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Bolsonaro alavancou empresas da educação na pandemia, diz relatório

Com apoio de Milton Ribeiro, do MEC, Bolsonaro vetou acesso à internet para estudantes e professores. Mas favoreceu o crescimento do mercado das empresas de educação durante a pandemia

Reprodução/FB Milton Ribeiro
Reprodução/FB Milton Ribeiro

São Paulo – As corporações do ramo da educação vêm sendo alavancadas pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início da pandemia, em março de 2020. Esta é uma das principais conclusões do dossiê CoronaChoque: um vírus e o mundo, lançado nesta terça-feira (3) pelo Front Instituto de Estudos Contemporâneos e pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Conforme o documento, tais grupos empresariais representam interesses financeiros, sejam eles de pessoas físicas ou de fundos de investimentos de quaisquer partes do mundo, sem compromisso com o Brasil. E submetem a qualidade do ensino à lógica especulativa e às periódicas crises do mercado de capitais.

Isso é preocupante porque tratam-se de empresas que estão por trás de conglomerados de escolas de ensino básico, faculdades e universidades, escolas de idiomas e cursos preparatórios para concursos, entre outros. Ou de setores que vendem métodos e plataformas digitais de ensino, em alta com a chegada do ensino remoto. E também que comercializam livros e materiais didáticos por meio de suas editoras.

Para o professor Roberto Leher, titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Estado brasileiro fez opção pelo alinhamento ao setor privado. Isso é demonstrado, por exemplo, pela falta de uma política de universalização do acesso público e gratuito à internet.

Educação excludente

“Nós vimos que, ao contrário, infelizmente, os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), que é um fundo muito robusto, foram vetados por Bolsonaro. Isso produziu uma desigualdade que é de difícil qualificação. Mas é brutal, é inacreditável que num momento tão áspero nós tivemos seguramente mais da metade dos estudantes brasileiros – na ordem de 30 milhões de estudantes nos diversos níveis – sem efetivamente condições de acompanhar as interações e os ambientes virtuais de aprendizagem”, disse Leher, aos autores do dossiê.

Além da desigualdade e precariedade no acesso a tecnologias de informação e comunicação, não houve nenhum planejamento de retorno para as atividades presenciais assim que o controle da pandemia permitisse. Isso exigiria um investimento considerável na infraestrutura das escolas, o que inclui coisas básicas como reformas para oferecer ventilação adequada nas salas de aula, bebedouros e banheiros.

O dossiê traz dados do Censo Escolar de 2020, que mostram que cerca de 20% das escolas não tinham internet adequada, 26% não tinham coleta de esgoto e 3,2% não tinham banheiro. Problema antigo no Brasil, o baixo investimento em educação se agravou nos últimos anos com a política de austeridade fiscal implementada a partir da Emenda Constitucional do Teto de Gastos aprovada em 2016, que limita os investimentos públicos para os próximos 20 anos.

A partir de uma perspectiva assim tão desanimadora, Roberto Leher compara a resposta do Brasil com a dos Estados Unidos, que em 2020 alocou cerca de R$ 122 bilhões para a educação pública, enquanto no Brasil o único projeto apresentado no Congresso por alguns deputados previa o valor de R$ 40 anuais por aluno, o que obviamente não permitiria a infraestrutura adequada.

Educação na pandemia

Em um cenário assim, de esvaziamento da educação pública, os grupos privados viram novas oportunidades de negócios. Ou seja, a pandemia acelerou um processo que já estava em curso, dando continuidade à expansão desses grupos por meio de aquisições de empresas menores.

Dirigente do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS), a professora Margot Andras, disse que é forte o mercado de compra e venda de escolas menores pelas maiores. Um exemplo é o grupo Raiz Educação, que recentemente adquiriu o controle das escolas dos grupos Unificado e Leonardo Da Vinci.

Segundo ela, o ensino superior é também lucrativo. “A Laureate comprou a UniRitter, ainda antes da pandemia. Há grupos vindos do Chile, e principalmente companhias S.A., as sociedades anônimas, que ninguém sabe quem são os donos, os acionistas, e isso está entrando fortemente na educação privada”.

Margot relata ainda que a pandemia é uma oportunidade para empresas com dinheiro abocanharem empresas que estão com problemas. E isso está ocorrendo em todo o país. Uma das mais recentes atividades que movimentou os grandes grupos educacionais no Brasil foi a venda da rede universitária Laureate Brasil, até então controlada por uma companhia estadunidense. Depois de intensas disputas com outros grupos, a Ânima virou a nova dona daquela rede, em fins de 2020, numa operação que envolveu cerca de R$ 4,4 bilhões.

O dossiê destaca que as parcerias público-privadas também avançaram muito nesses meses de pandemia. Esse mecanismo de contratação de serviços de empresas particulares envolve acordos firmados entre estados e municípios com empresas para a implantação de projetos de aprendizagem, programas didáticos e plataformas de ensino.

Capital versus educação

A ofensiva do capital sobre a educação não teve início na pandemia, mas ganhou um importante impulso com ela, como sublinha o dossiê. Um dos fatores que favoreceram os grupos corporativos foi o cancelamento das aulas presenciais e a instauração das atividades remotas. Estas, por sua vez, são completamente dependentes do uso de tecnologias digitais.

O acesso às tecnologias de informação e comunicação tornou-se peça-chave para a democratização do ensino. Assim que iniciou a pandemia, os grupos corporativos, que já vinham acumulando experiência em modalidades de ensino à distância, com o desenvolvimento de plataformas virtuais, conseguiram fazer uma conversão mais rápida às atividades remotas. “O setor privado logrou uma logística de aulas virtuais muito mais acentuada do que o setor público”, afirma Roberto Leher. As aulas remotas foram muito mais rapidamente iniciadas no setor privado. Em vez disso, no setor público o processo foi muito mais lento e tortuoso.

O dossiê chama atenção para um aspecto curioso: ao longo da pandemia as corporações educacionais pressionaram sistematicamente o governo brasileiro pelo retorno das aulas presenciais, ignorando os riscos à saúde de estudantes e profissionais da educação. Isto foi feito em grande medida pelas associações empresariais alinhadas aos interesses políticos do governo Bolsonaro .

Para Margot Andras, porém, esse comportamento aparentemente contraditório se explica porque, embora o ensino à distância seja apresentado como a grande salvação, as atividades presenciais continuam sendo a única garantia de ganhos num contexto de crise e empobrecimento da população. “Acontece que muitas escolas deram descontos de mensalidade para a família enquanto houvesse o ensino não-presencial. Aí é a questão do dinheiro. O interesse do empresariado é esse: ‘eu preciso abrir a escola, porque esses alunos voltando eu vou poder cobrar o que eu cobrava antes’”.

Clique aqui para ler a íntegra de CoronaChoque: um vírus e o mundo do Front Instituto de Estudos Contemporâneos e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.


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