Laboratório do futuro

Ciência na escola pública simboliza a resistência a ataques e ao desmonte

Apesar das políticas de desvalorização, escolas driblam dificuldades e produzem pesquisa de qualidade reconhecida

Arquivo/IFRS
Arquivo/IFRS
Juliana no laboratório do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, campus Osório, onde desenvolveu filme plástico biodegradável a partir da noz macadâmia

São Paulo – Ciência e escola pública. Atacadas e desvalorizadas por políticas a serviço do negacionismo, do obscurantismo e da privatização, ambas resistem. E seguem enfrentando as adversidades e fazendo pesquisas em busca de conhecimento e tecnologia para melhorar a vida das pessoas, a saúde do planeta e para reduzir as desigualdades sociais.

Isso ficou claro durante a cerimônia virtual de entrega dos troféus da segunda edição do prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher, concedido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na última semana. Do total de 286 inscrições, 90 são de alunas participantes de programas de iniciação científica de todo o país.

A vencedora na categoria Ensino Médio foi Juliana Davoglio Estradioto, 20 anos, que desenvolveu um filme plástico biodegradável a partir da casca da noz macadâmia no laboratório do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). “O material produzido é alternativa para os plásticos comuns. Mas também poderá ter aplicação na Medicina, na produção de peles artificiais”, disse.

Ciência e engenharia

A invenção foi primeiro lugar também na 33ª Mostra Brasileira de Ciência e Tecnologia e Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia (Mostratec), em 2018, e da 17ª edição da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), promovida pela USP.

Na sequência, Juliana foi para a Feira Internacional de Ciências e Engenharia da Intel (Intel Isef), em maio de 2019, nos Estados Unidos. Ficou em primeiro lugar na categoria de ciência de materiais.

Atualmente estudante de Engenharia Química e Biológica e Estudos de Comunicação na Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, coleciona mais de dez prêmios científicos nacionais e internacionais, fora 30 menções e votos de congratulações. Mas sabe que ciência e educação não podem ser fruto apenas do interesse, boa vontade e determinação.

“Eu queria fazer um apelo: precisamos de investimentos públicos em ciência e educação. Vim de escola federal e a gente sabe que nem sempre tem as mesmas condições para todos. Nós precisamos valorizar a educação pública, gratuita e de qualidade”, disse, durante a premiação.

Mais espaço à escola pública

O prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher mostrou também que a pesquisa vai além da rede federal de ensino tecnológico e superior, líder na produção de ciência no país. Colégios de aplicação de universidades e escolas estaduais de ensino médio também participam, por meio de programas de iniciação científica. Tanto que duas alunas alunas que receberam menção honrosa são justamente dessas redes.

Aluna do ensino médio do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA), Ana Carolina Botelho Lucena, 17 anos, pesquisou as relações familiares de escravizados na Amazônia entre 1800 e 1850. Relações, segundo ela, marcadas pelas desigualdades sociais aprofundadas pelo sistema escravocrata. Um tema, aliás, que poderá ser retomado a partir da graduação, pelo viés das mazelas da escravidão.

“Não querem a classe trabalhadora ocupando as universidades”. (Foto: Reprodução/Facebook)

“É lindo de ver a escola pública alcançando esses espaços. Viva a escola pública! Infelizmente a gente vive um governo que desvaloriza a pesquisa, a educação e não incentiva as escolas públicas, muito pelo contrário. Um reflexo disso foi a realização do Enem. Uma grande negligência do MEC, do Inep, haja vista que as desigualdades educacionais aumentaram visivelmente. Como aluna de escola pública, eu praticamente não tive aula no ano passado. Apesar do esforço das escolas, dos professores, o ensino a distância é efetivo”, disse Ana Carolina à RBA.

Negra e feminista, a cientista em formação entende que os problemas na educação não são de hoje. E não é por acaso que a escola é tão desvalorizada. “Nós vemos cada vez mais quem são as pessoas que os poderosos querem ver nas universidades. E com certeza não são os filhos e filhas da classe trabalhadora. É cada vez mais nítido o quanto incomoda ver a classe trabalhadora ocupando as universidades”, disse Ana Carolina.

Bioplástico de mandioca

Outra aluna agraciada com menção honrosa é Nallanda Victoria dos Santos Martins, 18 anos, aluna do Colégio Estadual Antonio Garcia Filho, de Umbaúba, no interior de Sergipe. Com os colegas Adriel Ribeiro de Santana e Júlia Nunes Cardoso, transformou cascas de mandioca recolhidas em casas de farinha do município em um bioplástico para substituir saquinhos pretos usados na produção de mudas de plantas em estufas.

Enquanto esse plástico comum leva em torno de 400 anos para ser degradado na natureza, o bioplástico da mandioca leva apenas dois meses, conforme teste de degradação realizado.

“A mandioca é fonte de renda e subsistência em Umbaúba. Há muitas casas de farinha no município. Como filha de agricultora, quero que a agricultura seja bem mais sustentável”, disse Nallanda.

O bioplástico de mandioca foi finalista da 18ª Feira de Ciências e Engenharia (Febrace), que em 2020 foi realizada no ambiente virtual. E recebeu o prêmio “Most Outstanding Exhibit in Computer Science, Engineering, Physics or Chemistry“, da Associação de Ciência e Engenharia de Yale, nos Estados Unidos.

“O colégio nem tinha laboratório, o que infelizmente é uma realidade em muitos dos colégios públicos do Brasil”, disse Nallanda na entrega do troféu da SBPC. Mas emendou a tempo: “Sim, o colégio público é capaz”.


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