessoas não-brancas é estrutural. Essa dimensão da obra do patrono da educação é explorada no artigo Racismo à brasileira e possíveis contribuições do pensamento de Paulo Freire para uma educação antirracista”, divulgado pela autora na Rádio Brasil Atual

Crislei é também professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Ibirapuera e coordenadora pedagógica do Instituto Vladimir Herzog (IVH). Ela contou ter encontrado esse material o ao revisitar o livro Cartas à Guine-Bissau, de 1977. Em entrevista à jornalista Marilu Cabañas, Crislei disse que o material chamou sua atenção pelo diálogo do educador com lideranças de países africanos, que também tinham o português como língua oficial e estavam conquistando sua independência da condição de colônia. Diferente das referências que encontrou em Pedagogia do Oprimido, mais ligadas à obra de Karl Marx e outros expoentes europeus, a pesquisadora localizou nos textos as ideias de autores de teorias pós-coloniais. 

Entre eles, Frantz Fanon (1925-1961), o psiquiatra, filósofo e militante político da Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN). Assim como Amílcar Lopes Cabral (1924-1973), o líder do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). E Aristides Pereira (1923-2011), o primeiro presidente da República de Cabo Verde. “Ali (no livro), Paulo Freire recupera ideias em que ele fala de ‘descolonização das mentes’, uma categoria usada pelo Aristides Pereira. E ele vai vai falar de ‘reafricanização das mentalidades’ que é do Amílcar Cabral”, observa Crislei. 

Para uma educação antirracista

Apesar de Paulo Freire, em mais de 40 livros publicados, não estabelecer a categoria raça como algo central, a doutora em Educação explica que ele, ao recuperar as teorias decoloniais, levanta “uma discussão importante sobre o currículo e as práticas escolares que se baseiam uma cultura dominante que é a cultura do colonizador”. “Ele recoloca essa dialética do opressor e do oprimido para pensar a relação colonizador e colonizado. E também o quanto o processo de educação precisa de alguma maneira permitir a emancipação de uma mentalidade colonizada”, acrescenta.

Crislei compara seu achado ao currículo escolar brasileiro que, até hoje, em quase 200 anos de independência de Portugal, “é estruturado em conteúdos eurocentrados”. “Tem uma lógica da branquitude, falamos que estudamos a história universal que na verdade se reduz à história da Europa. E a gente toma essa visão eurocêntrica e branca do mundo como universal”, critica. “Mesmo com a conquista da Lei 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, que mais tarde garantiu também a inclusão da Cultura Indígena, a educação brasileira ainda parte da lógica da branquitude. E essas coisas ficam quase como apêndices.”

Diante dos 100 anos de Paulo Freire, a pesquisadora conclui que seus ensinamentos “nos ajudam a pensar a dimensão da descolonização do nosso currículo escolar”.

“Mas a argumentação de Paulo Freire, como ele vai trazendo esses autores das teorias pós-coloniais, nos ajudam a entender que é para além de uma questão de ampliar e ter mais informações. Trata-se de uma superação dessa lógica, de libertação de uma mentalidade colonizada. A gente precisa encontrar nossa palavra enquanto sujeitos. (…) Precisamos ter outras perspectivas históricas, não dá mais para contar só com a história do colonizador”, conclui.

Confira a entrevista 

Redação: Clara Assunção


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